Economia

Netflix grava “cenas” em Portugal. Será que vale (mesmo) a pena?

Frederico Duarte Carvalho | 9 meses atrás em 18-08-2023

O filme “Heart of Stone”, na Netflix, com Gal Gadot no papel principal tem cenas filmadas em Lisboa que foram apoiadas pelo Turismo de Portugal. Será que valeu mesmo a pena todo o investimento? Duvida-se.

PUBLICIDADE

Não é propriamente novidade que Portugal e, em particular, a capital, Lisboa, seja cenário para filmes de produtoras internacionais. Há muito que o imaginário de Hollywood associa Lisboa a mistério e intriga internacional. Tal como, para nós, era o Cairo da canção dos “Táxi”, onde a capital do Egipto seria “ponto de passagem/cidade internacional/os espiões vão de viagem/joga-se o xadrez mundial”.   

O célebre filme de 1942, “Casablanca”, com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, menciona Lisboa como o destino do avião que os personagens esperavam apanhar no então Marrocos francês. Foi nessa altura que a fama da capital portuguesa começou a pairar no imaginário mundial como um destino misterioso. Durante a Segunda Guerra Mundial, Lisboa, por ser um destino neutral e porta para a América, transformou-se num ninho de espionagem onde todos se encontravam e intrigavam: milionários, famílias reais, artistas, refugiados e espiões alemães, ingleses e norte-americanos.

PUBLICIDADE

Diz-se que foi no Casino do Estoril, ao vigiar o agente duplo de origem sérvia, Dusko Popov, que Ian Fleming terá encontrado a inspiração para escrever o primeiro romance de James Bond: “Casino Royale”. Por isso, não é de estranhar que, mais tarde, em 1956, filmes como “Lisbon”, com Ray Milland ou, em 1966, “A Man Could Get Killed”, com James Garner, tivessem a capital portuguesa como cenário de tramas à volta do mistério e da espionagem.

Entre outros, podemos destacar ainda as cenas filmadas em Cascais e Arrábida para o filme de James Bond, “Ao Serviço de Sua Majestade” (1969) e, uns anos depois, comprovou-se que Lisboa e arredores proporcionam cenários tão generosos que até servem para fazer de Paraguai: “The Boys From Brazil” foi filmado em Portugal após a ditadura de Strossner não ter permitido que o seu país servisse de cenário a uma história envolvendo o médico nazi Josef Mengele.

PUBLICIDADE

publicidade

Com a queda do muro em Berlim, em 1989, chegou às salas de cinema a adaptação do romance de John Le Carré, “A Casa da Rússia”, pela mão do realizador Fred Schepisi. A cidade de Lisboa foi o cenário onde Sean Connery se passeou entre Alfama e o miradouro das Portas do Sol. Onde a vista do Largo das Belas Artes mostra uma Lisboa que encanta muitos dos que por ali ainda hoje passam. E é o local onde chega a personagem interpretada por Michelle Pfeiffer, num barco vindo da Rússia, atracando em frente ao rio, próximo do Campo das Cebolas.

Não faltam outros exemplos de filmes onde Lisboa é mais do que um simples cenário, pois faz parte da história e, sem ela, a trama não faria sentido. São filmes como, “A Cidade Branca”, de Alain Tanner com Bruno Ganz, ou o “Viagem a Lisboa”, de Wim Wenders e ainda o “Comboio Nocturno para Lisboa”, de Bille August, com Jeremy Irons, que tornam a capital de Portugal numa personagem da trama. 

Sabendo disto tudo, é então penoso ter de assistir ao mais recente filme com cenas captadas em Lisboa, “Heart of Stone”, disponível na Netflix. Nem sequer se trata do facto de haver uma personagem que diz que, em Portugal, se não houver mais nada para se fazer, pode-se sempre comer “tapas” em vez de um bom bacalhau à Braz ou um cozido. Ou de um outro criticar o ritmo do Fado. 

É um filme de espionagem sofrível, que imita a tradição dos filmes de James Bond com cenas em vários países, mas com a diferença de que aqui temos uma mulher, Gal Gadot, a interpretar um agente secreto que salva o mundo de um vilão aborrecido com a vida e com vontade de destruir coisas.

Lisboa serve essencialmente para cenário de uma perseguição de carros, subindo e descendo as colinas da cidade num percurso que não faz sentido para quem conhece os caminhos e onde não é plausível que as viaturas aguentem tais condições extremas de condução. 

Nenhum agente secreto da vida real conseguiria conduzir em Lisboa mais do que uns cem metros àquela velocidade sem enterrar as rodas num buraco ou bater de frente com um qualquer motorista de TVDE ou turista em trotinete. Nunca chegariam da Mouraria à Lapa, descendo do Chiado pelo elevador da Glória antes de entrar na Rua Augusta, em direcção à Praça do Comércio

Claro que sabemos que tudo isto faz parte da magia do cinema. É isso que conta e não há regras para o espectáculo, pois é permitido em nome da emoção e não é preciso retratar caminhos da cidade tal e qual como são nas reais condições. Para isso, há a realidade de todos os dias e o cinema proporciona-nos a possibilidade da evasão e do entretenimento puro.

Sabemos disso tudo. Mas basta considerar que as mesmas cenas poderiam ter sido feitas numa qualquer outra cidade do mundo, com as mesmíssimas características geográficas de colinas – olhem, por exemplo, São Francisco. Podiam ter ido para lá fechar as ruas e fazer a mesma correria de carros que, para o desenrolar da história, tanto fazia se tivesse sido lá como cá. Só que o preço da rodagem seria outro, pois claro.

O Turismo de Portugal e o programa “Pic Portugal” apoiaram este filme. Tudo bem. Mas, no fim, o que se vê de Lisboa não são imagens que nos representem como alguns dos outros filmes mencionados. Não parece que vá atrair visitantes para verem os locais das filmagens. 

Pede-se então que, nos próximos projectos, haja mais investimento na escolha do guião. Com produções onde a cidade faça parte do argumento e sirva aos personagens e à trama em vez parecer que é apenas um local barato para filmar, num país que oferece às produtoras estrangeiras “um dos sistemas de incentivos financeiros mais competitivos da Europa”, conforme está anunciado no site da Pic Portugal.

Esperemos pelos próximos filmes para ver se temos mais sorte, pois este não ficou no coração.  

Related Images:

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE