Opinião

A Metamorfose, um conto de Natal 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 4 meses atrás em 21-12-2023

Óscar, o seu amigo de sempre, bem o tinha avisado. “Vê lá, Romeu, olha que eu conheço várias botas que se meteram nessas coisas e depois arrependeram-se. Iam só fazer uma intervenção pequena, iam só substituir os cordões ou levantar levemente as solas, e, depois, ficaram desfiguradas… completamente irreconhecíveis”, alertara-o a jovem sandália, companheira inseparável desde que, ainda meros pedaços de couro destinados à indústria, se haviam, pela primeira vez, cruzado no pré-calçado. 

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Porra, que estupidez. Tudo por vaidade; tudo pela percepção exterior. Como podia ter sido tão idiota, tão fútil? Agora, Romeu só se recordava das conversas distantes com o avô, um sábio chinelo de dedo, cuja aparência velha e gasta contrastava com o sorriso mais simples e generoso que alguma vez vira: “Filho, nós viemos ao mundo para proteger os pés. Segurança e conforto: é essa a nossa missão”, repetia o velho, num conselho reiterado a que Romeu nunca prestara particular atenção.

Frustrado com a sua própria transformação, não conseguia escapar à lembrança de todos os alertas, das vozes de quem lhe era próximo, da sensatez e ponderação transportadas em centenas de avisos que teimara em ignorar. Daquele tom tolerante, fraterno. Da forma como sempre lidaram com o seu lado mais vaidoso, com os seus instintos mais superficiais, com os sonhos delirantes de querer pisar as passarelas de Milão e Nova Iorque. Nova Iorque! O pobre Romeu em Nova Iorque… Ele, nascido numa humilde fábrica em Santa Maria da Feira, ele que pouco mais conhecia do que as prateleiras do Calçado Guimarães e meia dúzia de passadiços e pequenas avenidas onde os mesmos pés insistiam em levá-lo. Ele, o pequeno Romeu, sempre inebriado na sua megalomania de querer ser mais do que um simples par de botas num simples par de pés. 

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Agora, consumido pela autocomiseração, até conseguia valorizar aqueles pés. Os pés que o penetravam gentilmente de manhã, que se apresentavam sempre de unhas cortadas, com os pêlos devidamente aparados, e que raramente cheiravam a chulé.

Mas estava ali, à porta do armário dos seus pais, prestes a apresentar-se novamente.

Apresentar-se,sim, já que a sensação que experimentava – imaginava ele – era semelhante à de quem acaba de nascer e começa a descobrir o mundo. Sentia-se, de facto, outro sapato e não fazia a menor ideia de como eles iam acolher esta sua nova“cara”. 

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Para um par de tamancos de madeira – um casal duro, empedernido, que soube resistir à crueza da vida de calçado -, os seus pais eram até bastantes tolerantes. Tolerantes o suficiente para não deserdar Romeu quando o apanharam, ainda adolescente, a copular com uma pequena e provocante calçadeira no canto do guarda-fatos. Porém, suficientemente conservadores para o proibir de manter aquela relação inter-espécies: “Calçadeiras? Com tanto sapatinho que anda por aí e tu meteste-te com uma calçadeira!?”, advertira o pai, acompanhado pelas constantes interjeições repressivas da mãe, num passado tão distante quanto doloroso. 

Mas não seria produtivo para Romeu continuar a tentar antecipar a reação dos pais e ainda menos recuperar a história trágica que o afastara de Gisela, a calçadeira enérgica com quem já só convive em memórias e sonhos afrodisíacos. 

Por outro lado, “dar corda aos sapatos” e evitar o confronto com os progenitores estava fora de questão.

Era noite de Natal e, desta vez, não podia escapar ao encontro familiar com outra desculpa esfarrapada, sob pena de ser castigado com a hostilidade característica das botas militares. Não queria isso. Estava, aliás, com uma enorme vontade de beijar aqueles tamancos velhos que, apesar de um ou outro excesso, lhe tinham proporcionado uma infância feliz, livre, quase imaculada, sem violência ou pedras no sapato. 

Hesitante, Romeu bateu ao de leve na madeira. O pai abriu o armário. Ao ver o filho, sorriu carinhosamente e abraçou a jovem bota. Era uma bota diferente da que conhecia. Híbrida, estranha, disforme, aparentemente quebrada, agora travestida num salto alto pintado a vermelho, berrante, impossível de ignorar. Um sapato que quase não identificava como o seu filho, mas de quem sentia genuína saudade. E continuou a abraçá-lo. Romeu sossegou, por fim, e desfrutou do aperto, entrelaçado nos cordões daquele carinho paternal. 

Findo o caloroso cumprimento, o pai chamou a esposa: “Querida, está aqui o teu filho. Prepara-te antes de o veres, nem vais acreditar…”. Longe do olhar dos dois, a mãe gritou: “Não me digas que anda outra vez metido com a calçadeira!”.

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