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António Guterres tem trabalho “excecionalmente difícil”, mas “podia ter feito mais”

Notícias de Coimbra com Lusa | 2 meses atrás em 17-02-2024

O embaixador ucraniano na ONU considera que António Guterres tem um trabalho “excecionalmente difícil” como secretário-geral das Nações Unidas, tendo de dialogar com possíveis “criminosos de guerra”, mas avalia que “poderia ter feito mais” face à invasão russa.

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Em entrevista à Lusa, em Nova Iorque, Sergíy Kyslytsya comentou o polémico encontro no mês passado entre Guterres e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, cujo aperto de mãos causou indignação junto de ucranianos e políticos europeus, admitindo fazer parte das funções de secretário-geral receber o chefe da diplomacia da Rússia – um país com assento permanente no Conselho de Segurança -, mesmo que seja um “representante de um ditador”.

“É um assunto muito controverso. E sei que esse tipo de aperto de mão foi muito, muito criticado na Europa como um todo e na Ucrânia em particular. Devo dizer, no entanto, que conheço Guterres há vários anos. Mesmo antes de ele se tornar secretário-geral, acompanhava o que ele fazia como alto-comissário para os Refugiados e todos nos lembramos na Ucrânia de ele ser o primeiro-ministro de Portugal”, recordou o diplomata.

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Apesar das críticas de que foi alvo em solo europeu, Guterres foi agora elogiado por Kyslytsya, que considerou o ex-primeiro-ministro português “uma pessoa com padrões morais muito elevados” mas que, devido ao cargo que ocupa, tem de se sentar com “representantes de ditadores”.

“Portanto, no geral, preciso dizer com toda a sinceridade que António Guterres é um político de classe mundial muito experiente. E também acredito, em particular, que ele é uma pessoa com padrões morais muito elevados. Então, acredito que ele tem, provavelmente, esse desafio interno de ter que se sentar, enquanto secretário-geral, com pessoas que são provavelmente criminosos de guerra ou que representam ditadores, mas isso faz parte do seu trabalho”, avaliou o embaixador.

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De acordo com o Governo russo, o encontro de Lavrov com Guterres resultou numa “discussão substantiva sobre vários aspetos da cooperação entre a Rússia e a ONU, assim como sobre questões-chave da agenda internacional”.

Apesar de vários políticos, como o deputado neerlandês Ruben Brekelmans, terem considerado o encontro “uma chapada na cara dos ucranianos”, Kyslytsya observou que a Rússia é um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, o órgão da ONU responsável pela paz e segurança internacionais, pelo que Guterres teve de discutir com Lavrov questões relacionadas com a paz em conflitos como na Ucrânia ou no Médio Oriente.

“Não sou o porta-voz de Guterres e não o estou a defender, mas ele tem um tipo de trabalho que eu não recomendaria aos meus amigos sequer pensarem, porque é um trabalho excecionalmente difícil”, frisou.

Contudo, o representante permanente da Ucrânia acredita que Guterres “poderia ter feito mais” em relação à guerra na Ucrânia, nomeadamente ter invocado o artigo 99.º da Carta das Nações Unidas, à semelhança do que fez em dezembro passado – pela primeira e única vez desde que se tornou secretário-geral – face ao conflito em Gaza.

Na ocasião, Guterres invocou este artigo para pedir ao Conselho de Segurança, o único órgão da ONU cujas decisões têm caráter vinculativo, que “evitasse uma catástrofe humanitária” no enclave e aprovasse um cessar-fogo.

Kyslytsya gostaria que o líder das Nações Unidas tivesse dado o mesmo passo em relação à Ucrânia.

“Penso que, mesmo dentro do âmbito muito limitado dos poderes que possui – porque só existem cinco artigos na Carta das Nações Unidas sobre o secretário-geral -, ele tem um papel muito proeminente a desempenhar e espero que vejamos dele um papel mais proativo”, afirmou.

