Opinião

Zé, ganhámos! 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 2 semanas atrás em 24-04-2024

Zé,  

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(Desculpa não te tratar por “Avô”, mas se o meu pai se permitia chamar-te “Zé” e tu  gostavas, também me julgo merecedor de igual familiaridade.) 

Eu sei que não nos conhecemos bem, mas hoje apetece-me falar contigo. Atenção:  a culpa de não sermos mais íntimos é tua, não é minha! Ninguém te mandou morrer  tão cedo… Estivesses tu mais tempo por aqui e acho que poderíamos ser mesmo  bons amigos, companheiros de longas e cúmplices conversas. 

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Mas não foi assim. Bazaste — Zé, avisa-me sempre que eu trouxer léxico que não  seja do teu tempo. “Bazaste”, caso não saibas, significa “saíste”. — e eu tive de me  contentar com as últimas imagens que guardo de ti. Só podendo recorrer a essas  poucas memórias, fui construindo o teu retrato com a acumulação de histórias  contadas pela avó, pelo meu pai ou pela minha tia. 

A tela foi-se compondo enquanto se multiplicaram os testemunhos de quem te era  mais próximo. Estes retratam um bancário empedernido, um sindicalista  aventureiro, de mau feitio, para quem a ameaça da PIDE nunca foi suficientemente  paralisante. 

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Contam a história de um comunista convicto, militante, estudante pouco estudioso,  que se deixou contagiar pelo entusiasmo bolchevique que prometia o ideal da  igualdade libertária. Um homem que pensava sobre o país e o mundo, que conhecia  o passado e perspetivava o futuro, umas vezes no papel de rebelde revolucionário,  outros, paradoxalmente, na pele de um ortodoxo conservador. Um clandestino  corajoso, disposto a morrer por uma causa – uma singularidade muito rara por estes  dias, Zé. 

Estas histórias sobre ti são reforçadas pelos livros que acumulaste e que  continuam, todos, no escritório, o mesmo escritório desarrumado, onde convivem  com o pó e as fotografias do teu tempo. Mas esse tempo acabou e, agora, é altura 

de viver o meu tempo, pacificado com a realidade de que os nossos tempos se  deveriam ter cruzado durante mais tempo. 

Ora, Zé, agora é tempo de te dar novidades… Tenho boas e más notícias para ti que,  ausente desta terra há algum tempo, estarás sedento por saber as últimas. 

Vou despachar já a má notícia: o comunismo perdeu mesmo. O teu PCP parece  moribundo, vítima da falência incontestável do sonho comunista que alimentavas  no teu imaginário. É certo que o país não está fantástico – continuamos pobres,  desqualificados e sem imaginação – mas, ainda assim, mantém-se firme na sua  filosofia de Estado liberal e capitalista, reflexo de um ocidente que não te inspirava  sonhos de progresso e igualdade. 

Porém, Zé – e vamos focar-nos nesta conjunção – porém, a boa notícia é mesmo  muito boa. O 25 de Abril faz 50 anos! 50 anos, Zé!  

O 25 de Abril sobreviveu ao tempo. Venceu e convenceu o povo. Está forte e quase  unânime, num Portugal muito diferente (e muito melhor) do que o que conheceste  em boa parte da tua vida. Continuamos livres. Pobres, mas livres! Donos de um  destino que não será travado por nenhum lápis azul ou qualquer Campo de Morte  Lenta. 

E a malta gosta disto, Zé! Gosta mesmo… Nos próximos dias, (tirando um ou outro  maluco) vamos andar todos de cravo na mão, cantiga no coldre e liberdade na boca,  orgulhosos da disrupção de Abril e crentes na capacidade de transformação do  futuro. 

Mesmo sabendo todos que essa transformação é improvável, mesmo sabendo que  “a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação” continuam em falta, num quadro  inacabado onde as tintas são insuficientes e o engenho é limitado, hoje, pelo  menos, podemos ter esperança e acreditar que “pertencemos ao povo que o povo  produziu”. Ganhámos, Zé! Ganhámos! 

Um abraço do teu neto, 

Bernardo

OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRRA

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