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Quer ler o acórdão que condena Inspectora da PJ a 17 anos de prisão?

Notícias de Coimbra | 9 anos atrás em 01-06-2015

| EXCLUSIVO  NDC | Notícias de Coimbra divulga (268 páginas) na integra o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que condena a 17 anos de prisão Ana Saltão, Inspectora da Polícia Judiciária, que agora é culpada de ter morto a avó do marido. 

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Processo n.º 849/12.1JACBR.C1

Comarca de Coimbra – Coimbra

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Relatora: Olga Maurício

Adjunto: Luis Teixeira

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Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

 

1.

Nos presentes autos a arguida Ana Alexandra de Andrade Tudela Saltão foi absolvida da prática de um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º, 132º, nº 1 e 2, als. c), e), h) e j) do Código Penal e de um crime de peculato, do art. 375º, nº 1, do mesmo diploma.

Foi, ainda, absolvida do pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público.

2.

Inconformado, o Ministério Público recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1º – Impugnam-se todos os pontos da matéria de facto dados como não provados – que constam do acórdão a fls. 3685 a 3690 dos autos, nos termos do acima explanado na motivação, em I a VIII, pontos esses que deverão considerar-se provados.

2º – Na verdade, o tribunal a quo fez um errado julgamento da matéria de facto acima descrita de I a VIII, matéria de facto considerada não provada, na medida em que na audiência de discussão e julgamento foi produzida prova que impunha decisão diversa da recorrida.

3º – Escalpelizados os elementos de prova referidos de I a VIII – para onde se remete – cada um de per si e entre si conjugados, emerge a convicção de que da sua correcta ponderação, atendendo à lógica e às regras da experiência, decorre a conclusão de que a arguida praticou os factos integrantes dos crimes que lhes foram imputados na acusação, e a que respeitam os pontos da matéria de facto impugnada.

4º – Concretizando e em síntese:

I – Do blusão, marca ln Extenso, pertença da arguida, e dos resíduos de disparo de arma de fogo nele detectados

Instada a arguida a entregar a roupa que tinha usado no dia do homicídio, ocorrido em 21 de Novembro de 2012, aquela entregou o dito blusão, bem como umas calças de ganga de cor azul, marca Mango Jeans e ainda um par de sapatilhas, marca Nike, de cor preta.

Neste blusão, ao ser examinado no LPC, foram detectados resíduos de disparo de arma de fogo (cfr. exame do LPC de fls. 719 a 723 e esclarecimentos complementares de fls. 778, 779, 1441, 1442 e 1513).

Mais concretamente, nele foram detectadas partículas características/consistentes de resíduos de disparo genericamente constituídas por chumbo, antimónio e bário, sendo 5 características na amostra recolhida nas mangas e 1 consistente na amostra recolhida na parte anterior, partículas que eram do mesmo tipo das detectadas nas cápsulas deflagradas, recolhidas no local do crime.

Tais partículas resultaram de transferência primária de resíduos de disparo de arma de fogo, por exposição directa do blusão à nuvem de partículas proveniente das deflagrações que mataram a vítima e não de transferência secundária de resíduos, de uma outra superfície para o blusão.

Se da quebra na cadeia da custódia da prova resultava a possibilidade de contaminação do blusão – por que colocado, para ser fotografado, no chão de um gabinete da PJ – Directoria do Centro – antes de ser remetido para o LPC – da conjugação de todos os elementos de prova, analisados de modo coeso e lógico, resulta afastada tal hipótese.

Se a possibilidade de contaminação decorrente desse acto já era, só por si, remota, decorrente do potencial de transferência secundária ser cientificamente considerado reduzido a partir de elementos policiais;

todas as dúvidas se dissipam quando se constata que as calcas de ganga também entregues pela arguida, colocadas na mesma ocasião e no mesmo espaço físico que o blusão, nenhumas partículas de resíduos de disparo tinham (quando nas calças, face ao tecido de que eram compostas, até seria mais expectável encontrar resíduos por transferência secundária, por comparação com o tecido do blusão – o que se encontra demonstrado pericialmente, como resulta do exame de fls. 719 a 723).

Então, funcionando as calças como amostra de controlo significativa (Parecer Técnico de fls. 3667 a

3669),

só se pode concluir que as partículas detectadas no blusão não advinham do chão do gabinete, pois então as calças também teriam de as ter e não tinham.

Manifestamente, nenhuma prova se carreou para o processo, capaz de, por qualquer forma, invalidar o resultado da perícia efectuada pelo LPC ao blusão em causa.

Então, para além do mais argumentado acima em I, o que reiteramos e que aqui consideramos reproduzido, a detecção das mencionadas partículas no blusão que naquele dia a arguida usava, coloca-a no local onde ocorreu o homicídio, ou seja na rua António José de Almeida, nº 86, cave direita, em Coimbra, a cometer crime tão hediondo, com tão elevado grau de violência.

II – Da lesão na mão direita da arguida

No decurso da sua actuação, visando tirar a vida à avó do seu marido, e decorrente da forma como empunhou a pistola utilizada para tal, face à quantidade de tiros consecutivamente disparados, a arguida sofreu lesões na sua mão direita, designadamente na zona da chamada tabaqueira anatómica.

Em 26.11.2012, a arguida foi sujeita a exame médico-legal, no âmbito do qual foram constatadas, na sua mão direita, as lesões descritas a fls. 123, 223 a 225 e fotografadas a fls. 118 a 122, 224vº e 225, que aqui damos por reproduzidas e que descrevemos em II, designadamente “ferimento na face dorsal da região do primeiro espaço interdigital da mão” – zona da tabaqueira anatómica -, “(…) medindo 2 cm de comprimento por 3 mm de maior largura”.

Considerou a perita médica que realizou esse exame que tal ferimento – que a arguida, em determinadas ocasiões, tentou ocultar – pelas características que apresentava, podia ter sido produzido por instrumento contundente ou actuando como tal.

Esta possibilidade, conjugada com os demais elementos de prova, nomeadamente testemunhal, atendíveis quanto a esta questão, tudo ponderado à luz da normalidade do acontecer, da lógica e da coerência, impõe que se conclua que essa lesão foi provocada por um deficiente manuseamento da pistola Glock, modelo 19, calibre 9 mm Parabellum – incorrecta empunhadura determinante do contacto da corrediça da arma com a pele daquela zona da mão, aquando do seu movimento de recuo – que a arguida utilizou para praticar o crime, atentas as concretas circunstâncias de pelo menos 14 disparos sucessivos, aliado ao stress inerente ao acto, com o consequente desposicionamento da arma.

III – Da subtracção da pistola semi-automática, marca Glock, calibre 9 mm Parabellum, modelo 19, distribuída à inspectora Liliana Vasconcelos, do seu gabinete da Directoria do Norte da PJ, bem como do carregador nela inserido com 14 munições de igual calibre, marca Sellier & Bellot, lote 09

A arguida, atenta a localização do seu gabinete de trabalho na Directoria do Norte da PJ, estava em condições privilegiadas para observar a movimentação no gabinete da inspectora Liliana e escolher o momento ideal para ali se deslocar e retirar a arma que sabia estar guardada no respectivo módulo de gavetas, que com facilidade se abria, mesmo estando fechado à chave, conforme decorre, além do mais, do exame de fls. 5 a 7, do Apenso nº 15497/12.8TDPRT (sendo certo que durante o dia, enquanto a inspectora Liliana estava nas instalações da PJ, estando o módulo em utilização, este até permanecia aberto).

E assim fez a arguida, indevidamente se apoderando dessa arma e do carregador nela inserido com 14 munições, que utilizou depois para perpetrar o homicídio da avó de seu marido.

As munições – 50 – que à inspectora Liliana tinham sido distribuídas pela PJ, quer o remanescente – 36 – quer as 14 que se encontravam no carregador e que foram utilizadas para a prática do homicídio, sendo certo que no local e no corpo da vítima foram recolhidos projécteis com idênticas características, eram todas do tipo JHP (hollow point expansivo), com 115 grains de massa (equivalente a 7,5g), lote 09.

Isso resulta claramente, além do mais, do exame do LPC de fls. 551 a 564, assim como dos esclarecimentos prestados por um dos peritos que o realizou, Mário Goulart, que igualmente esclareceu ser perfeitamente inusual aparecerem munições JHP para exame.

A firma que é a única importadora para Portugal deste tipo de munições – Antero Lopes. Lda. – esclareceu que só as forneceu à PJ.

Foram 14 as munições subtraídas com a arma da inspectora Liliana, assim como foram 14 as utilizadas para a prática do crime. Existe entre elas e as 36 remanescentes coincidência de características – calibre 9 mm Parabellum, marca Sellier & Bellot, com projéctil JHP, de 115 grains de massa, lote 09, sendo certo que o único importador para Portugal apenas as forneceu à PJ.

Os projécteis recolhidos no corpo da vítima eram de calibre 9 mm Parabellum e idênticas características apresentavam as cápsulas deflagradas encontradas no local, munições que foram deflagradas seguramente por pistola Glock, isto resultante da conjugação de nos projécteis ter aparecido impresso um estriado poligonal e nas cápsulas terem sido encontrados sinais de percussão rectangular e de arrasto do percutor.

Os resíduos de disparo de arma de fogo encontrados no blusão que naquele dia a arguida envergava eram do mesmo tipo das partículas detectadas nas cápsulas recolhidas no local do crime e nas cápsulas resultantes das 36 munições sobrantes da inspectora Liliana.

Ora, a apreciação conjunta dos variados elementos de prova, designadamente pericial e testemunhal, efectuada com coerência e com observância de regras de experiência comum e critérios de lógica e razoabilidade, impõe que se conclua que a arma e as 14 munições subtraídas à inspectora Liliana o foram pela arguida, que depois as utilizou para a prática do homicídio em causa.

IV – Da motivação da arguida

Pese embora ser bem razoável o nível de rendimentos do trabalho auferidos pela arguida e marido, o certo é que o casal apresentava uma situação económica deficitária, com alargado uso de cartões de crédito, num quadro de gastos notoriamente acima das suas reais possibilidades (o que aliás resulta da análise dos correspondentes elementos bancários).

Só com ajudas externas – designadamente de familiares da arguida – conseguiam equilibrar as suas contas mensais.

O próprio marido da arguida assumiu perante familiares seus as dificuldades económicas do casal.

Recorreram à falecida Filomena, que lhes emprestou € 2.500,00.

Apesar da capacidade económica desta, as quantias emprestadas tinham de lhe ser reembolsadas pelo neto e arguida, o que a falecida exigia, dada a austeridade com que encarava as questões financeiras e geria as suas poupanças.

Esta exigência da falecida, pese embora ser pessoa abastada, gerava um sentimento de revolta e raiva na arguida.

[O marido da arguida descreveu a sua perante familiares seus como pessoa muito agressiva verbalmente e que, na altura, ao mesmo tempo que tomava antidepressivos, ingeria bebidas alcoólicas].

Com a morte da vítima, o casal seguramente beneficiaria, por via do recebimento da herança por parte da mãe do marido da arguida, que assim poderia passar a ajudar monetariamente o seu único filho.

Aquele sentimento de raiva, aliado à legítima expectativa de vir a receber consideráveis proveitos económicos por via de uma das herdeiras, ou seja, a mãe do seu marido, determinaram a arguida a tirar a vida à Filomena.

V – Do telemóvel da arguida desligado na tarde do homicídio

Da coerente análise dos dados de prova existentes quanto a esta questão, guiada pela lógica do normal acontecer, ressalta a conclusão de que naquela tarde o telemóvel da arguida esteve desligado e tal ocorreu por acção voluntária da mesma e não por qualquer acto fortuito.

E esta conclusão retira-se da análise feita à facturação detalhada de fls. 545, relativa ao nº 965 73 7818, utilizado pela arguida, de onde constava que no dia 21.11.2012, entre as 13h22m e as 19h24m21s, tinha esse número sido alvo de tentativas de comunicação, não concretizadas (cfr. fls. 545 e 1231).

[Se nas tentativas de contacto das 13h22m00s, 15h50m40se 19h24m21s, por referência à célula que teria sido utilizada, aparecia o código BSC _ CBR2L – que significa estar o equipamento desligado (informação da TMN de fls. 1231), já na tentativa de comunicação das 15h28m37s aparecia o código N/E – que correspondia a célula não especificada (informação da TMN de fls. 1231)].

Para alguém que quisesse cometer um homicídio e não deixar nenhum vestígio digital da sua presença no local, seria sempre aconselhável ter o telemóvel desligado, pois assim evitava a sua localização celular, ou seja a identificação de células accionadas pela sua presença na área das mesmas, quer tivessem sido efectuados ou tentados contactos através do respectivo cartão SIM nele inserido, quer através do canal de controlo.

Como era seguramente do conhecimento da arguida, atenta a sua profissão, sendo as células apenas accionadas estando os telemóveis ligados, desligados nenhum registo fica, pelo que se torna impossível apurar, tendo por base os dados relativos a comunicações electrónicas, o local onde o telemóvel esteve nesse período, e consequentemente por onde andou o seu utilizador.

Então, logicamente se tem de concluir que a arguida deliberadamente desligou o seu telemóvel para evitar a existência de localizações celulares que demonstrassem ter-se deslocado a Coimbra nessa tarde, o que a comprometeria irremediavelmente nos factos.

Mas para o caso de a investigação já dispor de elementos que demonstrassem o desligamento desse equipamento, engendrou-se uma “avaria” no telemóvel.

E eis que “entra em cena” o marido da arguida – com a mesma concertado – que entretanto havia afastado todas as fortes suspeitas e até certezas de 99,9% de que tinha sido ela a praticar os factos, enviando cartas ao processo a aflorar várias questões, entre elas a do telemóvel (cfr. fls. 789 a 793 e 809 a 813).  Mas como acima explanado em V – para o que remetemos – as informações da carta não são coincidentes, num ponto decisivo e em que não podia equivocar-se – a data – por que importantíssima para o casal, por ter sido aquela em que teria ocorrido o suposto acidente que avariou o telemóvel – com o que vem a afirmar em audiência de julgamento, aqui em consonância com o afirmado pela arguida também em julgamento.

Só uma consequência se pode colher dessa discrepância, a de retirar qualquer credibilidade ao depoimento do marido da arguida e desta.

A posição ambígua que o marido da arguida revelou ao longo do processo, dizendo e desdizendo-se, retira credibilidade ao seu depoimento prestado em audiência de julgamento.

E neste conspecto comete o tribunal outro lapso na apreciação da prova – acompanhado de insuficiência da matéria de facto para a decisão – (fls 3712), ao concluir que o telemóvel não esteve sempre desligado durante toda a tarde de 21 de Novembro, por entender que a indicação N/E, ocorrida cerca das 15 horas daquele dia 21.11.2012, por dizer respeito a célula não especificada, equivalia a que nesse curto período o telemóvel esteve ligado mas sem capacidade de estabelecer ligação, donde resultava ser perfeitamente possível o alegado problema técnico.

Ora, N/E significa célula não especificada e só isso, pelo que daí não se pode concluir, sem mais, que o telemóvel tenha estado realmente ligado, não havendo evidência de ter estado ligado a alguma célula, pois se fosse o caso aparecia a identificação da célula, como é normal.

A certeza alcançada pelo tribunal não tem apoio suficiente em qualquer elemento de prova, não constando do processo qualquer dado técnico – fornecido, por exemplo, pela operadora de telecomunicações ou pela ANACOM – que habilitasse o tribunal a concluir como fez.

Um correcto exame crítico da prova impediria o tribunal de concluir nesse sentido, impondo-se, sim, que considerasse que da prova resultava lógica a conclusão de que naquela tarde o telemóvel da arguida esteve desligado e tal ocorrera por acção voluntária da mesma.

VI – Do trajecto entre Maia/Coimbra/Maia

Resulta da prova produzia ser perfeitamente possível a arguida ter saído da Maia por volta das 14h30m e ter chegado a Coimbra por forma a praticar os factos, ocorridos entre as 15h53m e as 16h19m (horas também consideradas pelo tribunal).

Conforme argumentámos em VI – para onde remetemos e o que reiteramos – do tempo que a arguida levou a sair de casa nenhuma prova existe, pelo que não tem fundamento a afirmação do tribunal de que depois de ser vista pela testemunha Ana Sofia Reis na entrada do prédio, por volta das 14.30 horas, a arguida terá gasto a arranjar-se entre 10 a 20 minutos antes de sair de casa.

Por outro lado, temos por segura a medição temporal feita pelos inspectores Machial Pinto e José Faustino, de fls. 404 a 406, sem que tivessem utilizado a auto-estrada, tendo demorado na viagem para Coimbra cerca de 2 horas e o mesmo na viagem de regresso à Maia.

Mas se demoramos cerca de 2h em estrada normal, que tem maior intensidade de tráfego, já o tempo se reduz substancialmente se optarmos por auto-estrada, designadamente pela A1, sendo que aí passamos para tempos estimados na ordem da 1h e pouco (por ex. no site ViaMichelin, para este itinerário, sabendo nós que este tempo é calculado com total respeito pelas velocidades máximas legalmente permitidas em cada troço, a previsão é de 133Km, em 1h40m, sendo que excedida a velocidade de referência obviamente que o tempo real diminui).

A arguida teve, pois, tempo suficiente para sair de sua casa por volta das 14h30m, conduzir até Coimbra o seu veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo Golf, matrícula 14-45-ZJ e estar no apartamento da avó de seu marido, em Coimbra, entre as 15h53m e a 16h 19m, por forma a matá-la.

Fê-lo seguramente pela auto-estrada, sem risco de ficar registada a sua passagem.

Na verdade, como resulta de diversas diligências efectuadas, desde que a arguida não utilizasse o identificador de Via Verde instalado no seu veículo, percurso mais seguro não tinha, porquanto as câmaras de vigilância instaladas nas auto-estradas não gravam, salvo pedido prévio em sentido contrário (vd., a título de exemplo, informação da Ascendi, concessionária da A7 e A11, a fls. 3 e 4, do Dossier 2).

Como não tinham nenhum sistema de gravação as câmaras de vídeo do Sistema de Gestão de Tráfego da C. M. Porto, em número de 90, geridas pela Divisão Municipal de Mobilidade da CMP, designadamente na VCI, Circunvalação, Ponte de Arrábida, Ponte do Freixo (cfr. informação de fls. 2204 a 2207).

Por seu turno:

–               As CCTV’s instaladas nas barreiras de portagem foram legalizadas para efeitos de protecção de pessoas e bens, não permitindo a identificação das matrículas das viaturas (vd. informação da Brisa, a fls. 31, do

Dossier 2) e

–               se utilizadas as vias manuais de passagem não ficam registadas quaisquer passagens nos respectivos identificadores (vd. informação da Via Verde, a fls. 1434).

Sabemos que a Via verde não foi utilizada pelo identificador associado ao referido Golf no dia 21.11.2012, atenta a informação da Via Verde Portugal, S. A. (cfr. fls. 9 a 11, do Dossier 2).

Assim, com toda a facilidade, para utilizar a auto-estrada, bastava à arguida utilizar a via manual de passagem, onde não fica qualquer registo, desde que não haja infracções ou não se peça recibo de onde conste a matrícula da viatura.

Encontrando-se a arguida em fase de recuperação, embora avançada, da intervenção cirúrgica a que tinha sido submetida no dia 13 de Novembro de 2012 (mas já conduzia e passava grandes períodos de tempo fora de casa), a condução em auto-estrada seria sempre mais confortável para si, por ter necessidade de utilizar menos vezes a caixa de velocidades manual do seu veículo, com necessidade de pressionar menos vezes o pedal da embraiagem.

Era lógico que optasse por utilizar a auto-estrada, como estamos crentes que o fez.

[O marido afirmou ter estranhado o gasto de combustível que constatou ter ocorrido entre o dia 11, em que abasteceu, e o dia 21, em que pegou no carro para vir a Coimbra, pois não se lembrava de nenhuma deslocação que o justificasse].

Nestes termos, mesmo saindo da Maia por volta das 14h30m, perfeitamente a tempo de cometer o homicídio chegaria, pois seguramente que poderia estar no apartamento da vítima no lapso temporal fixado (sem grandes dificuldades de encontrar lugar de estacionamento para o seu carro nas diversas ruas e travessas próximas do prédio onde morava a vítima).

Também neste ponto incorreu o tribunal em erro notório na apreciação da prova, por não tê-la apreciado de acordo com as regras da experiência comum, ao concluir que muito dificilmente a arguida poderia estar à hora em que ocorreu o homicídio em casa da vítima, quando isso era perfeitamente plausível.

VII – Do estado de saúde da arguida

Neste ponto, o que é relevante e o tribunal tinha de esclarecer é se a arguida reunia as condições físicas suficientes – e não as ideais, em situação de total recuperação – para que, no dia do homicídio, pudesse conduzir automóvel até Coimbra, apontar uma pistola Glock à vítima, disparar contra esta 14 tiros, assim a matando, e depois regressar à Maia, onde reside.

Mas o tribunal perfilhou uma visão redutora da questão, não atentando a todos os dados relevantes, mas apenas no depoimento do médico que a operou, que em concreto desconhecia as reais rotinas que a arguida seguia à data, o que o teria levado a constatar que a arguida estava em condições físicas de se deslocar a Coimbra a conduzir e praticar o homicídio (ele próprio disse que a arguida estava normal dentro do caso clínico).

Mais importante que a opinião do médico que a intervencionou sobre o que a arguida deveria ou não fazer decorrente da intervenção cirúrgica, era averiguar qual o estilo de vida que a arguida efectivamente adoptou, o que realmente fez no seu dia-a-dia, no espaço temporal que mediou entre a intervenção e o homicídio.

E aí, qualquer cidadão comum, após analisar a forma como se comportou nos dias antecedentes, só poderia concluir que a arguida estava em fase bem avançada de recuperação, tanto que já conduzia regularmente, manifestando grande autonomia, passando grandes períodos de tempo fora de casa sem dificuldade, pois se sacrifício/dor isso causasse, o normal seria permanecer mais por casa, ou somente ausentar-se por pequenos períodos (e nunca passar, designadamente, um dia fora de casa, como sucedeu em 19 de Novembro, uma manhã inteira num centro comercial e de tarde ir a Perafita, Matosinhos, como se verificou em 20 de Novembro, para além de já conduzir a 20 e 21 de Novembro).

São as evidências mostradas pelos autos, tão objectivas e inequívocas, que só poderiam levar o julgador a concluir pela aptidão física da arguida no sentido de cometer os factos que lhe eram imputados na acusação.

Nestes termos, se o tribunal efectivamente tivesse valorado a prova como devia, não incorrendo em erro notório na sua apreciação, como incorreu, teria concluído pela existência de disponibilidade física da arguida para se deslocar a Coimbra, conduzir o seu veículo e matar a vítima.

VIII – Da limpeza do carro quando arguida e marido se deslocaram à Directoria do Norte da PJ para entregar as armas que lhes estavam distribuídas, isto em 22.11.2012, dia seguinte ao do homicídio

Também neste particular o tribunal não cuidou em ponderar criticamente a prova que se produziu, à luz do normal acontecer, retirando ilações lógicas e consentâneas com as incongruências verificadas, tal como acima expusemos quanto a esta matéria, para o que remetemos na íntegra.

Numa adequada ponderação, teria o tribunal concluído pela inveracidade do depoimento do marido da arguida prestado em julgamento, face ao atraso verificado na chegada do casal à Directoria do Norte da PJ sobre a hora combinada, ainda mais quando o inspector Cardoso confirma que o próprio marido da arguida lhe disse ter constatado tal limpeza, pensando que a demora no regresso a casa da mulher quando foi buscar a filha ao infantário poderia ser derivado a isso.

E o mais plausível, ainda por cima se conjugado com os demais elementos probatórios que temos no processo que, no nosso entender, incriminam a arguida, é que esta cuidou de limpar o carro, inclusive os vidros, antes de entrar na Directoria do Norte, por temer que nele pudessem existir resíduos de disparo de arma de fogo, dado tê-lo utilizado para se deslocar a Coimbra aquando do homicídio e que a PJ, aproveitando o ensejo, na altura pudesse fazer pesquisa de resíduos no seu interior, ainda mais quando lhe estavam a exigir a entrega das armas de serviço, o que poderia significar que deles desconfiariam.

São juízos de normalidade como estes que o tribunal não teve, omissão que obstou a que conseguisse alcançar a correcta percepção do que efectivamente sucedeu, errando notoriamente na apreciação da prova.

5º – No cumprimento integral do disposto no art. 412, nº 3 do C. P. Penal, indicaremos de seguida os elementos de prova já antes aludidos e que, em nosso entender, impõem decisão diversa.  I – Do blusão, marca ln Extenso, e dos resíduos de disparo de arma de fogo nele detectados  Perita:

–  Fátima Machado, perita do LPC

Consultor Técnico:

–  Agostinho Santos

Testemunhal:

–  José Cardoso, inspector da PJ;

–  Alcides Rainho, inspector-chefe da PJ;

–  Mota Gonçalves, inspector-chefe da PJ;

–  José Romano, segurança da PJ;

–  Vítor Teixeira, inspector da PJ;

–  Sérgio Taipa, inspector da PJ;

–  Verónica Rodrigues, inspectora da PJ;

–  Raquel Ferreira, directora pedagógica do infantário;  – Ana Sofia Reis.

Depoimento da arguida, designadamente nos trechos atrás assinalados

Pericial:

–  Exame do LPC e esclarecimentos adicionais de fls. 719 a 723, 778, 779, 1441, 1442 e 1513.

Parecer do consultor técnico, Agostinho Santos, constante do Apenso I Parecer técnico do LPC, de fls. 3667 a 3669.

Documental:

–  Oficio do Sr. Director da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, de fls. 3569 a 3571;

–  Informações prestadas pela PJ, de fls. 22 a 25, 740, 1186, 1200 a 1205, 2275 a 2277, 2698 e 2699;

–  Fotografias de fls. 229, 376, 696 a 699;  – Fls. 231 a 244, 1317, 1486 a 1491.  II – Da lesão na mão direita da arguida  Pericial:

–  Exame médico de fls. 123, 223 a 225.

Consultor técnico Agostinho Santos.

Testemunhal:

–  José Cardoso;

–  Alcides Rainho;

–  Vítor Teixeira;

–  Sérgio Taipa;

–  Batista Romão, Director da Directoria do Norte da PJ .  Documental:

–  Fotografias de fls. 118 a 122, 224vº e 225, 696 a 699;  – Fls. 231 a 244, 1317, 1324, 1486 a 1491.  III – Da subtracção da pistola e munições  Pericial:

–  Exames do LPC e aditamentos de fls. 551 a 564, 781, 782, 785, 786;  – Exame de fls. 5 a 7, do Apenso 15497/12.8TDPRT.

Perito:

–  Mário Goulart, perito de balística no LPC.

Testemunhal:

–  Liliana Vasconcelos, inspectora da PJ;

–  Pedro David, inspector da PJ;

–  Rute Marcelo, inspectora da PJ;

–  Batista Romão;

–  Vítor Teixeira;

–  Rui Abreu, inspector da PJ.

Documental:

–  Ofícios da firma Antero Lopes. Lda., de fls. 3380, 3381 e 3392;

–  Doc. de fls. 3500;

–  Fotografias de fls. 696 a 699;

–  Apenso 15497/12.8TDPRT, designadamente fls. 1, 2, 3 a 10.  IV – Da motivação da arguida  Pericial:

–  Perícia Financeira de fls. 1238 a 1284.

Assistente:

–  Carlos Almeida.

Testemunhal:

–  Albertina Almeida;

–  Maria Flora;

–  Horácio Firmino.

Documental:

–  Documentação Bancária – Dossier 1;

–  Autos de apreensão de fls. 43, 44 e 145;

–  Extracto condomínio de fls. 744;

–  Elementos bancários de fls. 2623 e 2719;

–  Informações médicas de fls. 950, 951 e 2401,  – Processo disciplinar de fls. 2274, 2325 a 2365;  – Prontuário terapêutico de fls. 2762 a 2765.  V – Telemóvel da arguida desligado Documental:

–  Facturação detalhada e informação de fls. 544 a 546 e 1231;  – Cartas de fls. 789 a 793, 809 a 813.

Testemunhal:

–  Miguel Sousa, inspector da PJ.  VI – Trajecto Maia/Coimbra/Maia  Testemunhal:

–  Machial Pinto, inspector da PJ;  – José Faustino, inspector da PJ;  – Ana Sofia Reis.

Documental:

–  Doc. de fls. 404 a 406;

–  Facturação detalhada de fls. 746 e 747;

–  Informação da Via Verde, a fls. 1434;

–  Informação da DMVP de fls. 2204 a 2207;

–  Registo automóvel de fls. 2655;  – Dossier 2.

VII – Do estado de saúde da arguida  Testemunhal

–               José Vidal Pinheiro  Documental:

–               Localização celular de fls. 544;

–               Elementos clínicos de fls. 966, 1502, 2457, 2461, 2464 a 2673 e 2735.  VIII – Da limpeza do carro  Testemunhal:

–               José Cardoso;

–               Verónica Rodrigues;  – Raquel Ferreira.

Documental:

–               Mapa de assiduidade de fls. 1501;

–               Registo de entrada na Directoria do Norte da PJ, de fls. 2697 a 2699.

6º – Erradamente julgando, ao não dar como provados os factos agora impugnados, o tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova, verificando-se ainda, em determinados segmentos, como explanado, contradição e insuficiência da matéria de facto para a decisão alcançada.

7º – Mostram-se contrariadas as normas constantes dos arts. 127, 163 e 340, do C. P. Penal, bem como as dos arts. 131, 132, 3 75 e 66, todos do C. Penal.

8º – Deve, então, conceder-se provimento ao presente recurso e, revogando o acórdão em apreço, alterarse a decisão impugnada no que respeita à matéria de facto, nos termos expostos, passando a considerarse provados os factos considerados não provados.

9º – Uma vez fixada a matéria de facto, como indicado, deverá condenar-se a arguida Ana Alexandra de Andrade Tudela Saltão como autora material, em concurso efectivo, dos crimes de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 131, 132, nº 1, 2, als. c), e), h), j), do C. Penal e de peculato, p. e p. no art. 375, nº 1, do C. Penal, de que se encontrava acusada, na pena única de 25 anos de prisão, sendo:

– O crime de homicídio relativo ao facto de ter morto a tiro a avó de seu marido, pessoa de avançada idade, com 80 anos, em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade, designadamente:

  • Ter sido cometido através da utilização de arma de fogo contra uma pessoa particularmente indefesa, de 80 anos, que se encontrava sozinha, avó de seu marido;
  • A elevada violência com que foi praticado, em que vítima foi baleada pelo menos com 14 disparos;  • Tê-lo feito a arguida movida pela avidez de vir a receber, através do seu cônjuge, neto da vítima, via sua sogra (filha da vítima), parte dos consideráveis fundos financeiros que aquela detinha e de não lhe pagarem, ela e o marido, mais nada por conta dos empréstimos contraídos perante a avó;
  • Ter revelado premeditação e frieza de ânimo na preparação e execução do crime;
  • Ter utilizado arma de fogo e munições que subtraiu, acessíveis em razão das suas funções, a uma sua colega no seu local de trabalho.

– O crime de peculato como crime meio, consistente na subtracção da pistola Glock, calibre 9 mm Parabellum e do carregador nela inserido, este com 14 munições de igual calibre, marca Sellier & Bellot, tipo JHP, de 115 grains, lote 09, arma e munições que estavam distribuídas à Inspectora Liliana Vasconcelos, a exercer funções também na Directoria do Norte da PJ, no mesmo piso e no gabinete quase em frente ao da arguida, apropriação que foi perpetrada tendo em vista assassinar aquela familiar.  10º – Está ainda a arguida incursa na pena acessória de proibição do exercício de função, da previsão do art. 66, do C. Penal, que deverá ser decretada.

11º – Deverá o pedido cível formulado pelo Ministério Público, em representação do Estado – Polícia

Judiciária – ser julgado procedente, por provado, e ser a arguida condenada a pagar a quantia de € 319, 12 (trezentos e dezanove euros e doze cêntimos), correspondente ao valor da pistola Glock e das 14 munições subtraídas, acrescida de juros de mora, desde a data em que foi notificada para contestar o pedido cível, até integral pagamento».

3.

O recurso foi admitido.

 

 A arguida respondeu defendendo a manutenção do decidido, contraditando todos os fundamentos apresentados no recurso.

Sintetizando os argumentos apresentados, relativamente aos fundamentos invocados no recurso a propósito da prova pericial feita ao blusão e aos vestígios detectados refere que pelo menos os procedimentos a que o mesmo foi sujeito enquanto se manteve nas instalações da P.J. determinaram a irrelevância total do resultado da perícia. Sobre a lesão que apresentava na mão direita diz que a prova demonstrou que ela não resultou, nem podia ter resultado, do manuseamento de arma de fogo. Relativamente ao furto da arma da inspectora Liliana Vasconcelos alega que o que resultou do processo é que a arma foi perdida. Quanto às munições que municiariam esta arma alega, ainda, que não ficou demonstrado que fossem, todas elas, do lote 09, pois que se apurou, igualmente, que a PJ usava outros lotes para municiar as armas distribuídas aos seus inspectores. Já quanto à motivação imputada para a perpetração do crime relembra que, como resultou, trata-se de uma tese completamente irrealista, nomeadamente porque nunca beneficiaria economicamente da morte da vítima. Sobre o facto de ter desligado voluntariamente o seu telemóvel alega que este facto não ficou provado e que mesmo que se tivesse provado tal sempre seria irrelevante para o desfecho do processo.

Quanto à possibilidade de, mesmo estando na localidade onde reside às 14h30, conseguir perpetrar o crime tendo em conta a hora que o tribunal fixou, relembra que para além de não se ter, sequer, indicado que se tivesse deslocado a Coimbra no dia em causa, isso nunca seria possível, dado o tempo decorrido entre as 14h30 e a hora a que o crime foi cometido. Para além disso o seu estado de saúde, à data, não lhe permitia fazer viagens nem a sua personalidade é consentânea com o cometimento do crime, nas circunstâncias concretas em que foi perpetrado.

Nesta Relação o Sr. P.G.A. emitiu parecer.

Começa por realçar o facto de o tribunal ter demonstrado, logo no início do julgamento, que para si o resultado da perícia realizada ao blusão da arguida nada valia em termos probatórios, isto antes de a demais prova ter sido produzida e não permitindo que isso fosse feito em liberdade e que este ponto de partida do tribunal inquinou todo o desenvolvimento do julgamento, bem como a decisão final. Conclui que face a toda a prova produzida a contaminação invocada ficou excluída.

Refere, ainda, ser incompreensível a atitude do tribunal, de não valorizar as declarações do inspector que mais interveio na investigação, de não valorizar as declarações da inspectora Liliana, de não valorizar os depoimentos de testemunhas que relataram as conversas que o marido da arguida teve com elas, onde este falou da personalidade violenta da arguida, da depressão que sofria, da ingestão de bebidas alcoólicas, dos empréstimos feitos pela vítima, das dificuldades económicas que viviam, do desagrado de a vítima lhes ter exigido o pagamento dos empréstimos, da limpeza do veículo e da anormal descida de combustível no veículo.

Ao invés, aceitou acriticamente as declarações do marido e o seu recuo, sem sequer se ter pronunciado sobre este facto.

Sobre o trabalho de análise das provas, e depois de referências concretas a outras situações, conclui que o tribunal não procedeu à análise crítica e conjunta das provas, assim como não procedeu à apreciação global dos factos e que omitiu a realização de diligências essenciais ao apuramento da verdade.

Termina requerendo o reenvio do processo para novo julgamento, em que se proceda à correcção dos vícios apontados e onde sejam realizadas as provas sugeridas.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P.

A arguida respondeu. Sobre a realização de novas provas, entende que todas as provas relevantes foram produzidas e que a realização das provas sugeridas, neste momento, não tem cabimento.

4.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

*

*

FACTOS PROVADOS

5.

No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos (factos que aqui se

submetem a números – art. 374º, nº 2, do C.P.P.):

1  – A arguida é licenciada em Direito, exercendo as funções de Inspectora da PJ desde 27.10.2005, tendo sido admitida na Escola de Polícia Judiciária em 23.10.2003 e como estagiária em 22.10.2004.

2  – Desde Janeiro de 2006 que está notada com a classificação de Muito Bom.

3  – Está colocada na Directoria do Norte, sita no Porto, desde 20.11.2007. Pelo menos a partir de Março de 2008 que aí sempre tem exercido funções em Secções tendo por objecto a investigação da criminalidade económica, designadamente na 1ª Secção da Secção Regional de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica Financeira e na 1ª Brigada da Secção Regional de Investigação da Corrupção. 4 – Em termos disciplinares, no âmbito do PD nº 50/2011-UDI, foi aplicada à arguida a pena de repreensão escrita, ficando o registo suspenso pelo período de um ano, por factos praticados no exercício das suas funções em 22.6.2011, consubstanciados em violação do dever de correcção, medida que foi aplicada por decisão do Director Nacional da PJ de 31.5.2012, da qual foi interposto recurso hierárquico, sendo este indeferido por despacho da Ministra da Justiça de 3.12.2012, mantendo-se inalterado o acto recorrido. 5 – A arguida é casada com Carlos Jorge Almeida Gomes Coelho, também Inspector da PJ, a exercer funções na Directoria do Norte, sendo este neto da vítima Filomena de Jesus Gonçalves.

6  – A arguida e seu marido têm residido na avenida D. Manuel II, nº 2017, 5º dto., traseiras, Maia, local onde moravam à data da morte da Filomena Gonçalves, ocorrida em 21.11.2012.

7  – Têm apenas uma filha, com eles residente, nascida em 11.3.2009.

*

I – Da situação económica da arguida e de seu marido

8 – Entre Julho e Dezembro de 2012, a arguida e seu marido, nas contas bancárias n.º 0-3791501, do BPI (ambos titulares), n.º 45409924642, do ActivoBank – Millennium BCP (Carlos Coelho titular) e n.º 0131000120800, da CGD (arguida titular), tiveram os seguintes fluxos financeiros:

Valores do Total do Período (Julho a Dezembro de 2012)

                Descritivo                                             Entradas €                                Saídas €

                Remunerações                                     19.138,12

               Depósitos                                             4.150,00

                Transferências                                      637,25                                      3.674,23

                Levantamentos                                                                                     2.530,00

               Pagamento cartões de crédito                                                              10.202,00

                Empréstimo Habitação                                                                         2.793,98

                Cheques                                                                                               406,36

                Subscrição Poupança                                                                           300,00

                Pagamento Serviços                                                                             785,59

                Compras                                                                                              1.789,43

                Pagamentos                                                                                         910,95

                Juros Devedores                                                                                  63,53

                Seguro                                                                                                 59,40

Total                                                               23.970,37                                 23.515,47

9              – No dito período o total das entradas, € 23.970,37, foi superior ao total das saídas, € 23.515,47, resultando uma diferença de € 454,90. Contudo, tal só ocorreu em resultado de ter havido entradas adicionais de depósitos e transferências nos valores totais de € 4.150,00 e € 637,25, respectivamente.

10           – Apenas uma parte desses depósitos, no montante de € 1.670,00, teve proveniência em levantamentos efetuados em contas bancárias tituladas pela arguida e marido.

11           – No que respeita a cartões de crédito, por referência à mencionada conta que possuíam no BPI, a arguida e marido eram titulares dos cartões Visa Universo n.ºs 4406 3700 51749215 (antes cartão 8488991) e 4406370023849685 (antes cartão 6135772), associados às contas cartão n.ºs 440637050765/2000 e 4000, respectivamente.

12           – Os mesmos eram utilizados para pagamento de despesas correntes no nosso país, mas também em deslocações, estadias e despesas ao estrangeiro (vd. designadamente pagamentos de 17.7.2012 – viagem de avião e 23.8.2012 – restaurante em Barcelona (cartão Carlos Coelho); 16.9.2012 à Logitravel (cartão Ana Saltão).

13           – Possuía ainda a arguida, por referência à conta n.º 0131000120800, da CGD, de que era titular, o cartão Visa Soma n.º 8599291, que também utilizava.

14           – O seu marido, relativo à conta DO n.º 45409924642, que possuía no ActivoBank, tinha o cartão Visa Classic n.º 4544962457716000, que usava, como fez designadamente em 24.8.2012 em Barcelona.

15           – O valor mensal dos pagamentos com todos os cartões de crédito supra descritos representava cerca de 50% do valor das remunerações que o casal auferia.

16           – Suportavam ainda o reembolso mensal de um crédito hipotecário que haviam contraído perante o BPI para aquisição da casa onde residiam, efectuado através de débito na referida conta à ordem de que eram titulares, o qual ascendia em 2012 ao valor médio mensal de cerca de 465,00.

17           – Em 1.11.2012, o casal tinha em dívida perante a administração do condomínio do prédio onde morava o montante de € 134,23, ascendendo já a dívida a € 574,30, isto em 1.2.2013.

18           – Durante o ano de 2012, o marido da arguida recorreu pelo menos 2 vezes aos préstimos da sua avó Filomena Gonçalves para que lhes emprestasse dinheiro.

19           – Assim, a esse título, em 2012, a avó do Carlos Coelho entregou-lhe, pelo menos, as seguintes quantias:

–  em data não apurada, € 500,00 (quinhentos euros);

–  em 20.2.2012 a vítima preencheu e assinou o cheque n.º 3000000043, no montante de € 1.000,00 (mil euros), sacado sobre a conta n.º 0000.05997150001, do Santander Totta, de que era titular, cheque que emitiu à ordem do neto e lho entregou.

20           – Em poder desse cheque, o Carlos Jorge depositou-o na conta n.º 0-3791501.000.001, do BPI, de que era co-titular com a arguida, o qual foi apresentado no Serviço de Compensação em 23.2.2012, tendo recebido a quantia nele titulada.

21           – Para amortização de todos estes empréstimos, conforme havia combinado com a avó, o Carlos Coelho e a arguida foram entregando mensalmente à Filomena Gonçalves determinadas quantias em dinheiro, mediante transferência bancária de contas que o casal possuía para a conta de DO n.º

0000.05997150001, do Santander Totta, de que aquela era titular, perfazendo o montante global de € 500,00, nas datas e do modo a seguir discriminado:

–               23.5.2012 – € 50,00 – proveniente da conta nº 45409924642, domiciliada no ActivoBank, de que era único titular o Carlos Coelho, mediante ordem de 22.5.2012;

–               22.6.2012 – € 50,00 – proveniente da referida conta nº 45409924642, domiciliada no ActivoBank, mediante ordem dada nesse mesmo dia;

–               25.7.2012 – € 50,00 – proveniente da mesma conta nº 45409924642, domiciliada no ActivoBank, mediante ordem de 24.7.2012;

–               7.9.2012 – € 50,00 – proveniente da conta nº 0-3791501.000.001, do BPI, de que a arguida e marido eram titulares, ordem dada em 6.9.2012;

–               28.9.2012 – € 150,00 – proveniente da conta nº 0-3791501.000.001, do BPI, de que a arguida e marido eram titulares, ordem dada em 27.9.2012;

–               25.10.2012 – € 150,00 – proveniente da conta nº 3791501.000.001, do BPI, de que a arguida e marido eram titulares, ordem dada em 24.10.2012.

22 – Em 17.8.2012 o Carlos Jorge depositou na conta nº 0-3791501.000.001, do BPI, de que era titular com a arguida, em caixa automática, sita na avenida Calouste Gulbenkian, em Coimbra, pelas 15h37m desse dia, mediante utilização do cartão multibanco n.º 454703006095 6983, por si titulado a quantia de

1.000,00 Euros em numerário.

*

II – Da situação pessoal e económica da vítima Filomena de Jesus Gonçalves

23           – A Filomena de Jesus Gonçalves, nascida em 31.10.1932, residia sozinha num apartamento, sua propriedade, sito na rua António José de Almeida, n.º 86, cave direita, em Coimbra.

24           – À data do seu óbito, ocorrido em 21.11.2012, a vítima, NISS 11050237143, então com 80 anos, auferia uma pensão de velhice processada pelo Centro Nacional de Pensões, no montante mensal de € 379,04, sendo pensionista desde 31.10.1995.

25           – Em tempos, a vítima explorou um talho no Marcado Municipal de Coimbra, de onde retirou consideráveis proveitos económicos.

26           – Por ser uma pessoa muito económica, dos rendimentos que foi obtendo ao longo da sua vida logrou amealhar um elevado pecúlio monetário, pelo que tinha, à data do seu óbito, as seguintes poupanças nas instituições bancárias infra indicadas:

Santander Totta (As contas DP e DO eram co-tituladas pela vítima e sua filha Rosa Maria Gonçalves de Almeida Coelho). A quantia total de € 111.211,64, assim discriminada:

  • Seguro Rendimento Campeão – € 35.000,00 (Era tomadora do seguro a Filomena Gonçalves e beneficiária em caso de morte a filha Rosa Maria, seguro constituído em 10.7.2007 e termo em 30.10.2015);
  • Seguro Financeiro Premium – € 25.000,00 (Era tomadora do seguro a Filomena Gonçalves, sendo beneficiários em caso de morte os seus herdeiros legais, em conjunto, na proporção do respectivo título sucessório, seguro que foi constituído em 28.4.2008.

Esta apólice, que tinha o prazo de 5 anos, encontra-se anulada por termo do contrato desde 28.4.2013, tendo o seu valor sido creditado na conta DO nº 0000.05997150001, de que vítima e filha eram cotitulares.

  • Depósito a Prazo Garantido, correspondente à conta DP nº 0003.23944283061, associada à conta DO nº 0000.05997150001 – € 50.000,00 (constituído em 13.11.2012).

Este DP foi liquidado em 30.4.2013, tendo o seu valor sido transferido para a conta DO nº 0000.1025444001, de que são titulares a Rosa Maria e marido.

  • Conta Rendimento Poupança nº 0003.32219180020, que possuía em 21.11.2012 a quantia de €

1.000,00.

  • Conta Depósito à Ordem nº 0000.05997150001, que possuía em 21.11.2012 o saldo de € 211,64.

Montepio Geral (contas co-tituladas pela vítima e filho Carlos Alberto Gonçalves de Almeida). A

quantia total de € 67.310,18, assim discriminada:

  • Depósito a Prazo – Montepio Aforro Prémio 2012 1a Série, correspondente à conta n.º 033.15.182886-1, no montante de € 35.000,00, constituído em 30.1.2012.

Este DP foi mobilizado e transferido o seu valor em 10.1.2013 para a conta DO n.º 033.10.060168-2.

  • Conta Depósito à Ordem nº 033.10.060168-2, a qual possuía o saldo de € 1.396,69 à data da sua morte.

Esta conta foi liquidada em 10.1.2013 e transferida nessa data a quantia de € 36.374,08 (resultante do mencionado montante de € 35.000,00 + saldo de € 1.378,24 – despesas de transferência e imposto), para a conta 0018 0000 23191429001 20, de que era titular o referido Carlos Almeida, na qualidade de herdeiro.

  • Seguro de capitalização – Montepio Rendinvest 2007, correspondente à Apólice nº 02.000.341, conta fundo nº 033.69.000338-0. com início em 30.7.2007 e com termo previsto para 30.7.2015, no qual a pessoa segura era a Filomena Gonçalves e beneficiário o filho Carlos Almeida, com o capital inicial de € 28.490,00, que em 31.10.2012 ascendia a € 30.913,49, o qual foi liquidado por falecimento daquela e paga a indemnização ao beneficiário Carlos Almeida em 28.1.2013, no montante de € 29.237,78.

*

III – Da decisão de matar a vítima

27  – À época, a arguida andava a ser seguida em consultas de psiquiatria no Hospital de Dia da Maia, pertença do Grupo Trofa Saúde, pelo médico psiquiatra Dr. Ferreira de Sousa, o que já sucedia desde 1.8.2011, apresentando sintomatologia compatível com diagnóstico de síndroma depressiva. A última consulta em que esteve presente antes da morte da Filomena Gonçalves ocorreu em 18.10.2012, estando à data medicada com Escitalopram – 20 mg/dia, Lorazepam – 1 ou 2 mg/dia, Loflazepato de etilo – <ou = 6 mg/dia. Entre 1.8.2011 e 18.10.2012, inclusive, a arguida recorreu a 9 consultas.

28  – As armas de fogo maioritariamente distribuídas aos inspectores da PJ, na Directoria do Norte, eram idênticas às da arguida e marido, ou seja, pistolas semiautomáticas, marca Glock, calibre 9 mm Parabellum, modelo 19.

29  – A colega da arguida, inspectora Liliana Vasconcelos, que também trabalhava na secção investigação da criminalidade económico-financeira da Directoria do Norte da PJ, tinha o seu gabinete na sala 1, do 8º piso do edifício da PJ, sito na rua Assiz Vaz, nº 113, no Porto.

30  – A arguida também exercia funções nesse piso, na sala 4C, situando-se o seu gabinete quase em frente ao da Liliana, estando separados por um corredor.

31  – À inspectora Liliana estava distribuída pela PJ, desde 20.9.2011, como arma de serviço, a pistola semiautomática, marca Glock, calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação angloamericana), modelo 19, com o n.º de série PBW136, no valor de € 316,32.

32  – Esta inspectora guardava diariamente a arma na 3ª e última gaveta do módulo da sua secretária, dentro do respectivo estojo.

33  – Aí a deixava habitualmente ao final do dia, por só a utilizar em situações operacionais, tal como fazia a generalidade dos colegas que trabalhavam na investigação da criminalidade económico-financeira, tendo no entanto o cuidado de fechar a gaveta à chave.

34  – A última vez que a inspectora Liliana a utilizou foi no dia 8.10.2012, no decurso de uma busca em que participou em Matosinhos.

35  – À inspectora Liliana foi distribuída uma caixa de 50 munições, sendo que pelo menos 36 eram do lote

09.

36  – O lote 09, da marca Sellier &Bellot, é um dos que é utilizado pela PJ, nomeadamente na Directoria do Norte, em munições de uso operacional.

*

IV – Os dias seguintes à retirada da arma

37  – Por ter uma intervenção cirúrgica programada para 13.11.2012 (3ª feira), na véspera a arguida já não foi trabalhar, tendo gozado a 12 uma folga de piquete, vindo a iniciar a baixa por doença a 13.

38  – Na data programada, em 13.11.2012, a arguida foi intervencionada no Hospital Privado da Trofa, pela equipa cirúrgica chefiada pelo médico Dr. José Vidal Pinheiro, a um mioma uterino, tendo sido submetida a uma miomectomia via vaginal (ressectoscopia) e colporrafia posterior, intervenção com início às 10h25m e termo às 11h30m.

39  – Para o efeito, deu entrada nesse dia no Hospital, pelas 8h32m, tendo tido alta na mesma data, ao final do dia, sendo que pelo menos às 22h50m23s já estava em sua casa.

40  – Entre os dias 12 (2a feira) e 17 (sábado) de Novembro de 2012, a arguida teve em sua casa os seus pais, tendo em conta a referida intervenção, a fim de lhe prestarem apoio familiar.

41  – Paulatinamente, a arguida foi retomando as suas rotinas diárias.

 

42  Em 19.11.2012 (2ª feira), por o seu marido não ter ido trabalhar, a arguida passou parte do dia com o mesmo.

43  – Levaram a filha de manhã ao infantário que frequentava, denominado O Pimpolho, sito na rua dos Carvalhos, n.º 100, Vermoim, Maia, aí deixando a menor por volta das 9h30m.

44  – Ainda nesse dia, pelas 11h41m38s a arguida encontrava-se em local servido pela célula da TMN Nogueira Porto-3 (célula dominante na zona do Centro Comercial Maia Jardim) e pelas 12h42m51s encontrava-se em local servido pela célula Trofa Centro-1.

45  – Deslocou-se a arguida à Trofa, mais concretamente ao Hospital Privado da Trofa, na companhia de seu marido, a fim contactar o médico que lhe tinha feito a cirurgia.

46  – A deslocação efectuou-se de automóvel, no veículo ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo Golf, de cor cinzenta, matrícula 14-45-ZJ, pertença da arguida.

47  – No regresso, almoçaram no Hotel Internacional do Porto.

48  – No Porto estiveram, pelo menos, entre as 14h00m13s e as 17h06m18s.

49  – Após, deslocando-se no veículo Golf, o casal dirigiu-se à Maia, ao infantário O Pimpolho, onde foram buscar a filha cerca das 17h30m.

50  – Aí chegados, enquanto a arguida entrou no infantário para o efeito, o seu marido aguardou no carro.

51  – No dia seguinte, 20.11.2012, o seu marido foi trabalhar, tendo-se deslocado para as instalações da Directoria do Norte no Metro do Porto, como era habitual, fazendo uso do cartão n.º 39632, dos Transportes Intermodais do Porto (TlP), que lhe estava afecto. Para o efeito, o marido da arguida entrou na estação Fórum da Maia, pelas 7h55m, mudou de linha na estação da Trindade, pelas 8h26m e saiu na estação de Salgueiros, ambas no Porto. Apenas regressou a casa já depois das 18h, voltando a utilizar os TlP, entrando na estação de Salgueiros pelas 17h33m e na da Trindade pelas 17h45m, seguindo em direcção à do Forum da Maia.

52  – Assim, em 20.11.2012, retomando as suas rotinas normais, como habitualmente fazia no seu dia-adia, conduzindo o seu veículo Golf, a arguida levou a sua filha, pelas 9h30m, ao infantário, onde a deixou.  53 – Após, sempre a conduzir o seu veículo, a arguida dirigiu-se ao Centro Comercial Maia Jardim, sito na Maia, onde permaneceu pelo menos entre as 10h08m55s e as 12h59m45s.

54  – Nesse Centro, a arguida efectuou compras no hipermercado denominado Continente Maia Jardim e na loja Well’s Maia Jardim, onde utilizou o cartão de Cliente Continente nº 185 021 782 2594, relativo à conta nº 185 004 868 8789, titulado pelo seu marido, isto pelas 11h38m e 12h11m (Continente) e 12h42m (Well’s).

55  – Nas aquisições realizadas pelas 12h11m e 12h42m, nos montantes de € 28,41 e € 8,27, respectivamente, a arguida utilizou como meio de pagamento o seu cartão Visa Electron Universo, do Banco BPI, emitido em seu nome, relativo à conta que aí possuía n.º 0-3791501.000.001, de que era titular com seu marido.

56  – Depois de sair do referido Centro Comercial, ao volante do seu veículo Golf, a arguida dirigiu-se ao

McDonald’s da Maia, onde pelas 13h06m, no McDrive, adquiriu produtos aí comercializados, que pagou com o seu cartão multibanco relativa à conta n.º 0131.000120.800, da CGD, de que era titular, após o que abandonou ao local sempre a conduzir a sua viatura.

57  – A conduzir o seu automóvel, cerca das 15h30m, a arguida foi buscar a filha ao infantário, após o que se dirigiu ao Hospital Privado da Boa Nova, sito em Perafita, Matosinhos, por aí estar agendada uma consulta de pediatria de sua filha.

*

V – O dia do homicídio – 21.11.2012 (4a feira)

58  – Em 21.11.2012, o marido da arguida foi, de novo, trabalhar, tendo-se deslocado para as instalações da Directoria do Norte, da PJ, no Metro do Porto, fazendo mais uma vez uso do cartão nº 39632, dos Transportes Intermodais do Porto, que lhe estava afecto. Para o efeito, o marido da arguida entrou na Estação Fórum da Maia, pelas 7h52m, mudou de linha na estação da Trindade, pelas 8h26m e saiu na estação de Salgueiros, ambas no Porto.

59  – Como também era habitual, a arguida levou a sua filha ao infantário O Pimpolho, conduzindo o seu automóvel Golf, entre as 9h00me as 9h30m.

60  – Depois de deixar a filha, pelas 9h30m50s, em local servido pela célula GSM Nogueira-Porto 3, a arguida ligou do seu telemóvel n.º 965737818 para o de seu marido, n.º 964149061, momento a partir do qual não mais efectuou ou recebeu quaisquer outras comunicações telefónica.

61  – Na ocasião, encontrava-se a vítima sozinha, pois a sua filha Rosa Maria, que aí tinha almoçado juntamente com seu marido, como era habitual às 4ª feiras e sábados, já tinha saído pelas 15h45m em direcção ao ACM, onde tinha marcada uma sessão de sauna pelas 16h. Já antes o genro da vítima também se tinha ausentado e ido para sua casa, sita na rua dos Combatentes da Grande Guerra, nº 107, 1º dto., Coimbra.

62  – Foram desferidos pelo menos 14 tiros em direcção à vítima.

63  – Com os impactos dos projécteis, a vítima foi sendo projectada para trás, tendo ficado caída no chão, na posição de sentada, com o tronco direito, encostada à porta-janela.

64  – Assim, foi a vítima atingida no seu corpo, pelo menos, por 14 projécteis que lhe causaram lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e abdominais, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 1102 a 1115, que aqui se dão por reproduzidas.

65  – Tais lesões foram causa necessária e directa da sua morte.

66  – A arguida compareceu no infantário O Pimpolho pelas 19h35/19h40m para ir buscar a filha, altura em que mais nenhuma criança lá se encontrava, quando o habitual era ir aí buscá-la pelas 17h30m/18h.

67  – Na ocasião, a arguida vestia o blusão comprido cinzento, marca ln Extenso.

68  – Durante a tarde deste dia, depois das 15h15m o marido ligou, por diversas vezes, para o n.º 965737818, de sua esposa, não tendo esta nunca atendido por o telemóvel estar desligado, o que não era normal.

69  De igual modo, pelas 18h17m, o marido da arguida ligou do seu telemóvel n.º 964149061 para o telefone fixo instalado na sua residência, n.º 309 803 630, na expectativa que a arguida estivesse em casa, não tendo ninguém atendido, por aquela estar ausente.

70  – Por, aproximadamente desde as 20h30m, a Rosa Maria, filha da vítima, ter tentado contactar telefonicamente a sua mãe por diversas vezes, ligando para o telefone fixo n.º 239835821, instalado na residência desta última, sem que tivesse sido atendida, começou a ficar preocupada, temendo que tivesse sucedido algo à progenitora.

71  – Assim, ainda antes das 21h30m, a Rosa Maria e marido saíram de casa e dirigiram-se à residência da Filomena Gonçalves.

72  – Aí chegados, após tocarem à campainha, como aquela não os atendia, contactaram a vizinha do andar em frente à vítima (c/v esq.), que guardava uma chave da casa da Filomena Gonçalves, no sentido de lhes abrir a porta.

73  – Após entrarem os três na residência da vítima, vieram a encontrá-la sem vida na sala, no local onde tinha sido baleada, encostada à porta-janela.

74  – De imediato, através de telefonema efectuado pelas 21h29m56s, do telefone fixo da vítima para o 112, foi accionada a emergência médica e a comparência das autoridades.

75  – No decurso das investigações, pela PJ, em 21 e 22.11.2012, nessa sala foram inicialmente recolhidas 13 (treze) cápsulas deflagradas.

76  – E, em 27.11.2012, por detrás de um móvel existente na parede oposta à varanda, apreendida 1 (uma) outra cápsula deflagrada;

77  – sendo as 14 cápsulas de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação angloamericana, marca Sellier &Bellot, lote 9).

78  – Todas estas cápsulas deflagradas apresentam características de classe habitualmente observadas em elementos deflagrados por pistolas de marca Glock.

79  – Na mesma sala, ainda em 23.11.2012, foram apreendidos 7 (sete) projécteis, calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana.

80  – No âmbito da autópsia realizada à vítima mais projécteis foram recolhidos no seu corpo, também de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação angloamericana), assim como fragmentos de munições de igual calibre.

VI – Os dias seguintes ao homicídio

81  – Em 22.11.2012, no seguimento das investigações realizadas, a arguida e seu marido, quando estavam em casa, foram contactados pela PJ, no sentido de se deslocarem à Directoria do Norte.

82  – Todavia, antes de seguirem para a Directoria, a arguida disse para o marido aguardar em casa, enquanto ia buscar a filha ao infantário.

83  – Só pelas 19h a arguida foi buscar a filha ao infantário.

84  – De regresso a casa, dirigiram-se então às instalações da Directoria do Norte.

85  – Mas, aí chegados, ao saírem do carro, a arguida limpou os vidros das portas da frente, só depois entrando nas instalações pelas 20h09m.

86  – Em 25.11.2012, pelas 00h15m, uma equipa da PJ deslocou-se à já referida residência da arguida, sita na avenida D. Manuel II, nº 2017, 5º dto., traseiras, Maia, onde a instaram a entregar a roupa que tinha usado no dia do homicídio, ocorrido em 21 de Novembro.

87  – Para o efeito, a arguida entregou à equipa da PJ o já mencionado blusão comprido, de cor cinzenta, marca ln Extenso.

88  – No acto, mais entregou a essa equipa um par de calças de ganga, de cor azul, marca Mango, e um par de sapatilhas, nº 38, de cor preta, marca Nike.

89  – No que respeita ao blusão, a arguida deslocou-se a um dos quartos, após o que o entregou à PJ. 90 – Examinados esses objectos no LPC, verificou-se que apenas o blusão tinha resíduos compatíveis com disparo de arma de fogo.

91    – Nele foram detectadas partículas características/consistentes de resíduos de disparo genericamente constituídas por chumbo, antimónio e bário, sendo 5 características na amostra recolhida nas mangas e 1 na amostra recolhida na parte anterior, partículas que eram compatíveis com as detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime.

92    – Em 26.11.2012, quando a arguida se encontrava em casa de seus pais, sita na rua da Lapa, nº 28, 2º B, Figueira da Foz, a PJ aí se deslocou, a fim de exibir àquela o computador do casal, marca Asus, que havia sido facultado à PJ por seu marido.

93    – Na ocasião, ao manuseá-lo, a arguida, que vestia uma camisola de lã, de cor verde puxou as mangas para baixo tapando quase por completo as mãos, embora o ambiente estivesse aquecido.

*

Outros Factos Provados:

94    – A pistola semiautomática, marca Glock, calibre 9 mm Parabellum, modelo 19 (9×19 mm ou 9 mm

Luger na designação anglo-americana), com o n.º de série PBWI36, tem o valor de € 316,32;

95    – As munições, calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), marca Sellier &Bellot, de origem checa, do lote 09, custam € 0,20 por unidade.

96    – A pistola e munições distribuídas à inspectora não foram até à data apreendidas ou recuperadas.

97    – Ana Saltão é a primogénita de dois descendentes nascidos na constância do casamento dos progenitores, sendo a dinâmica da família descrita como normativa e salientada a coesão, o diálogo e as relações de afecto entre os seus elementos.

98    – O percurso académico da arguida decorreu sem problemas, tendo concluído o curso de Direito com 23 anos. Posteriormente efectuou estágio de advocacia, com a duração de 18 meses. Passou então a exercer esta actividade, abrindo o seu próprio escritório, o qual manteve apenas dois anos. Em paralelo colaborava com uma empresa de energias renováveis, onde prestava apoio jurídico, actividade que manteve após o encerramento do seu escritório. Em 2003 integrou, através de candidatura concursal a Polícia Judiciária, tendo frequentado o respectivo curso durante um ano.

99    Após esse período passou a inspectora estagiária durante igual período, exercendo funções em Lisboa e Coimbra.

100  – Em 2005 foi colocada na directoria do Porto, mas disponibilizou-se para fazer uma comissão de serviços nos Açores, onde permaneceu até Novembro de 2007, conjuntamente com o marido, com quem havia casado em Novembro de 2005. De volta ao Continente integrou a Directoria do Norte, onde exerceu funções até à sua reclusão, decretada no âmbito do presente processo, ocorrida em 26/11/2012 e com a duração aproximada de seis meses, tendo posteriormente a essa data ocorrido a sua suspensão de funções, que reporta a 05/06/2013, advindo os proventos da família do trabalho do cônjuge, também inspector da polícia judiciária, o qual aufere 1371.56 euros.

101  – Quando regressou dos Açores fixa-se na cidade da Maia, onde o casal adquire habitação.

102  – Desta união existe uma descendente que conta actualmente 5 anos.

103  – É descrita como responsável, zelosa pelo bem-estar dos que lhe são próximos, designadamente da descendente, sendo que com a família alargada da própria mantém relações de proximidade afectiva sendo frequente o contacto e convívio com os mesmos, incluindo os familiares do cônjuge com quem continua a privar com regularidade. Mantém uma relação próxima com a sogra.

104  – Considerando a diminuição de rendimentos desde a suspensão da arguida, o agregado beneficia da colaboração económica dos pais de Ana Saltão, os quais assumem, especificamente, o pagamento do infantário da descendente que orça num valor mensal entre 300 e 350 €, assegurando o casal as despesas de habitação e subsistência, tendo encargos mais significativos com o crédito hipotecário da ordem dos 451 euros mensais.

105  – Na vertente social são-lhe atribuídas características de respeito pelas regras de civilidade e prestabilidade, sendo-lhe ainda assinalado o envolvimento em causas de solidariedade, designadamente de angariação de fundos para apoio a uma amiga, doente oncológica.

106  – A arguida não tem antecedentes criminais.

6.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa,

nomeadamente (factos que aqui se submetem a números – art. 374º, nº 2, do C.P.P.):

1)     O pedido de empréstimo à vítima feito pelo marido da arguida deveu-se às dificuldades económicas que o casal ia sentindo para equilibrar as suas contas em 2012.

2)     O marido da arguida recorreu por três vezes aos préstimos da sua avó para que lhe emprestasse dinheiro.

3)     A vítima emprestou em 17.8.2012, a quantia de € 1.000,00, em numerário.

4)     Sendo a Filomena Gonçalves uma pessoa com avultados recursos económicos, a arguida, decorrente das dificuldades económicas que ela e o cônjuge iam sentindo para fazer face a todas as despesas do seu dia-a-dia, não se conformava com a circunstância da avó de seu marido não

os ajudar mais em termos financeiros, ainda por cima obrigando-os a pagar mensalmente prestações por conta do dinheiro que lhes havia emprestado.

5)     Foi assim que decidiu matá-la, quer para evitar terem de continuar a pagar-lhe o dinheiro emprestado, quer na expectativa que com a sua morte parte do dinheiro que aquela possuía viesse a chegar ao casal, por intermédio do marido.

6)     Acreditava a arguida que, matando a Filomena Gonçalves, o dinheiro que esta possuía seria partilhado entre os seus dois únicos filhos, ou seja entre a sua sogra Rosa Maria e o seu tio por afinidade Carlos Almeida, e que sua sogra, uma vez recebida a sua parte na herança, ao passar a dispor de recursos financeiros que antes não tinha, começaria a ajudá-los economicamente, tanto que seu marido Carlos Coelho era filho único.

7)     Ora, na sequência do propósito formulado, de molde a evitar que pudesse ser relacionada com o crime de homicídio que tinha resolvido cometer, decidiu não utilizar a pistola semiautomática, marca Glock, calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação angloamericana), modelo 19, com o n.º de série PBW133, que lhe estava distribuída pela PJ para utilização no exercício das suas funções de Inspectora, nem a pistola, de igual marca e calibre, com o n.º de série LZF467, que estava distribuída a seu marido (cfr. termos de entrega de fls. 347 e 348, pistolas que foram examinadas no LPC, de fls. 555 a 566).

8)     A arguida optou por apoderar-se de uma pistola de uma sua colega.

9)     E o ensejo surgiu em Outubro/Novembro de 2012.

10)  A Inspectora Liliana no dia 8.10.2012 quando regressou ao seu gabinete, por volta das 13h, voltou a guardá-la na referida gaveta.

11)  Daí não mais a retirou até que, em 6.11.2012, por ter agendada para esse dia a sessão de treino na carreira de tiro relativa ao 2º semestre de 2012, ao abrir a gaveta, verificou e que a pistola tinha desaparecido do interior do estojo, assim como o carregador nela inserido, o qual continha 14 munições, de calibre 9 mm Parabellum (9x 19 mm ou 9 mm Luger na designação angloamericana), marca Sellier &Bellot, de origem checa, do lote 09, embora o carregador tivesse capacidade para 15 munições.

12)  Tais munições tinham inscrito na base dos invólucros as inscrições “9×19 S&B 09”, correspondendo às utilizadas nas munições da marca Sellier & Bellot, daquele calibre, lote 09.

13)  Assim, face à decisão tomada no sentido de matar a avó de seu marido, em data concretamente não apurada, mas compreendida entre 8.10.2012 e 6.11.2012, a arguida dirigiu-se ao gabinete da colega Liliana e aproveitando momento em que ninguém estava presente, sabendo que as gavetas dos módulos das secretarias se abriam com facilidade mesmo fechadas à chave, forçou a gaveta onde a arma se encontrava, nela exercendo pressão com as mãos.

14)  Deste modo destrancou o mecanismo de segurança, abrindo a gaveta.

 

15)  Após aceder ao seu conteúdo, retirou do interior da caixa a pistola Glock acima referida, que estava distribuída à Liliana, arma que tinha inserido o mencionado carregador com as 14 munições Sellier &Bellot.

16)  Tendo já a arma em seu poder, a arguida guardou-a, esperando oportunidade para a usar na concretização dos seus intentos.

17)  Retomadas que estavam pela arguida as suas rotinas diárias, incluindo a condução do seu veículo, decidiu finalmente pôr em prática o seu plano já antes traçado de matar a avó de seu marido, a fim de que através da herança que a sua sogra haveria de receber, esta os viesse a ajudar economicamente, face a dificuldades que sentiam, e nada mais lhe pagassem por conta do dinheiro antes emprestado.

18)  Aproveitando a ausência do marido, que tinha ido trabalhar, o facto de saber que este nesse dia regressaria a casa mais tarde do que o habitual, uma vez ir realizar um rastreio auditivo no Centro Minisom, sito na rua da Boavista, no Porto, pelas 18h, e a circunstância da filha estar no infantário, onde a poderia ir buscar mais tarde do que o normal, que era sempre entre as 17h30m e 18h, na sequência do desígnio criminoso já antes tomado, a arguida decidiu que seria nesse dia que se deslocaria a Coimbra, a fim de matar a avó de seu marido.

19)  Para tanto, ao início da tarde, a arguida, envergando o blusão comprido, de cor cinzenta, marca ln Extenso, sua pertença, a conduzir o seu veículo Golf, matrícula 14-45-ZJ, dirigiu-se a Coimbra, mais concretamente à rua António José de Almeida, onde a avó Filomena Gonçalves residia.

20)  Levou consigo a mencionada pistola Glock que havia retirado da secretária da sua colega Liliana, bem como o respectivo carregador, nele estando inseridas pelo menos as 14 munições de que se havia apoderado, nos moldes supra indicados.

21)  Teve o cuidado de previamente desligar o seu telemóvel, correspondente ao n.º 965737818, por saber que poderia ser localizada caso tivesse o telemóvel ligado, razão pela qual aquele permaneceu nessa situação pelo menos entre as 13h22m e as 19h24m21s, desse dia.

22)  Já em Coimbra, cerca das 16h, a arguida tocou à campainha da porta da residência da Filomena Gonçalves.

23)  Esta, ao verificar que se tratava da esposa de seu neto, franqueou-lhe a entrada no seu apartamento, correspondente à cave direita, do nº 86, da rua António José de Almeida.

24)  Pouco depois, quando estavam na sala, de frente uma para a outra, a curta distância, estando a vítima de costas para a porta-janela (varanda) aí existente, a arguida, que continuava a envergar o referido blusão comprido cinzento, marca ln Extenso, empunhou com a mão direita a pistola que levava, apontou-a à Filomena Gonçalves e desferiu, pelo menos, 14 tiros em direcção àquela consecutivamente.

25)  Decorrente da forma como empunhou a arma de fogo e face ao considerável número de tiros, a corrediça provocou na mão direita da arguida ferimento na face dorsal da região do primeiro espaço interdigital da mão, oblíquo para baixo e para dentro, mais profundo a nível da sua metade distal e mais superficial na porção proximal, medindo 2 cm de comprimento por 3 mm de maior largura. Ainda por força do manuseamento da arma no acto, a arguida também sofreu ferimento na metade medial e distal da face dorsal da falange proximal do 2º dedo da mão direita, disposto transversalmente, medindo 4 mm de comprimento por 2 mm de largura e ferimento na metade proximal da face dorsal da falange intermédia do 2º dedo da mão direita, oblíquo para baixo e para dentro, medindo 6 mm de comprimento.

26)  Após ter baleado e morto, desta forma, a avó de seu marido, a arguida saiu de casa daquela, levando consigo a chave de casa da vítima, utilizando-a para fechar, por fora, a porta de entrada, sem fazer barulho.

27)  No exterior do prédio, direccionou-se para o local onde tinha o carro estacionado, accionou o motor e nele arrancou, a conduzir, em direcção ao Porto.

28)  Chegada à zona do Porto, apenas pelas 19h35/19h40m.

29)  Na ocasião, usava por baixo uma roupa tipo fato de treino, sendo as calças de cor clara, como de cor clara eram as sapatilhas que calçava no momento.

30)  Foram todas estas cápsulas deflagradas pela pistola que a arguida utilizou.

31)  Para tanto, a arguida pegou no Golf e, a conduzi-lo, levou-o a local não apurado, onde providenciou pela sua lavagem exterior e aspiração interior.

32)  A arguida entregou à equipa da PJ o já mencionado blusão comprido, de cor cinzenta, marca ln Extenso, que tinha utilizado quando matou a avó de seu marido, e fê-lo por o mesmo não apresentar qualquer vestígio visível que a pudesse relacionar com o homicídio.

33)  A arguida retirou o blusão de um cabide que tinha ao fundo da cama.

34)  A arguida puxou as mangas no intuito de esconder os ferimentos que tinha na mão direita, já descritos, que tinham sido provocados pela empunhadura da pistola Glock por si utilizada na execução do homicídio, mais concretamente o ferimento que tinha na face dorsal da região do primeiro espaço interdigital da mão direita, que por ser de maiores dimensões era mais visível.

35)  Ainda no intuito de ocultar todas essas lesões, durante o velório da avó de seu marido, que decorreu na capela mortuária da Igreja Nossa Senhora de Lurdes, em Coimbra, a arguida teve sempre o cuidado de tentar esconder a mão direita dos olhares das outras pessoas.

36)  A arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, ao empunhar e disparar pelo menos 14 munições, calibre 9 mm Parabellum, com a pistola Glock, também de calibre 9 mm, que levava consigo, contra o corpo da vítima Filomena Gonçalves, com o propósito de lhe tirar a vida, o que conseguiu.

37)  Bem sabia que as zonas corporais visadas com os projécteis deflagrados continham órgãos vitais que, sendo atingidos, lhe poderiam causar a morte, como causaram, resultado que queria.

38)  Mais agiu de modo deliberado e consciente, ao apoderar-se da pistola Glock e das 14 munições contidas no seu carregador, pistola e munições que eram pertença da PJ, mas que estavam distribuídas por essa entidade à Inspectora Liliana por razões de serviço, as quais se encontravam nas instalações da Directoria do Norte onde exercia funções e por isso a si acessíveis.

39)  Fê-lo com o intuito de fazer sua a arma e munições, bem ciente que o estava a fazer contra a vontade da PJ, proprietária das mesmas, assim como da respectiva utilizadora.

40)  Tinha conhecimento de serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

41)  Integrou a arguida a pistola e munições no seu património, bem sabendo que não lhe pertenciam e de que estava a acuar contra a vontade da PJ e da utilizadora desses bens, da PJ enquanto entidade proprietária dos mesmos e da sua colega Liliana a quem estavam distribuídos.

7.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«… No caso em apreço não havendo prova directa da autoria dos crimes imputados à arguida torna-se relevante a apreciação da chamada prova indirecta ou indiciária.

Tendo presente tais considerações, o tribunal de júri atendeu desde logo às declarações da arguida.

Com efeito, a arguida admitiu integralmente os factos constantes dos pontos 1 a 20, 28, 46 a 66, 68 a 70 da acusação, sendo que tal confissão encontra-se ainda corroborada pelo teor de fls. 740, 744, 2274, 2275 a 2278, 2325 a 2365, 2397, 2487 a 2489, 2492, 2501, 2623, 2719, da perícia financeira de fls. 1238 a 1284, mais concretamente fls. 1245 a 1246vº, bem como elementos bancários constantes do Dossier 1 – cfr. fls. 143, 197, 200, 202, 205, 224 a 257, 258 a 275, 278, 280 a 283, 294 do Dossier 1- informação clínica de fls. 950, 951, 2401 e prontuário terapêutico de fls. 2762 a 2765,com excepção do alegado empréstimo da vítima de 1.000,00 Euros em 17.8.2012 e da necessidade de recorrer a empréstimos da avó do marido para equilibrar as suas contas. A arguida e marido – a testemunha Carlos Coelho – admitiram ser à data dos factos possuidores das armas e munições descritas no ponto 19 da acusação, as quais foram entregues aos elementos que conduziram a investigação no dia seguinte ao homicídio conforme resulta do seu depoimento e do teor dos documentos de fls. 347/348.

Quanto à situação pessoal e bancária da vítima a sua prova resulta do teor dos elementos bancários constantes de fls.1076, 1346, 1347, 2598, 2599, 2684 a 2687, 2720 a 2733, da perícia financeira supra mencionada, dos elementos bancários constantes do Dossier I – cfr. fls.142, 143, 144, 181, 182, 215, 216, 218 a 222,  296, 298 – e dos depoimentos dos filhos da mesma que confirmaram na íntegra o facto constante do ponto 21 a 24 da acusação.

Quanto às lesões sofridas pela vítima Filomena Gonçalves e suas consequências, o tribunal de júri atendeu ao teor de fls. 55 a 74 (perícia médico-legal), 349 a 360 (relatório de exame médico-legal), 1102 a 1116 (relatório da autópsia médico-legal), 1370/1371 (esclarecimentos médico-legais) e certidão de óbito a fls. 1499/1500.

Quanto aos factos constantes dos pontos 88 a 93 da acusação o tribunal atendeu ao depoimento da filha da vítima, Rosa Maria, que de forma coerente e credível relatou esses factos nos termos constantes na acusação.

No que diz respeito à alegada motivação da arguida para a prática do crime de homicídio, bem como aos factos objectivos imputados na acusação consubstanciadores dos crimes de homicídio qualificado e peculato, a arguida negou peremptoriamente os mesmos, pelo que a sua prova apenas poderá resultar da conjugação dos elementos existentes nos autos com a prova produzida em audiência de julgamento. Quanto à motivação da arguida imputada na acusação para a prática do crime de homicídio qualificado, atenta a prova existente nos autos e a prova produzida em audiência de julgamento, é manifesta a falta de prova da motivação descrita na acusação.

Em primeiro lugar, atente-se que o motivo invocado é por si só tão fútil que só se compreenderia que o mesmo pudesse fundamentar uma actuação tão violenta da arguida se a mesma padecesse de um grave distúrbio psicológico/psiquiátrico. Com efeito, como referiu o médico psiquiatra Dr. Horácio Firmino, a violência do crime em questão apenas pode ser resultante de um conflito antigo e grave entre o homicida e a vítima ou de aquele sofrer de uma sociopatia. Quem mata alguém usando uma arma de fogo, disparando pelo menos 14 munições, sendo a sua maioria disparada já após a vítima estar no chão sem qualquer capacidade de resistência ou é um sociopata ou tem um grave e antigo conflito com a vítima que culmina neste ato de extrema violência. Só neste quadro é que se pode compreender este crime. Ora, se assim é não tendo qualquer das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento referido qualquer situação de conflito entre a arguida e a vítima (por mais pequeno que fosse), antes resultando do depoimento do assistente e da esposa deste que o que existia era um certo afastamento da arguida relativamente à família do marido privilegiando os contactos com os seus pais, e sendo certo que os contactos não eram muito frequentes, tanto mais que a vítima e a arguida viviam em cidades distintas, ficou o tribunal de júri convencido que a arguida não tinha qualquer conflito com a vítima que pudesse justificar a conduta imputada na acusação. Aliás, quanto a esta matéria sempre se dirá que a convivência entre a arguida e a vítima não poderia ser muito próxima até pelo simples facto de a mesma só em 2007 se ter casado com o neto da vítima e desde essa data residir com este na Maia.

Afastada esta hipótese, menos crível será a possibilidade de estarmos perante uma sociopata, uma vez que sendo a arguida inspectora da polícia judiciária tal rastreio foi necessariamente feito aquando da sua admissão à Polícia Judiciária.

