Opinião

Um Whisky com duas pedras de luto 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 4 semanas atrás em 04-04-2024

Não percebo nada de lutos. Não sei como começá-los; não sei como desenvolvê-los; não sei como acabá-los. Enfim, não sei como reagir a desaparecimentos e ausências. 

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Para a minha total ignorância no processamento de lutos, talvez contribua o facto de nunca ter morrido alguém que fosse verdadeiramente próximo de mim. À excepção do meu avô paterno (falecido quando eu era ainda uma criança com uma frágil consciência da morte), todos os meus familiares e amigos mais próximos estão vivos e de boa saúde — a maioria deles, pelo menos, tem-se mantido assim até ao dia de hoje. 

Ainda assim, hesito em assegurar que seja um afortunado nesta matéria. Pareço mal agradecido por tamanha sorte, eu sei, mas se alguma das pessoas de quem eu mais gosto se tivesse lembrado de falecer nos últimos anos, talvez eu estivesse mais preparado para fazer lutos. É justo dizer que, nesta sua tentativa de sobreviver, nenhum deles se preocupou muito com o prejuízo que me estaria a causar. 

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Agora, feliz ou infelizmente, estão todos vivos e, por isso, eu encontro-me na posição de um adulto sem qualquer capacidade para lidar com o desaparecimento físico e mental de alguém que ama. Nem mesmo com o desaparecimento que não é imposto pela morte. 

Aos olhos de um leigo como eu, isto de fazer o luto parece uma rara arte. Uma daquelas artes difíceis, complexas, densas, só acessíveis aos mais sábios e criativos. Parece-me uma espécie de expressão emocional que, assim como acontece com os verdadeiros artistas, é inata e, por isso, intransmissível por quem saiba de facto produzir bons lutos. 

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Ou será que estou enganado e o luto é, afinal, uma ciência!? Uma daquelas ciências de multiplicações encriptadas, que só os mais geniais conseguem interpretar!? Uma ciência sem lógicas incontestáveis ou soluções unidirecionais, que mistura choros furiosos e iras melancólicas numa carruagem excruciante que não encontra estações ou apeadeiros no horizonte?

Quando é que isto acaba? E… será que acaba?”, questionam os enlutados, enquanto desejam que o luto se faça, mas que não se prolongue. Porque se se prolongar muito, talvez seja mais ajuizado nem o começar. Ou não? Ou o risco de empurrar com a barriga e adiar o luto permite que este inche em proporções hiperbólicas e rebente na nossa cara, num futuro próximo, com um impacto infinitamente mais doloroso? 

Valerá, então, a pena despachar logo o luto? Obrigar-me a sofrer que nem cão, chorar como um homem e mandar o mundo e a sorte à merda? E só depois partir para o pós-luto que, eventualmente, será um pré-luto de um amor ainda por descobrir? 

Concluo, derrotado, que nem mesmo os timings do luto são definidos por mim; afinal, é sempre ele que controla os momentos em que dá mostras de si. Nem sequer tenho uma palavra a dizer… Ele tem vida própria, aparece quando quer, fica o tempo que lhe apetece e deixa tantas marcas quantas deseja. E, aí, a mim, resta-me lidar com ele da melhor maneira que sei, atabalhoadamente. 

E de que maneira devo fazê-lo? Primeiro, imediatamente, procurando identificar o tamanho da dor e assim compreender a proporção do luto a realizar. De seguida, tentando determinar planos e estratégias para concretizar o objetivo do luto, seja ele um propósito de inebriação, substituição ou abstinência. Devo inebriar a mente e assim atenuar a dor? Devo preencher a ausência e neutralizar a solidão? Devo anular a perda, acordando, comigo mesmo, que ela nem chegou a existir? 

Eu sei, talvez esteja a complexificar em demasia… eu avisei que não sei lidar com lutos. Talvez o mais acertado seja concentrar-me em respirar. Abrir os olhos e recolher as cortinas. Tomar um banho e sair à rua. Não lutar com o luto e deixar a vida, mesmo enlutada, acontecer. 

Felizmente, no meu caso, posso sempre refugiar-me no Whisky para atenuar a dor do luto. Calma… não se trata de alcoolismo. Whisky é só o nome do meu cão, o Johnnie Walker do meu pesar. Um rafeiro peludo, pouco dado a lutos, mas muito empenhado em lutas com galinhas de borracha. Um perito no ócio diurno no sofá e adepto de longas correrias noturnas, em que, mesmo sem saber, me ensina a arte científica de deixar a vida acontecer.

OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA

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