Coimbra

Primeira pessoa

OPINIÃO | Angel Machado | 5 meses atrás em 27-12-2023

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É a primeira vez que me sinto livre, e isso parece-me incurável. Dito assim, administro alguma loucura com elegância. Sei que é preciso ter disciplina para compreender os setenta anos, parece simples, mas não é como fazer um bolo de maçã. Poucos saberão como é a vida frutífera de uma macieira aos cento e dez anos. Na idade em que me encontro o tempo é um aliado. 

Não tenho um diário, mas gosto de saber que há pessoas que têm e escrevem os acontecimentos da sua vida. Se eu tivesse um, escreveria que as pessoas à minha volta guardam a roupa de domingo em armários com naftalina, e que em todas as salas de espera o assunto é o tempo; é, por isso, inevitável não sermos reféns daquilo que distinguimos como passado, presente e futuro. 

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Mesmo que haja manipulação e nos fartermos das futilidades, viver ensina que o tempo tem a sabedoria de um ancião. Ninguém tem o direito de interferir na rotina dos otimistas, porque eles podem desfrutar das coisas delicadas da existência sem as alterar. 

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Nada está sob controlo, e ainda bem, mas os compromissos chatos que mantinham a minha agenda cheia foram suspensos, sem precisar de ter uma razão. Sempre fui uma observadora dos sentidos. Se ainda julgam a juventude o melhor dos tempos é porque não sabem o que ainda há-de vir. Tenho os olhos ávidos sem querer respostas, o planeamento para uma vida feliz resultou em fazer coisas bonitas e obscenas, causar espanto a ver a vida passar ligeira e fluída, até notar as primeiras rugas no espelho.

Com ressalva, o tempo mostrou-me que seria interessante envelhecer, mesmo que isso não tornasse a vida mais fácil e, paradoxalmente, sustentasse a esperança de ver novas invenções, outras gerações e guerras sem motivo. A regra foi, sempre, viver pacificamente e aprender com os anos: a observar, a ler, a ouvir, a sorrir e a sentir-me mais forte na dor. Fui vivendo à maneira, a abrir portas e janelas, a desejar “bons-dias”, a rir de mim mesma, a ganhar ou a perder, e a prosseguir enquanto os bolos de maçãs assavam na cozinha. 

Opinião | Angel Machado – Escritora e jornalista

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