Por outro lado, o apoio dado pela arguida a uma colega da PJ que sofreu de uma doença oncológica (facto referido por todos os inspectores da policia judiciária que à data trabalhavam na Diretoria do Norte com a arguida) – e que deu origem ao estado depressivo do qual estava a ser tratada – é demonstrativo de estarmos perante uma pessoa que se liga emocionalmente aos outros, facto que é incompatível com um tal quadro clínico enquadrado no denominado Transtorno de Personalidade Antissocial.

Aqui chegados, e analisando o motivo imputado na acusação temos de concluir, desde logo, e ainda que o mesmo se tivesse como provado, dificilmente poderia por si só apresentar-se como uma motivação válida para a prática do crime nos moldes em que o mesmo ocorreu. A isto acresce que mesmo esta motivação não resultou minimamente provada.

Desde logo, e quanto à situação económica do agregado familiar da arguida resulta claro dos elementos bancários que o mesmo mensalmente pagava todos os seus débitos, fazendo um uso dos meios de pagamento ao seu dispor nos termos que lhe eram permitidos pela sua instituição bancária. O facto de no final do mês o agregado familiar da arguida não apresentar um saldo bancário positivo que permitisse uma certa capacidade de aforro, não pode sequer ser tido como elemento indiciador de dificuldades económicas do agregado familiar que justificasse sequer a ajuda de terceiros de forma sistemática. Nesta matéria não podemos esquecer que os anos de 2011 e 2012 representaram para os funcionários públicos uma perda salarial significativa, que no caso da arguida e do marido não deixou de traduzir-se numa perda de rendimento nunca inferior a 15% a 20%. Ora, uma redução salarial desta envergadura não pode deixar de implicar dificuldades temporárias de ajustamento de um agregado familiar, uma vez que exige uma reorganização do orçamento familiar que nem sempre é fácil. Este contexto permite explicar a gestão bancária feita pelo agregado familiar da arguida, sem que seja possível daí retirar a conclusão que a acusação retira.

Esta conclusão não é contrariada pelo facto de o agregado familiar da arguida ter recebido por duas vezes dinheiro da vítima.

Com efeito, nesta matéria atendeu-se ao depoimento do marido da vítima que sobre esta matéria depôs de forma coerente e credível, tendo ainda o seu depoimento sido corroborado pelo testemunho do pai da arguida ouvido em audiência de julgamento.

Ouvido o marido da arguida por este foi dito que efectivamente a vítima emprestou-lhe numa vez 1.000,00 Euros e numa segunda vez 500,00 Euros a fim de permitir que os mesmos pudessem suportar uma despesa do condomínio, sem necessidade de recorrer às poupanças da filha. Os primeiros 1.000,00 Euros foram entregues em Fevereiro, tendo nessa altura combinado com a avó pagar o mesmo em prestações. Em Abril, dado ter constituído uma poupança para filha, tendo para o efeito retirado 500,00 Euros daqueles

1.000,00 Euros, a avó voltou a dar-lhe 500,00 Euros em numerário.

Em Agosto, quando veio a despesa do condomínio depositou 1.000,00 Euros na sua conta, sendo tal quantia resultante dos restantes 500,00 Euros dados pela avó, a que acresceram 400,00 Euros dados pelo pai da arguida e 100,00 Euros dados pelos avós da arguida (facto confirmado pelo pai da arguida em audiência de julgamento e não contrariado pela demais prova produzida).

Em face deste depoimento ficou o tribunal de júri convencido que o depósito de 1.000,00 Euros datado de 17.8.2012 não resultou de qualquer novo empréstimo feito pela vítima.

Ainda assim, note-se que tais quantias foram entregues como empréstimo estando, à data dos factos, a arguida e marido a pagar os mesmos de forma mensal como resulta claro da perícia financeira efectuada às contas do agregado familiar da arguida e dos extractos das contas bancárias da vítima.

Em conclusão, a situação financeira do agregado familiar da arguida não era deficitária e, nessa medida, não se constituiria por si só num elemento motivador da conduta da arguida.

Aqui chegados sempre se poderia argumentar que a possibilidade de ter uma vida mais desafogada poderia constituir motivo suficiente para levar a arguida a matar a vítima. Todavia, esta conclusão teria necessariamente como pressuposto o conhecimento por parte da arguida da situação financeira da vítima. Da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova constante dos autos, não ficou minimamente provado que a arguida tivesse conhecimento da situação patrimonial da vítima. Com efeito, ouvidos os dois filhos da vítima, estes foram peremptórios ao referir que a mãe era uma pessoa muito reservada nas questões financeiras, não tendo sequer a filha (mãe do marido da arguida) conhecimento do montante depositado na conta que lhe dizia respeito e muito menos na conta adstrita ao seu irmão. Este desconhecimento foi também referido pelo marido da arguida. Ora, se nem estes tinham tal conhecimento não poderia a arguida ter um tal conhecimento, tanto mais que a mesma não tinha com a vítima esse tipo de proximidade e contacto. Ora, não tendo a arguida conhecimento da situação financeira da vítima, cai por terra a alegada motivação, uma vez que não é crível que a arguida formasse a sua vontade de matar a vítima apenas com meras suposições, não sabendo sequer qual o montante das economias da vítima.

A isto acresce que a mesma não só não seria directamente beneficiária de tais poupanças, como as mesmas teriam que reverter directamente para a mãe do marido, a qual, como a mesma referiu em audiência de julgamento, faria sempre uma utilização pessoal de tal quantia, uma vez que, não trabalhando, carecia da mesma para a sua reforma. Com efeito, conforme referido pelo marido da arguida, os pais deste sempre foram pessoas que viveram com algumas dificuldades, tanto mais que nunca os puderam ajudar, donde tal montante seria sempre utilizado para garantir o sustento da mãe.

Por fim, é de atentar no facto de a vítima à data dos factos ter a idade de 80 anos o que levaria a arguida, mesmo querendo apropriar-se das suas economias (ultrapassando a dificuldade económica da mãe do marido supra referida que condicionaria tal “transferência” das poupanças da vítima), a colocar a possibilidade desta a curto/médio prazo vir a falecer, não sendo necessário assassiná-la. Esta necessidade de “antecipar” tal resultado só se justificaria se a arguida tivesse uma súbita carência de dinheiro e soubesse que tal poderia ser suprido com as poupanças da vítima. Ora, não só não se provou que o agregado familiar da arguida estivesse em 2012, à data dos factos, em tal situação económicofinanceira, como não saberia a arguida que a vítima tinha em poupanças um valor suficientemente elevado que pudesse alterar a sua situação económico-financeira.

Ainda quanto a este aspecto há que ter em conta que a arguida havia sido escolhida recentemente (8.10.2012) para exercer funções no GRA, delegação do Norte, facto que não pode deixar de ser valorado pela arguida como uma promoção – como aliás a mesma o refere – estando numa fase de transição de valorização profissional que é contrária com qualquer estado emocional potenciador do crime em apreço (cf. fls. 1504 a 1507).

Quanto à alegada subtracção pela arguida da arma pertencente à inspectora Liliana Vasconcelos – pistola semiautomática, marca Glock, calibre 9 mm Parabellum, modelo 19, com o n.º de série PBW136 (cf. fls. 8 do apenso n.º 15497/12.8TDPRT e fls. 1540 dos presentes autos) – o tribunal de júri, após apreciação e ponderação da prova produzida em audiência de julgamento, em conjugação com a prova existente nos autos, tem sérias dúvidas, por um lado, que a referida arma tenha sido subtraída (nem que a inspectora tivesse pela última vez colocado na sua gaveta a arma após a referida busca não mais mexendo na mesma), e, por outro, que a existir tal subtracção tenha sido a arguida a autora da mesma.

Quanto a este ponto, desde logo, se diga que o mesmo encerra em si mesmo um vício lógico-dedutivo que condicionou toda a investigação e, nessa medida, os seus resultados. Com efeito, da análise do processo, designadamente de toda a sequência dos actos da investigação, é nítido que logo no dia 22.11.2012 a investigação considerou a arguida a principal e única suspeita do homicídio baseando-se fundamentalmente no seguinte raciocínio: se a arma e munições utilizadas no homicídio são compatíveis com a arma e munições utilizadas pela PJ da Directoria do Norte e se aí desapareceu a uma inspectora, que trabalhava num gabinete perto da arguida, uma arma e carregador de munições, então a arma e munições utilizadas são as pertencentes à inspectora Liliana – passando o desaparecimento a furto – e foi a arguida que não só subtraiu a arma e munições como matou a vítima. Com efeito, só este raciocínio permite justificar que logo no início da investigação – em 22.11.2012 – a mesma tenha sido classificada de nível 4 (cf. fls. 2), classificação dada apenas quando o suspeito seja membro da Polícia Judiciária ou figura relevante da sociedade, conforme referido pelo inspector da Polícia Judiciária Miguel Ferreira de Sousa ouvido em audiência de julgamento, sem que nessa altura houvesse qualquer outro elemento que racionalmente a pudesse justificar.

Ora, este raciocínio enferma de vários vícios relevantes. Em primeiro lugar, as premissas utilizadas neste processo dedutivo não eram à data, como em nosso entender não o são actualmente, indiscutíveis. Com efeito, não havia naquela data qualquer perícia ou sequer estudo balístico donde fosse inequívoco que a arma e munições utilizadas pertencessem à inspectora Liliana. E não havia naquela data, como não existe presentemente, uma vez que quer do exame efectuado pelo inspector Vitor Teixeira em 22.11.2012 a fls. 181, quer da perícia efectuada e constante a fls.551 e segs. dos autos e da comparação das munições a fls. 698 e segs., apenas é possível concluir pela probabilidade de tal se verificar. Todavia, esta probabilidade será tanto maior ou menor quanto os demais elementos de prova a possam corroborar ou contrariar. Em segundo lugar, da análise do inquérito 15497/12.8TDPRT resulta evidente que até 22.11.2012 a Directoria do Norte da Policia Judiciária considerava que a falta da arma e munições distribuídas à Liliana Vasconcelos haviam sido perdidas por esta. Com efeito, até àquela data, em nenhum momento foi referido como tendo havido o furto das mesmas, nem as diligências tomadas indiciavam sequer tal suspeita. Tendo sempre presente que o furto de uma arma e munições de um inspector da policia judiciária, ocorrido nas instalações da própria policia judiciária, é algo tão grave que levaria sempre aquela força policial a tomar todas as medidas para encontrar o autor de tal furto e, por outro lado, a auditar os procedimentos de segurança que de algum modo haviam falhado, é evidente que nenhum destes procedimentos foi tomado até 22.11.2012, o que apenas pode levar à conclusão que tal não foi sequer equacionado até àquela data. Leitura diversa da postura da Directoria do Norte da Polícia Judiciária não é sequer equacionável, uma vez que é incompatível com os mais elevados padrões que sempre regeram esta instituição e que são reconhecidos por todos. Não é sequer equacionável que a Polícia Judiciária perante a possibilidade/suspeita de uma arma e munições de serviço terem sido furtadas das instalações em data anterior a 7.11.2012 e, nessa medida, pudessem ser utilizadas no cometimento de crimes graves, não tivesse investigado, durante aqueles primeiros 15 dias, todas as pessoas que naquele período tivessem tido acesso ao local de trabalho da inspectora Liliana, nem tivesse feito uma aprofundada auditoria às normas de segurança em concreto aplicadas naquela Directoria. Temos assim por inequívoco que até o dia 22.11.2012 tal desaparecimento nunca foi equacionado como furto, sendo certo que tal entendimento era o único credível em face das concretas circunstâncias que rodearam tal desaparecimento.

Com efeito, não é crível que uma inspectora da polícia judiciária deixasse por longos períodos a sua arma e munições num módulo de gavetas sem verificar periodicamente se as mesmas aí se encontravam. Como resultou evidente do depoimento de todos os inspectores da polícia judiciária, ouvidos sobre esta matéria, a prática é a de sempre levarem consigo a arma municiada com um carregador de munições, ou, em alternativa, deixarem-na no seu módulo de gavetas verificando periodicamente (diariamente como foi referido pela inspectora Rute Marcelo) o seu estado. Deixar durante pelo menos um mês a arma no módulo sem nunca verificar o seu estado, sendo certo que tal módulo é de uso frequente pela inspectora Liliana, não é compatível com as obrigações funcionais de um inspector e com a responsabilidade inerente à atribuição de uma tal arma de fogo. Ficou o tribunal de júri convencido que a explicação dada pela inspectora Liliana apenas se pode compreender pelo facto da perda da arma e munições acarretar de forma quase inevitável uma sanção disciplinar. Por outro lado, este comportamento apenas poderia ocorrer se houvesse a firme convicção dos inspectores da polícia judiciária que os referidos módulos não eram passíveis de serem abertos sem a chave, ou, pelo menos, que eram de difícil abertura sem a chave. Com efeito, ninguém deixaria a sua arma de serviço num módulo de gavetas de fácil abertura. Aliás, esta dificuldade de abertura do módulo foi referida pelos inspectores António David e Rute Marcelo que, tendo sido questionados sobre se sabiam que tais módulos podiam ser abertos sem a chave, referiram que numa ocasião tiveram de abrir o seu módulo sem chave recorrendo para o efeito aos serviços de manutenção da polícia judiciária, os quais para abrir o seu módulo de gavetas tiveram que voltar a secretária de pernas para o ar e bater fortemente na gaveta. Este método não só é de difícil execução por uma pessoa como não é compatível com a intenção de furtar o que existe dentro do referido módulo, não só pelo tempo que exige, pelo barulho que provoca, como pelo facto de com tal procedimento os objectos existentes nos módulos da gaveta ficarem de tal modo remexidos que facilmente era detectável pela inspectora Liliana (sendo que a mesma foi sempre peremptória ao referir que nunca deixou o seu módulo aberto quando se ausentava do seu gabinete e que nunca viu nenhum objecto fora do seu lugar).

Daqui decorre que se mesmo para os serviços de manutenção a única forma de abrir aqueles módulos exigia um tal esforço físico, não é crível que os demais inspectores da polícia judiciária a exercer funções na Directoria do Norte da Policia Judiciária, incluindo a arguida, soubessem de qualquer outro meio – designadamente o referido na diligência de fls. 5 a 7 do inquérito 15497/12.8TDPRT – para abrir tais módulos. Temos assim que não só é mais provável que tal arma e munições tivessem sido perdidas pela inspectora Liliana, como a serem furtadas dificilmente os inspectores da polícia judiciária tinham condições para saberem sequer como se abria tais módulos sem a respectiva chave.

A isto acresce, como é evidente pela análise de todo o processado do inquérito 15497/12.8TDPRT, que não existia, nem existe, qualquer elemento que ligue a arguida ao alegado furto da arma e munições. Este salto lógico é apenas, e tão só, dado pela ligação do homicídio ocorrido em 21.11.2012 a tal desaparecimento. Ora, esta ligação torna um facto improvável – o furto da arma e munições – numa certeza, donde deriva que a conclusão – a arguida matou a vítima – não só resulta de um raciocínio que tem como uma das premissas essenciais o referido furto da arma, como é o fundamento da mesma nos seguintes termos: a arguida matou a vítima porque usou uma arma que furtou na Directoria do Norte à inspectora Liliana; a arguida furtou a arma e munições porque a usou para matar a vítima. Ora, este raciocínio tem assim por base uma conclusão – a arguida matou a vítima – a qual por sua vez torna duas probabilidades – a arma e munições utilizadas no homicídio pertenciam à inspectora Liliana e as mesmas foram furtadas pela arguida na Directoria – em duas certezas, transformando-as em duas premissas essenciais para a referida conclusão, num processo de autojustificação incompatível com o processo lógico-dedutivo.

Por último, e ainda quanta à alegada subtracção da arma e munições por parte da arguida, entende o tribunal de júri que não é crível que a arguida sabendo que a sua colega iria no início de Novembro à carreira de tiro, uma vez que a escala para o efeito é elaborada anualmente (no 1º trimestre como foi referido pelo inspector Miguel Ferreira de Sousa) e, nessa medida, daria conta do desaparecimento da sua arma e munições a retirasse antes desse acontecimento, correndo o risco de ter consigo durante cerca de 15 dias uma arma e carregador, não as podendo esconder no seu gabinete (o qual poderia ser objecto de uma eventual busca após aquele desaparecimento), no seu carro (local manifestamente inadequado por ser utilizado também pelo seu marido) ou mesmo em sua casa (pelas mesmas razões referidas quanto ao carro). A esta dificuldade logística acresce que a arguida bem sabia que utilizando uma tal arma e munições estaria a deixar uma evidente impressão digital que levaria a investigação a colocá-la como suspeita. Ora, não é crível que a arguida o fizesse sem que tivesse um alibi incontestado que a afastasse de qualquer suspeita, não se podendo bastar com um alegado descanso em casa com o telemóvel desligado.

