Opinião

A geometria como desígnio nacional

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 4 semanas atrás em 06-04-2024

Um retângulo, um círculo e um quadrado entram numa reunião do Conselho de Ministros… Parece o início de uma estranha anedota, mas é antes o enquadramento da decisão de repor o logótipo da República usado pelo Governo, naquela que foi a primeira grande decisão tomada pelo novo Executivo e que foi mesmo apresentada pelo ministro da Presidência como «a primeira medida para mudar estruturalmente Portugal em quatro anos e meio»…

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Não sei se sentiram o mesmo, mas eu sou capaz de jurar que a terra tremeu ao anúncio desta decisão, um fenómeno provocado certamente pelas manifestações de felicidade do tal «milhão de portugueses» que tantos comentadores já fizeram o favor de nos explicar que votaram contra a Democracia porque estão desiludidos. Cronistas mais cínicos poderiam dizer que só ficaram contentes porque teriam dificuldades em responder à pergunta «Quais as figuras geométricas representadas no símbolo do Governo?», mas eu defendo que se a substituição de um logótipo não é suficiente para dar esperança aos cidadãos de um país, nada será!

Ironias à parte, houve de facto grande alegria em vários setores pelo ‘regresso’ da esfera armilar, das quinas e dos castelos, como se eles tivessem anteriormente sido retirados da bandeira nacional – que, deixem-me que vos diga da forma mais clara que consigo, não foram coisa nenhuma! Mas é certo que um símbolo administrativo não deixa de ser um símbolo e a mim nunca me verão defender que os símbolos não são importantes.

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Por esta razão, parti imbuído de boa vontade em busca dos defensores deste regresso ao passado, mesmo sendo um passado a que não é preciso recuar sequer um ano. O argumento que mais vezes vi referido foi que nenhum exercício de rebranding (uma pequena pausa para dizer que me causa grande estupefação o facto de o uso de uma palavra inglesa não ser suficiente para ter a adesão da moderna direita portuguesa) pode desrespeitar a história de tantas gerações que ajudaram a fazer Portugal. Mas castelos na (verdadeira!) bandeira nacional, só mais de um século depois da fundação. E esfera armilar, só no século XIX, antes de ser retirada para acabar reposta apenas na República. Afinal, poderá a maior ofensa aos nossos antepassados ser não mexer nos símbolos?

Um local desta discussão onde não me sinto confortável a ir é o do patriotismo. Haverá de certeza pessoas em melhores condições de o fazer, mas lamento informar que não será o atual primeiro-ministro. Afinal, patriota algum seria capaz de defender um Governo de forma tão fervorosa quanto, nos tempos de Passos Coelho, Luís Montenegro fazia enquanto líder parlamentar, se esse Executivo resolvesse acabar com os feriados da Restauração da Independência e da Implantação da República, datas definidoras do Portugal que somos. Símbolos mais importantes do que um logótipo a que ninguém liga quando não consegue marcar uma consulta no SNS ou pagar o empréstimo da casa.

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Ou talvez, mais simplesmente, o verdadeiro símbolo que está aqui em causa seja aquele que se quer mostrar ao eleitorado. Nomeadamente, ao eleitorado que se acredita poder ser mais facilmente captado numas eleições que, ao contrário dos discursos públicos, o próprio recém-empossado Governo deseja que não demorem. Porque se os desígnios de um País podem ser depositados de forma tão exacerbada na simbologia que os órgãos políticos escolhem para os representar, basta percorrer rapidamente a extensa galeria de mudanças que foram ocorrendo nas décadas mais recentes ao nível dos símbolos municipais para decretar que Portugal não tem futuro.

Bem vistas as coisas, com esta capacidade de concentração nas questões verdadeiramente importantes, talvez não tenha mesmo.

OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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