Opinião
Um género de ideologia
Bem alto, de cima do palanque, berrou: «Vou pegar nesses milhões todos que são dados à ideologia de género e vou dizer às associações: Esqueçam, não vão receber um tostão!» O que se seguiu foi o habitual, o aplauso entusiasmado, histérico mesmo, dos que ali se reuniram para ouvir o líder com cujas opiniões concordam inteiramente, mesmo quando não sabem quais são porque «não leem os pensamentos das pessoas».
PUBLICIDADE
O que não disse – embora eu tenha a certeza absoluta de que sabe – foi que esses cerca de 400 milhões de euros que referiu, e que estão inscritos no Orçamento do Estado, financiam medidas de combate às alterações climáticas, resposta ao desafio demográfico, construção da sociedade digital e redução das desigualdades. Mesmo que aceitássemos que tudo o que está comportado neste último ponto diz respeito a ‘ideologia de género’ (e faço esta concessão só para não cansar demasiado intelectos pouco habituados a exercício), seriam somente 9,2% da dotação global.
E ainda assim, entram neste saco metafórico matérias como a igualdade entre mulheres e homens, a prevenção da violência doméstica ou o combate à discriminação em função da orientação sexual. Assuntos que o referido tribuno, evidentemente, considera menores, o que não surpreende tendo em conta o caráter marialva e machão que, a certa altura da sua vida, percebeu corresponder a um nicho de mercado (jornalístico e eleitoral) que poderia explorar.
Voltando à tribuna e à frase incendiária amplamente aplaudida: é simplesmente uma enorme mentira. Claro que isso pouco interessa a uma cópia barata de Adepto do Benfica Possuído transformado em autodesignado sucessor de Sá Carneiro.
A ele, só lhe interessa o ódio. Ou antes, só lhe interessam as vantagens que pode retirar do ódio que destila e propaga. É isso que justifica que, no relativamente curto período que leva como figura do espaço mediático português, já tenha defendido todo o tipo de coisas e o seu contrário, ou feito desaparecer convenientemente – qual prestidigitador que, em vez de «Abracadabra», grita «Vergonha» – ideias com menor tração.
Mas afinal, o que separa o estudioso que já defendeu o reforço do acolhimento de imigrantes, que criticou a estigmatização de minorias ou que se preocupou com expansão dos poderes das polícias, do Doutor (reproduzo o epíteto que, na boca dos apaniguados, sempre antecede o seu nome) que hoje defende políticas em sentido contrário ou que chegou a sugerir a deportação de uma deputada por, supostamente, não ser suficientemente ‘pura’ para os seus critérios? E o que o levou a retirar do programa do seu partido – numa medida de cosmética que não teve repercussão na apresentação de medidas alternativas, que simbolizassem uma verdadeira mudança de posição – questões como o desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, a abolição da escola pública e extinção do Ministério da Educação ou a inutilização do Código do Trabalho?
A resposta foi dada pelo próprio antes da vertigem do estrelato: o populismo, esse género de ideologia, que leva os políticos a usar para sua vantagem alguns dos piores instintos humanos e da sociedade. Todos deviam prestar atenção a essas palavras.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
Related Images:
PUBLICIDADE
PUBLICIDADE