Aliás, o facto de a investigação partir da conclusão – a arguida matou a vítima – e só depois proceder à recolha de provas que em seu entender comprovavam tal conclusão justifica, em nosso entender, que a mesma padeça de inconsistências que inviabilizam a possibilidade de o tribunal de júri concluir com a certeza legalmente exigível que a arguida matou a vítima Filomena Gonçalves.

Esta antecipação da conclusão no início da investigação condicionou, em nosso entender, a mesma não permitindo, por um lado, alargá-la por forma a avaliar outras hipóteses da leitura dos factos ocorridos e, por outro lado, condicionou a própria avaliação dos factos resultantes da investigação.

Em primeiro lugar, avança como uma motivação para o crime manifestamente inconsistente com os contornos do crime em apreço conforme já supra exposto;

Em segundo lugar, não permite valorar, em nosso entender, convenientemente os factos ocorridos designadamente no dia do homicídio e seguintes.

Com efeito, resulta dos depoimentos das testemunhas Maria Velasco – moradora no 2º andar esquerdo do n.º 86 – Maria Luísa Almeida Trindade – moradora no 3º andar esquerdo do prédio n.º 84 – Rita Sofia Pinto – moradora no 1º andar direito – que o homicídio terá necessariamente de ter ocorrido no máximo entre as 15H53 e a 16H19.

Com efeito, a testemunha Maria Velasco refere ter ouvido três barulhos fortes seguidos por volta das 16H00, sendo que 2 a 5 segundos depois voltou a ouvir um outro barulho idêntico, isolado.

A testemunha Rita Sofia referiu que ouviu 3 a 4 sons estridentes que julgou serem foguetes, espaçados entre si por 5 segundos.

Por sua vez, a testemunha Maria Trindade referiu que naquele dia, pouco antes das 16H00, encontrava-se na marquise do seu andar a falar ao telefone quando ouviu vários ruídos fortes e seguidos em número que não consegue quantificar. Mais refere que estava a falar com uma amiga, o que permite fixar por volta das 15H53 tal evento, uma vez que da facturação detalhada junta aos autos a fls. 3374 a 3379 consta que a chamada para o número 271926913 iniciou-se às 15:53:16 tendo durado apenas 46 segundos. Por sua vez, a filha da vítima foi taxativa ao referir que a mãe tinha por hábito ir lavar logo a louça do almoço após a sua saída de casa. Ora, se é certo que a mesma saiu por volta das 15H45 e a louça ficou por lavar, conclui o tribunal que os factos ocorreram logo após a saída daquela.

Estes elementos objectivos, corroborando o depoimento da referida testemunha, convenceram o tribunal de júri que os tiros ocorreram neste espaço temporal com início às 15H53, sendo certo que dos depoimentos supra mencionados também resulta que os disparos não foram todos seguidos mas interpolados por alguns segundos de silêncio. Este facto, em nosso entender, é relevante na medida em que sendo a arguida uma pessoa que nos treinos de tiro denotava ser boa atiradora – o que pressupõe uma boa empunhadura da arma já que esta é essencial para um bom tiro como foi referido de forma taxativa pelas testemunhas António Machial Pinto, Vitor Teixeira (inspectores da policia judiciária e instrutores de tiro) – estas pequenas paragens permitiriam manter uma boa empunhadura ao longo dos disparos ou mesmo corrigir a mesma, tornando menos provável a ocorrência de uma lesão na mão.

Por outro lado, é possível que os diversos depoimentos correspondam a fases distintas dos disparos sendo sequenciais e compatíveis entre si, tanto mais que nenhuma das testemunhas ouviu 14 disparos, sendo provável que os mesmos se somem numa sequência que ocorreu tendo necessariamente como limite aquele lapso temporal.

Por fim, o facto de o homicídio ter ocorrido no máximo entre as 15H53 e as 16H19 é relevantíssimo para aferir da possibilidade da arguida ter sido a autora do mesmo porquanto resultou do depoimento da testemunha Ana Sofia Reis (moradora no prédio onde reside a arguida e que foi totalmente coerente e credível no seu depoimento, não suscitando quaisquer dúvidas ao tribunal de júri sobre a veracidade do mesmo) que a arguida por voltas das 14H30 encontrava-se calmamente no hall do seu prédio na Maia a ler a correspondência que havia retirado da sua caixa de correio, não denotando qualquer pressa ou agitação que seriam próprias de quem estaria prestes a deslocar-se para Coimbra para cometer um homicídio. A fixação deste horário não suscitou ao tribunal de júri quaisquer dúvidas uma vez que sendo a testemunha advogada, a mesma referiu que consultou a agenda tendo a certeza que foi nessa hora que saiu de casa. Por outro lado, foi referido por esta testemunha que a mesma estava vestida com umas calças que poderiam ser de pijama, confirmando na íntegra, e nesta parte, o declarado pela arguida que referiu que estava de pijama tendo ido ao correio apenas com um casaco por cima do pijama.

Tendo por assente que a arguida estaria por volta das 14H30 em sua casa na Maia, a mesma tinha não mais de uma hora e trinta minutos para se arranjar e deslocar-se a Coimbra a casa da vítima e aí disparar pelo menos 14 munições.

Ora, se atentarmos ao facto de a arguida estar calmamente em casa por volta das 14H30 é expectável que ainda demorasse algum tempo – 10 a 20 minutos – a aprontar-se para sair. Por outro lado, se atentarmos que entre as cidades da Maia e Coimbra distam pelo menos 134 km o que implica sempre um mínimo de viagem de cerca de 01H25 (por auto-estrada) – sem contar com o facto de a arguida sair da sua casa na Maia e a casa da vítima situar-se na rua António José de Almeida, n.º 86, o que implica que àquele tempo de viagem entre as cidades se tenha de acrescentar o tempo passado no trânsito interno de cada uma das cidades nunca inferior a 20 minutos no total dos dois trajectos – temos de concluir que dificilmente a arguida poderia estar àquela hora no local do crime. E se não é impossível tal ter ocorrido, terá necessariamente de concluir-se que muito dificilmente a mesma o conseguiria fazer naquele curto espaço de tempo.

Com efeito, para cumprir tal horário seria sempre possível que a arguida tivesse utilizado a auto-estrada A1 e ainda assim teria de ultrapassar os limites permitidos de velocidade naquela via tornando mais arriscado o seu objectivo de se deslocar a Coimbra sem deixar qualquer vestígio, uma vez que sempre poderia ser apanhada em qualquer radar existente nesse percurso para controlo de velocidade.

Não utilizando a A1 era impossível efectuar tal percurso sem ultrapassar sistematicamente os limites de velocidade, como se depreende do RDE de fls. 404 a 406, donde resulta que os referidos inspectores de polícia judiciária mesmo indo por vezes a 130 km/hora ainda assim demoraram cerca de duas horas a fazer o trajecto de casa da arguida à casa da vítima.

Aliás, da acusação resulta uma contradição quando assume que na ida da Maia para Coimbra a arguida consegue demorar menos de 01H30, mas no regresso demora mais de três horas. Ora, não é crível que demorasse tanto tempo no regresso quando havia feita a viagem inicial em menos de metade do tempo, sendo certo que a manutenção das rotinas naquele dia era um factor decisivo para evitar suspeitas sobre a sua pessoa, como bem sabia a arguida.

A isto acresce o estado de saúde da arguida que naquela data dificultava a sua mobilidade, tornando ainda menos crível que ela escolhesse uma tal data para praticar tal crime o qual poderia exigir uma maior disponibilidade física. Com efeito, a arguida no dia 13.11.2012 havia sido sujeita a uma miomectomia via vaginal e uma colporrafia posterior (cf. fls. 966 e 2464), as quais têm consequências físicas, dada a zona afectada, que a impediam de fazer esforços físicos, de andar a ritmo normal (exigindo andar com passos curtos e pausados), de estar durante longos períodos sentada. Como referido pelo marido da arguida, e confirmado pelo Dr. José Vidal Pinheiro, médico que realizou tal operação, a arguida na semana em que ocorreram os factos sentava-se de lado para evitar forçar os pontos (cerca de 100), tendo levado o médico em consulta de rotina de 19.11.2012 a prolongar a baixa médica por mais 15 dias em virtude de a achar debilitada – apresentando uma astenia (falta de forças) e ainda tinha dores na cicatriz operatória na região perineal (cf. fls. 1502) – e necessitar de mais repouso para uma convalescença adequada (cf. fls. 2461).

Este facto dificultaria seriamente a sua mobilidade numa eventual deslocação a Coimbra, comprometendo em abstracto o sucesso do alegado propósito de matar a vítima Filomena Gonçalves. Esta ponderação não poderia deixar de ser feita pela arguida, inspectora da polícia judiciária, aquando da escolha do dia em que cometeria o crime. Por outro lado, estas limitações implicariam que a mesma não pudesse fazer uma condução nos mesmos termos em que fazia anteriormente, uma vez que tal teria reflexos na sua condição física. Aliás, como foi referido pelo Dr. José Vidal Pinheiro, não só no dia a sua disponibilidade física seria mais limitada, como tal esforço reflectir-se-ia, necessariamente, nos dias seguintes.

Tendo presentes estes elementos não pode o tribunal de júri deixar de concluir que muito dificilmente a arguida poderia estar à hora em que ocorreu o homicídio em casa da vítima.

Temos, portanto, que a adequada ponderação deste depoimento da testemunha Ana Reis com os demais deveria ter implicado para a investigação, logo desde o início, um trabalho mais aprofundado de avaliação do mesmo. Ora, ao invés, o que os autos reflectem é uma inexplicável omissão de tal depoimento numa fase em que a arguida iria ser presente ao juiz de instrução criminal para primeiro interrogatório e aplicação de medida de coacção, uma vez que, se é certo que a mesma juntamente com a testemunha Raquel Ferreira haviam sido ouvidas no dia 26.11.2012 no jardim de infância “O Pimpolho” e ambos os depoimentos foram enviados via fax dos serviços do Ministério Público do tribunal da Maia para a Diretoria do Centro da Policia Judiciária conforme foi confirmado pelo depoimento do inspector da policia judiciária António Machial Pinto e José Faustino que procederam às referidas inquirições, a verdade é que só o depoimento da testemunha Raquel Ferreira foi junto aos autos (cf. fls. 226 a 228), omitindo-se quatro folhas das dez que foram enviadas, exactamente aquelas que continham o depoimento da testemunha Ana Sofia Reis (cf. fls. 226 a 229). Ora esta omissão é tanto mais relevante se atentarmos ao facto de aquele depoimento ser mencionado pela arguida aquando do seu interrogatório e o seu conteúdo ser relevante e, nessa medida, a sua falta ter necessariamente condicionado a decisão da Juiz de Instrução Criminal que o não valorou, independentemente de se saber se com aquele depoimento nos autos a decisão seria ou não a mesma.

Por outro lado, tal deslocação a ter ocorrido assentava apenas num palpite da arguida de que a vítima estaria àquela hora em casa sozinha. Com efeito, conforme resulta dos elementos documentais juntos aos autos, designadamente registos telefónicos, como principalmente de toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, entre a arguida e a vítima não havia, nem houve à data dos factos, quaisquer contactos directos, sendo principalmente por intermédio do marido da arguida, neto da vítima, que aquele agregado familiar contactava com a vítima. A isto acresce que nos dias anteriores ao homicídio não há qualquer registo que a arguida e a vítima tivessem sequer falado, apenas existindo um telefonema em 10.11.2012 do telefone fixo do agregado familiar da arguida para a vítima, o qual foi efectuado pelo marido conforme referido por este e teve como tema de conversa o estado de saúde da arguida, e que demorou cerca de 4 minutos (cf. fls. 747 e 861), e dois telefonemas da vítima para o telemóvel do neto, marido da arguida, no dia 14.11.2012 com a duração ambos de 46 segundos (cf. 861). Por outro lado, nenhuma prova foi produzida ou existe nos autos donde resulte sequer que a arguida soubesse das rotinas da vítima uma vez que os seus familiares próximos foram peremptórios ao referir que tal não era do seu conhecimento.

Daqui decorre que a arguida, que na versão da acusação preparou meticulosamente o cometimento do crime – chegando ao ponto de subtrair uma arma e munições da colega com pelo menos 15 dias de antecedência e criar rotinas nos dois dias anteriores ao homicídio – o que indicia estarmos perante uma pessoa fria, calculista e racional, deixava de o ser no dia mais importante para o sucesso do seu plano indo para Coimbra a casa da vítima sem saber se ela àquela hora estava em casa, se estava sozinha, e sem ter sequer tempo de esperar em Coimbra para que tais condições ocorressem. Ora, estas duas atitudes são tão distintas que não é crível que tivessem ocorrido numa mesma pessoa em tão curto espaço de tempo, tanto mais que estamos perante uma inspectora da Policia Judiciária.

Por fim, o tribunal de júri foi particularmente sensível ao estado de saúde da arguida à data dos factos. Com efeito, a arguida havia sido sujeita a uma intervenção cirúrgica no dia 13.11.2012

Quanto ao primeiro aspecto as limitações já supra mencionadas são um forte condicionante da mobilidade e destreza da arguida, requisitos essenciais para a prática do crime em apreço.

Quanto ao segundo aspecto, a arguida andava a ser seguida pelo Dr. Ferreira de Sousa desde 1.08.2011, uma vez que apresentava uma sintomatologia compatível com o diagnóstico de síndrome depressiva, estando à data do homicídio medicada com Escitalopran 20 mg/dia, Lorazeopam 1 mg/dia e Loplazepeto de estilo cerca de 6 mg/dia (cf. fls. 950/951, 2401, 2762 a 2765).

Esta medicação, conforme foi referido pelo Dr. Horácio Firmino, tem um efeito sedativo na paciente, sendo inibidora da impulsividade. Daqui decorre a convicção do tribunal de júri que na data do homicídio a arguida estaria com mais limitações que o normal não permitindo a agilidade pressuposta na factualidade descrita na acusação. Não só a condução da viatura sofreria maiores limitações, levando a um maior dispêndio de tempo, como a agilidade física de se movimentar estava mais condicionada, para além de a própria impulsividade – pressuposto necessário deste acto violento – estar mais limitada.

É este contexto que leva o tribunal de júri a não dar um acrescido valor probatório ao facto de a arguida na tarde do dia do homicídio estar incontactável, uma vez que esta realidade é compatível com o facto por si alegado de estar a descansar e o telemóvel estar com problemas técnicos (ainda que o tribunal não ficasse esclarecido da razão de tal problema técnico). Aliás, do teor de fls. 546 resulta que o mesmo telemóvel teve igual problema no dia 24.11.2012 quando a arguida se encontrava em Coimbra (não sendo crível que nesse curto espaço de tempo a mesma tivesse também desligado o seu telemóvel).

Concretizando, conforme resulta da informação da TMN a fls. 1231, a indicação “BSC_CBR2L” diz respeito ao código utilizado na célula quando é efectuada uma comunicação e o equipamento se encontra desligado, não sendo possível detectar a célula. Já a indicação N/E (ocorrida cerca das 15 horas daquele dia 21.11.2012 – cf. fls. 545) apenas diz respeito a célula não especificada, o que leva o tribunal à conclusão que nesse curto período o telemóvel esteve ligado mas sem capacidade de estabelecer ligação, donde resulta ser perfeitamente possível o alegado problema técnico de desligar e ligar do telemóvel da arguida sem intervenção humana por esta referido.

