Um juiz do Juízo Local Criminal de Santarém foi criticado por três desembargadores da Relação de Évora após ter absolvido um homem acusado de violência doméstica, num processo marcado por comentários considerados preconceituosos e pela culpabilização da vítima.
A decisão foi agora anulada, com o agressor a ser condenado a dois anos e quatro meses de prisão com pena suspensa, além de ter de pagar 1.500 euros de indemnização à ex-mulher.
O caso remonta a uma relação que durou entre 2016 e 2022, terminando com o divórcio do casal em novembro desse ano. Durante esse período, a vítima foi sujeita a comportamentos controladores e abusivos, como a proibição de socializar fora do círculo familiar, o acompanhamento constante ao local de trabalho e restrições ao vestuário. Testemunhas confirmaram os episódios de controlo e violência psicológica, embora não tenham sido relatadas agressões físicas visíveis, descreve o Jornal de Notícias.
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Durante o julgamento, o juiz de primeira instância colocou várias vezes em causa o comportamento da vítima, questionando-a sobre os motivos que a levaram a casar com o arguido apesar dos sinais de abuso. Quando esta respondeu que estava apaixonada, o magistrado retorquiu de forma crítica: “A paixão não desculpa tudo. A senhora é um ser racional…”. Em outro momento, sugeriu que a mulher deveria ter mentido sobre os seus relacionamentos passados, comentando: “Fazia como fazem as mulheres, mentia…”. Ainda enquanto testemunhava, a vítima foi interrompida pelo juiz com a frase: “Deixe lá a verdade. A verdade é comigo.”
A sentença ditou a absolvição do arguido, mas a vítima recorreu, alegando que o tribunal ignorou provas claras de maus-tratos emocionais e psicológicos, incluindo testemunhos que confirmavam um padrão de intimidação e insultos. A Relação de Évora veio agora dar-lhe razão, sublinhando que os comentários e juízos de valor do juiz de Santarém comprometeram a apreciação da prova e que, em casos de violência doméstica, não se pode exigir às vítimas comportamentos padronizados ou “projetar” nelas a perspectiva do julgador.
Os desembargadores reforçaram ainda que os juízes devem exercer funções com imparcialidade e isenção, livres de preconceitos, reais ou aparentes, especialmente em matérias sensíveis como a violência doméstica.
Este caso junta-se a outros episódios polémicos do passado no sistema judicial português. Em 2017, um juiz da Relação do Porto foi alvo de censura após justificar uma agressão com base numa alegada traição conjugal. Já em 1989, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça responsabilizou parcialmente duas mulheres violadas por terem pedido boleia numa zona descrita como pertencente ao “macho ibérico”.
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