As figuras serenas, de pele branca como cal e testas surpreendentemente altas, que povoam muitos retratos do Renascimento, escondem uma realidade sombria que durante séculos passou despercebida. O que durante muito tempo se julgou ser mera idealização artística tem, afinal, uma explicação bem mais perigosa: envenenamento.
A estética renascentista privilegiava a pele clara, uniforme e “pura”, associada ao estatuto social e à juventude. No século XVI, multiplicaram-se por toda a Europa os produtos cosméticos que prometiam alcançar esse ideal. O mais famoso – e o mais tóxico – foi a cerusa veneziana, um preparado vindo de Veneza que funcionava como base ou corretor e tornou-se indispensável sobretudo entre mulheres de pele naturalmente clara, pode ler-se no ZAP.
O prestígio do produto contrastava com a sua letalidade. A cerusa era feita a partir de cerussite, um mineral rico em chumbo branco, misturado com vinagre e aplicado diretamente sobre a pele. Hoje sabe-se que o chumbo é uma neurotoxina extremamente perigosa, mesmo em pequenas quantidades. A exposição prolongada reduz capacidades cognitivas, afeta o autocontrolo, aumenta comportamentos agressivos e deixa marcas evidentes no corpo.
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Entre os sintomas mais visíveis de intoxicação estavam a queda de cabelo e o recuo acentuado da linha frontal — traço que, segundo especialistas, ajuda a explicar muitas das célebres “testas aristocráticas” representadas nos quadros renascentistas. O chumbo provocava ainda náuseas, fadiga extrema, deterioração cognitiva e perda dentária, sinais frequentemente ignorados ou atribuídos a outras doenças.
Uma das figuras mais associadas ao uso da cerusa veneziana é Isabel I de Inglaterra. Nos retratos do final do seu reinado, como o famoso Ermine Portrait (1585), a monarca surge com o rosto intensamente branco e uma testa ampla, características compatíveis com os efeitos do cosmético. Acredita-se que Isabel recorresse ao preparado para disfarçar as cicatrizes da varíola. Nos últimos anos de vida, tinha perdido quase todos os dentes — outro sintoma típico de intoxicação pelo metal.
A causa da morte da rainha continua envolta em incerteza, mas alguns historiadores admitem a hipótese de um lento envenenamento por chumbo após décadas de exposição. Ironia cruel: a cerusa veneziana só seria oficialmente classificada como veneno 31 anos depois da sua morte, demasiado tarde para as gerações que moldaram, com sacrifício da própria saúde, a estética idealizada do Renascimento.
Os rostos pálidos e perfeitos que hoje admiramos nas galerias de arte guardam, afinal, a memória de um padrão de beleza que custou vidas — e deixou marcas profundas na história.
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