“Mas, também tenho de elogiar a sua mudança absolutamente sincera e radical de retórica na noite da agressão [24 de fevereiro de 2022], quando saiu do Conselho de Segurança e apelou a [Presidente russo, Vladimir] Putin para parar a guerra. E, também temos de reconhecer os seus esforços quando ele, pessoalmente, passou horas, se não dias e semanas, a negociar o Acordo dos Cereais do Mar Negro, que está agora extinto e, segundo o próprio, não poderá ser ressuscitado”, observou ainda o diplomata ucraniano.

Além do trabalho do secretário-geral, Sergíy Kyslytsya refletiu ainda sobre o bloqueio que o Conselho de Segurança das Nações Unidas tem sofrido devido ao poder de veto detido pelos cinco membros permanentes e que tem impedido o órgão de atuar sobre conflitos como o na Ucrânia.

António Guterres tem sido, aliás, uma das vozes que, nos últimos tempos, mais se tem levantado a favor de uma reforma urgente do Conselho de Segurança, defendendo o seu alargamento ao continente africano, por exemplo.

Frequentemente considerado obsoleto, o Conselho de Segurança já é alvo de pedidos de reforma e expansão há décadas, com países emergentes como a Índia, África do Sul e Brasil a pretenderem juntar-se aos cinco membros permanentes – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia.

Em geral, quase todos os países da ONU consideram necessário reformar o Conselho de Segurança, mas não há acordo sobre como fazê-lo, com diferentes propostas na mesa há anos.

Ao longo dos anos, o poder de veto – detido exclusivamente pelos cinco membros permanentes – tem sido uma das questões mais polémicas e alvo de vários pedidos de modificação.

Esse tem sido, aliás, o mecanismo usado pela Rússia para impedir que o Conselho de Segurança atue contra si face à Guerra na Ucrânia.

De acordo com Guterres, os métodos de trabalho do Conselho também devem ser atualizados para que possa fazer progressos, mesmo quando os membros estão fortemente divididos.

Para o embaixador ucraniano, a reforma do Conselho de Segurança não deveria apenas passar pelo alargamento numérico – algo que avalia que poderia até dificultar o trabalho diplomático -, mas deveria abordar a forma como as decisões estão a ser tomadas.

“Todos divergimos naquilo que consideramos ser o verdadeiro apelo da reforma, porque há muitos proponentes de um alargamento apenas físico e numérico do Conselho de Segurança, o que, na minha opinião, só complicará o nosso trabalho, porque, sem uma mudança na forma como as decisões são tomadas, o alargamento físico do Conselho não seria realmente uma reforma holística”, disse, embora reconhecendo que o seu Governo defende um alargamento a África.

“Sem abordar a questão sobre como estão a ser tomadas as decisões, sem abordar a questão do porquê do Estado agressor – que foi reconhecido pela comunidade internacional e pela Assembleia-Geral [da ONU] como o Estado agressor -, ainda poder exercer um veto no Conselho de Segurança, não iremos conseguir alcançar o avanço”, avaliou Kyslytsya, referindo-se à presença da Rússia no órgão.

Além disso, o representante permanente da Ucrânia defende a necessidade de se discutir a aplicação das decisões do Conselho de Segurança.

“Não se trata apenas de como aprovar uma decisão, mas também de como se aplicam as decisões”, salientou.

Criando um cenário hipotético, Kyslytsya colocou em dúvida o respeito de Putin por qualquer decisão que pudesse sair do órgão das Nações Unidas em relação à guerra na Ucrânia.

“Todos dizemos que o Conselho de Segurança, por exemplo, não é capaz de tomar qualquer decisão significativa (…) sobre a Ucrânia. Mas imaginemos que a Rússia não tinha meios para vetar uma decisão no Conselho de Segurança. E imaginemos que o Conselho de Segurança aprova uma decisão sobre a Ucrânia que diz, literalmente: “pare a guerra, retire as tropas”. Esta decisão foi aprovada, esta decisão chega à mesa de Putin. Realmente acredita que Putin implementará tal decisão?”, questionou.

“A Rússia não implementa as medidas provisórias do TIJ [Tribunal Internacional de Justiça]. Porque é que a Rússia implementaria esse tipo de decisão do Conselho de Segurança?”, questionou o embaixador.

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