Educação

Escolas recusam mudança de nome de crianças transgénero

Notícias de Coimbra com Lusa | 4 meses atrás em 30-12-2023

Há diretores de escolas que recusam a mudança de nome de crianças transgénero, indo contra a lei, denunciam pais cujos filhos se automutilaram ou tentaram suicidar-se.

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Em alguns casos, os pais tiveram de recorrer a associações ou fazer queixa a serviços do Ministério da Educação para ver os direitos dos seus filhos garantidos.

Podem não ser muitas as crianças e jovens que sentem que nasceram no corpo errado, mas são vários os casos de estudantes marginalizados e escolas onde a lei não é cumprida por “preconceito” e “falta de empatia”, alerta a Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS).

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“Temos boas e más experiências nas escolas”, conta à Lusa António Vale, presidente da AMPLOS, onde chegam pedidos de ajuda de todo o país de alunos trans que continuam a ver negados os seus direitos.

A Lusa falou com quatro famílias e ouviu duas histórias de integração, mas também dois casos de “discriminação e preconceito”, nas zonas de Lisboa e Leiria.

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Manuel e Jorge (nomes fictícios) não se conhecem, mas viveram experiências semelhantes na luta contra o seu corpo e há episódios das suas vidas que quase se confundem: são transgénero, foram alvo de ‘bullying’, tiveram pensamentos suicidas e viram negada a mudança de nome na escola.

Manuel tem 14 anos e estuda na zona de Lisboa. Jorge tem 13 e vive em Leiria. Nas duas escolas, o pedido de mudança de nome foi rejeitado pelos diretores, contrariando a legislação portuguesa que garante este direito desde 2018.

“É uma falta de empatia, mas também de conhecimento sobre a vida das pessoas. Não podemos forçar as pessoas a ser o que não são. Recusar o seu nome é recusar a sua existência”, defende António Vale.

A psicóloga da associação, Ana Silva, vai mais longe e alerta que esta rejeição “é uma violência que pode pôr em causa a vida de uma pessoa”, lembrando que as tentativas de suicídio são 40% superiores entre a comunidade trans.

Manuel e Jorge poderiam entrar nestas estatísticas. Manuel estava numa aula quando subiu ao parapeito da janela e ameaçou atirar-se do 3.º andar. Cansado de ser gozado pelos colegas e ignorado pelos professores, o adolescente de 13 anos sentiu que não aguentava mais.

Naquele dia, Manuel recuou e o seu ato desesperado serviu de alerta para a comunidade escolar perceber que o caso era sério.

Os sucessivos pedidos de reunião feitos até então pelos pais e psicólogo foram finalmente aceites e o processo de mudança de nome começou finalmente a avançar.

O pai contou que o diretor justificou a recusa dizendo que a lei tinha sido chumbada e “ainda bem”, senão iriam “ter os miúdos todos a pedir para mudar de nome para Cristiano Ronaldo”. No entanto, a lei já permitia essa alteração. 

Manuel recordou os “quatro bilhetes anónimos” que recebeu quando tinha 13 anos: “Chamaram-me nomes, a dizer que sou uma pessoa nojenta e desagradável, que tinham asco e que tinham de me matar. Nunca soube quem mos tinha mandado”.

Apesar das dificuldades que atravessaram, a família nunca fez queixa. “A nossa prioridade tem sido fortalecer psicologicamente o Manuel, porque este é um processo muito delicado”, contou a mãe, que teme novas tentativas de suicídio.

Um estudo envolvendo mais de um milhão de jovens admitidos em hospitais norte-americanos em 2019 revelou que 55% das crianças e jovens internados com disforia de género tinham comportamentos de automutilação ou tentativas de suicídio, contra 4% entre os jovens cis (pessoas que se identificam com o género com que nasceram).

Aos 13 anos, Jorge já pensou em suicídio e já se automutilou. No ano passado, a mãe recebeu uma mensagem no telemóvel a avisar: “Se me encontrares morto, não estranhes”, recordou Teresa.

Jorge tinha 10 anos quando disse aos pais que “não se sentia bem no corpo que tinha”, que “se sentia sozinho e que não havia mais ninguém como ele”. Mas o sofrimento começou aos seis ou sete anos, quando começou a pedir aos colegas que o tratassem por um nome masculino, contou a mãe.

Num corpo que não via como seu, a tristeza e depressão agravaram-se. Aos 11 anos, quando começou a ter menstruação, a situação piorou e, este verão, já com 13 anos, “o corpo modificou-se totalmente e a situação tornou-se ainda mais complicada”, disse Teresa.

Neste processo de adaptação, o apoio da família é fundamental, mas há também a vida fora de portas. Nas escolas, o ‘bullying’ continua a ser um dos grandes problemas.

As dificuldades no processo de mudança de nome também não ajudaram e, perante a recusa do diretor, a família de Jorge apelou à intervenção da Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares.

“Mesmo assim, passei um mês na secretaria da escola e tive de imprimir e apresentar a legislação para que vissem que já é permitido por lei a mudança para o nome social, mesmo sem estar no cartão do cidadão”, recordou.

À Lusa, o Ministério da Educação confirmou receber queixas, mas sem avançar dados. Já à Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) chegaram duas queixas em 2022: uma relativa a discriminação com base na identidade e/ou expressão de género e outra com a utilização de casas de banho.

O ano letivo passado terminou com o processo de Jorge corrigido mas, este ano, apesar de frequentar a mesma escola, a família teve de reiniciar todo o processo. “Os professores novos não o conheciam nem foram informados e por isso trataram-no pelo nome feminino”, lamentou Teresa.

Jorge só foi às aulas no primeiro mês, depois começou a recusar sair de casa. As faltas acumularam-se e a diretora de turma teve de informar a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, “que viu aqui perigo de abandono escolar e disse que ia enviar o processo para o Ministério Público”, contou.

“A vida nas escolas é tão difícil que assim que podem saem de lá”, corroborou Ana Silva, sublinhando que entre a comunidade trans as taxas de absentismo e abandono escolar disparam.

Foi também a pensar nestas situações que o parlamento aprovou este mês medidas a adotar pelas escolas para garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género e a proteção das suas características sexuais.

O diploma prevê que a escola tenha alguém preparado para ajudar estas crianças: Quando a ajuda não vem de casa, pode vir da escola, à semelhança do que já acontece em casos de violência doméstica, muitas vezes identificados e denunciados pelas escolas.

A Lusa não confrontou as duas escolas a pedido das famílias que pediram anonimato para proteger os seus filhos.

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