Por outro lado, nem é muito crível que uma inspectora da polícia judiciária que pretende cometer um crime que exige uma deslocação em automóvel se preocupe em desligar o mesmo para não ser detectada e ainda assim se fazer transportar com o mesmo. Se o objectivo era esse, seria mais fácil deixar o telemóvel em casa ligado com uma mensagem de não poder atender por estar a descansar e avisar antecipadamente o marido de tal facto. É este grau de preparação e conhecimento que temos de pressupor existir quando estamos a falar de uma inspectora da polícia judiciária. Com efeito, não podemos em certas situações apelar a tais conhecimentos para explicar a dificuldade de provar determinados factos e, por outro lado, explicar determinadas atitudes da arguida como se a mesma não tivesse tais capacidades e conhecimentos. É nesta recusa de avaliar os comportamentos da arguida, pressupondo tal dualidade, que entronca também, em nosso entender, a impossibilidade de valorar determinados comportamentos da arguida nos termos pressupostos pela acusação, designadamente o alegado facto de a arguida ter mudado de roupa, ter ido buscar a filha ao infantário por voltas das 19H30 no dia do homicídio e ter colocado as mangas do casaco sobre a mão ferida ou de colocar as mãos sobre a gola no velório.

Quanto à alegada troca de roupa – facto que consta do teor de fls. 403, 466 e 2191 – o tribunal de júri ficou convencido que efectivamente a arguida foi buscar a um dos quartos o blusão que entregou aos inspectores da polícia judiciária uma vez que tal versão resulta das declarações feitas pelo inspector Mota Gonçalves (inspector chefe na Directoria do Norte da Polícia Judiciária) única testemunha que estando no auto de busca por inerência não tinha qualquer interesse directo ou indirecto na mesma, sendo certo que esta testemunha não soube dizer o local preciso aonde o mesmo se encontrava.

Nesta matéria há que atender ao facto de a visualização da roupa por parte da testemunha Raquel no dia 21.11.2012 pelas 19H35/19H40 ter ocorrido de noite, à porta do infantário e sob uma luz amarela a qual altera ou pelo menos dificulta de algum modo a percepção como a própria admitiu na diligência ocorrida no dia 13.8.2013 (cf. fls. 2199).

Por outro lado, não é facilmente compreensível que sendo a própria arguida a entregar a roupa aos inspectores que dirigiam a investigação a mesma entregasse o suposto blusão utilizado aquando do cometimento do crime e não entregasse as calças e sapatilhas. Com efeito, uma inspectora da polícia judiciária que já havia trabalhado nos Açores em brigadas responsáveis pela investigação de crimes de homicídio tinha perfeita consciência que qualquer disparo poderia contaminar a roupa utilizada com resíduos dos disparos ou de sangue da própria vítima. Deste modo, a única opção lógica seria não entregar qualquer das peças utilizadas no local do crime e não apenas parte das mesmas. E contra esta asserção não tem sentido invocar um qualquer desconhecimento por parte da arguida das consequências dos disparos na sua roupa já que esse desconhecimento não é facilmente compaginável com a formação de uma das melhores polícias de investigação da Europa da qual faz parte a arguida (sendo a arguida notada com nota de mérito).

A isto acresce que o marido da arguida referiu desconhecer que a mesma tivesse sequer sapatilhas de cor clara. Se é certo que a relação de proximidade entre ambos não permite ao tribunal afastar a natural parcialidade do seu depoimento, a verdade é que não pode deixar de se atender ao facto de a vítima ser sua avó e o mesmo à data dos factos ter com esta uma relação de forte proximidade afectiva. Daqui decorre que dificilmente o marido da arguida aceitaria mentir para encobrir a mulher, sabendo que a mentira desta poderia ser um forte indício de a mesma ser responsável pela morte da sua avó, tanto mais que sendo o mesmo inspector da polícia judiciária facilmente conseguiria perceber o sentido das

“mentiras” da esposa. E, recorde-se, que quando o mesmo julgou que a esposa era a responsável pelo homicídio da avó – no dia 25.11.2012 – separou-se de facto da arguida. Aliás quanto a este ponto sempre se dirá que não ficou o tribunal de júri minimamente convencido que o mesmo tivesse tido antes do dia 24.11.2012 várias conversas com o inspector Cardoso nos termos em que este referiu em audiência de julgamento de forma quase obsessiva de incriminação da arguida. Com efeito, atento o facto de o casal ainda no dia 19.11.2012 ter estado a comemorar o seu aniversário de casamento, não é crível que o mesmo tivesse tal comportamento que denota uma clara animosidade para com a esposa. A isto acresce que entre os dias 21 e 25 manteve-se junto da esposa havendo entre ambos um apoio recíproco. Quanto a esta matéria ficou o tribunal de júri convencido que o estado emotivo do marido da arguida podendo levar a um discurso menos coerente não ocorreu antes do dia 24 conforme foi referido pelo inspector Cardoso e o que foi por aquele dito foi interpretado pela investigação nos termos mais coincidentes com uma conclusão que já no dia 22.11.2012 estava fixada.

Retomando ainda a questão da troca de roupa, há que atender ainda ao facto de o estado de saúde da arguida, com frequentes perdas de sangue, aconselhava sempre o uso de uma roupa mais escura, a que acresce que dificilmente tal seria uma opção a tomar pela arguida no dia da prática de um tal violento crime como o ocorrido no dia 21.11.2012.

Nestes termos, se é certo que o depoimento da testemunha Raquel aponta no sentido da troca da roupa, e o mesmo mereceu na sua globalidade toda a credibilidade, a verdade é que as limitações já supra expostas levam o tribunal de júri a ter fundadas dúvidas sobre a sua verificação, as quais terão de ser resolvidas a favor da arguida.

No que diz respeito à alegada limpeza do carro por parte da arguida não existe qualquer prova nos autos, nem foi produzida em sede de audiência de julgamento, donde resulte que a arguida no dia 22.11.2012 foi lavar a viatura, não podendo a não prova deste facto servir de prova do mesmo. Por outro lado, quando à limpeza do vidro do carro o marido da arguida foi peremptório quando admitiu que foi ele que pediu à esposa que limpasse com toalhetes o vidro. Sendo certo que estas declarações têm sempre que ser analisadas com especiais cuidados, a verdade é que não existe prova que contrarie tal versão dos factos.  No mesmo sentido, o tribunal de júri não dá um especial relevo ao facto de a arguida no dia do homicídio ter ido buscar a filha ao infantário por volta das 19H30 e 19H45.

Conforme resulta do mapa de assiduidade da filha da arguida entre os dias 13 de Novembro de 2012 e 23 de Novembro de 2013, estes dias são totalmente atípicos em relação às rotinas habituais, o que se percebe em face do estado de saúde da arguida. Com efeito, a menor nos dias 13, 14 e 16 não foi ao infantário; no dia 15 foi apenas entre as 16H30 e as 17H30 para a aula de música; No dia 19 saiu às 17H30; no dia 20 às 15H30 e nos dias 21 e 22 saiu às 19H35 e 19H00 respectivamente.

Esta atipicidade justifica-se pelo estado de saúde da arguida, a qual necessariamente condicionava a sua locomoção e a própria necessidade de descanso desta. Com efeito, é perfeitamente aceitável que a arguida tivesse estado no dia 21.11.2012 a descansar toda a tarde, acordando por volta das 18H00 como foi, pela própria, referido. Por outro lado, é a própria testemunha Raquel que refere que a arguida naquele dia aparentava ter estado a dormir dado o seu ar ensonado.

De igual modo, o tribunal de júri entende que não resultou minimamente provada a ligação da lesão existente na mão da arguida e o crime ocorrido em Coimbra.

Com efeito, do exame médico-legal efectuado à arguida apenas resulta que o vestígio cicatricial na região rosal do primeiro espaço interdigital da mão direita é passível de ter sido produzida por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, não se podendo excluir a acção de um eventual agente térmico (queimadura por contacto com objecto incandescente com uma semana de evolução) (cf. fls. 123, 223 a 225; vide ainda fotografias de fls. 118 a 122). Por outro lado, foi referido pelo perito médico, Dr. Agostinho Santos – única pessoa ouvida em audiência de julgamento com conhecimentos médicos e balísticos suficientes para fazer uma apreciação comparativa de tal lesão com as habitualmente verificadas em virtude de disparos de armas de fogo – que tal lesão não é típica do mau manuseamento de arma de fogo (ainda que tal possibilidade não possa também ser excluída em absoluto). A isto acresce que tendo os tiros sido espaçados no tempo, e sendo a arguida uma boa atiradora – tendo inclusive estado na carreira de tiro em 5.11.2012 onde disparou 90 tiros, cf. fls. 696 – dificilmente a mesma teria mantido naquela situação uma má empunhadura donde resultasse uma lesão na mão, tanto mais que a Glock é uma arma ergonomicamente muito segura.

Quanto à lesão constatada no 2º dedo da mão direita, a mesma só por si não permite qualquer conclusão tanto mais que a zona aonde a mesma se encontra é dificilmente compatível com o manuseamento de arma de fogo dado que tal dedo encontrar-se-á, aquando do disparo, na zona do gatilho aonde dificilmente ocorrem traumatismos de natureza contundente ou actuando como tal.

Por outro lado, a prova desta intencionalidade não resulta, no entender do tribunal de júri, do simples facto de a arguida ter puxado as mangas aquando da diligência do dia 24.11.2012 – conforme referido pelos inspectores que intervieram em tal diligência – ou de colocar as mãos por debaixo da gola da camisola no velório conforme foi referido pela esposa do assistente. Com efeito, estes gestos – admitidos pela arguida – poderiam ser reacções ao estado de tensão a que a mesma estava sujeita (aliás a testemunha Dr. Pedro Melanda referiu precisamente que a arguida tem o hábito de colocar as mãos nas golas quando está nervosa), tanto mais que, se fosse com o intuito de esconder a lesão da mão, não se compreenderia que a mesma o não tivesse feito durante todo o dia 24 em que esteve na Directoria do Centro da Polícia Judiciária juntamente com os inspectores encarregues do processo.

Nestes termos, e quanto a este ponto não pode o tribunal deixar de concluir que tais lesões não podem ter a leitura pressuposta na acusação, independentemente de não ficar o tribunal convencido da veracidade da versão apresentada pela arguida, uma vez que esta apenas assenta nas declarações inverosímeis desta sem qualquer outro elemento que as corrobore.

A compreensão de todo este circunstancialismo é, no entender do tribunal de júri, essencial para se aferir da maior ou menor probabilidade de a arguida ter cometido os crimes imputados.

Aqui chegados não pode o tribunal de júri deixar de concluir pela impossibilidade de formar a convicção da culpabilidade da arguida exigível para uma condenação, não obstante existirem elementos nos autos donde resulta uma possibilidade de a arguida estar de algum modo implicada no homicídio e tal probabilidade não ter sido completamente afastada pela demais prova produzida já supra exposta. Ainda assim, tais factos gravitam sempre – por si só e conjugadamente entre si – na esfera da probabilidade (reduzida em nosso entender) de a arguida ter cometido tais crimes nos precisos termos constantes da acusação, o que só por si não poderia fundamentar qualquer condenação.

Atendemos, neste particular, à circunstância de ficar o tribunal de júri convencido que a arma utilizada no homicídio foi uma Glock e as munições foram da marca Sellier & Bellot, de origem checa, calibre 9 mm Parabellum (9x 19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), do lote 09, idênticas às distribuídas aos inspectores da polícia judiciária da Directoria do Norte. Com efeito, do relatório pericial de fls. 551 a 566 resulta assente que as cápsulas (14) recolhidas do local do crime em dois momentos distintos (cf. fls. 145, 146, 297, 337) foram disparadas por uma mesma arma e são compatíveis, designadamente, com as munições utilizadas pelos inspectores da polícia judiciária da Directoria do Norte. Em primeiro lugar, resulta claro do aditamento ao relatório de exame pericial n.º 201224561-FBA a fls 781 e 782 que as cápsulas deflagradas apresentam características de classe habitualmente observadas em elementos deflagrados por pistolas de marca Glock, designadamente a forma rectangular e dimensão do percutor, bem como a presença de arrasto do percutor. Este elemento, conjugado com as marcas encontradas nos projécteis – estriado poligonal, cf. fls. 561 – apenas são compatíveis com a arma Glock levam o tribunal a concluir que apenas as munições deflagradas pela pistola Glock apresentam estas características (conforme foi salientado pela testemunha Vitor Teixeira) e, nessa medida, que foi uma arma Glock a utilizada para a prática de crime de homicídio.

Ainda assim, estamos perante uma mera compatibilidade da qual não resulta estar-se perante a arma e munições atribuídas à inspectora Liliana Vasconcelos, tanto mais que como já se deixou supra exposto não ficou o tribunal de júri sequer convencido de tal subtracção e muito menos da autoria da mesma por parte da arguida. Por outro lado, conforme resulta do teor do exame de fls. 548-A e 549 conjugado com o auto de entrega de fls. 348 – referente às munições na posse do marido da arguida -, bem como da apresentação da arma e munições feita pelo inspector António David em audiência de julgamento, naquela Directoria também foram distribuídas munições do lote 08, pelo que não é possível considerar como assente que as munições distribuídas à inspectora Liliana Vasconcelos eram todas do lote 09. Com efeito, dos autos não existe qualquer elemento que comprove que todas as 50 munições distribuídas à inspectora Liliana Vasconcelos eram do lote 09 uma vez que, ao contrário do que foi referido pelo responsável pelo armamento da Directoria do Norte da Polícia Judiciária, foram distribuídas munições de outros lotes aos inspectores daquela Directoria.

Por outro lado, esta compatibilidade de arma e munições não é suficiente para daí se retirar a conclusão que a arma e munições utilizadas no homicídio em análise pertenciam à inspectora Liliana, uma vez que a arma de fogo Glock é uma arma que também se encontra de forma algo frequente na posse de particulares como resulta da informação policial de fls. 1445, e do teor das informações prestadas pelos inquéritos em apenso, bem como do teor de fls. 2737/2738, 2743 a 2746, 2748.

Aliás, a informação policial constante de fls. 2748 datada de 12.12.2010 menciona especificamente o furto de um carregador de pistola Glock calibre 9 mm com cerca de 10 munições pertencente à polícia judiciária, sendo que a fls. 2749 se mencionam 20 munições de calibre 9mm que estariam num estojo da arma Glock, também furtado.

Por fim, conforme resulta da informação dada pela testemunha Vitor Teixeira, inspector da policia judiciária, na qualidade de instrutor de armamento e tiro responsável pelo serviço de armamento da Directoria do Norte da Policia Judiciária, a fls. 206/207, o lote “09” da marca “Sellier & Bellot” «corresponde a largas centenas de milhares de munições produzidas pela fábrica durante o ano de 2009 (…) não existindo sequer qualquer garantia de que a sua disseminação se tenha cingido ao mercado nacional o que seria extraordinário, pois é perfeitamente normal que tenham sido vendidas e comercializadas noutros países». Esta informação convenceu o tribunal e demonstra que tais munições não têm um carácter tão exclusivo como parece resultar da acusação e que motivou até uma alteração no depoimento da referida testemunha em sede de audiência de julgamento tentando fazer uma interpretação do conteúdo da sua própria informação incompatível com o sentido literal da mesma.

Aliás, essa “disseminação” é patente nas informações dos inquéritos que constam em apenso aos presentes autos, onde se constata que não obstante as centenas de munições da referida marca examinados nunca houve sequer a preocupação de distinguir os lotes ou entre as FMJ e JHP, o que demonstra que tal distinção não é sequer relevante para determinar e distinguir as munições utilizadas por forma a limitar o universo da investigação em cada um dos casos aí mencionados. A não ser assim, sempre seria tal distinção efectuada a fim de permitir mais facilmente reduzir o âmbito da amostra criminal.

Por último, este tipo de munição é actualmente facilmente adquirida na internet sem qualquer constrangimento legal, e dificilmente se compreenderia que, a terem um carácter tão exclusivo, a arguida utilizasse tais munições que a ligariam directamente ao crime.

Neste mesmo plano da probabilidade situa-se o facto de no casaco entregue pela arguida terem sido encontrados vestígios de resíduos de disparo de arma de fogo.

Sendo certo que do exame constante de fls. 719 a 723 (com os esclarecimentos de fls. 778/779) feito ao blusão entregue pela arguida e utilizado por esta no dia do homicídio resulta que no mesmo foram detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparos de arma de fogo os quais eram do mesmo tipo das partículas detectadas nos elementos municiais deflagrados da marca Sellier & Bellet, e sendo a presença destas partículas compatível com disparos, manipulação ou proximidade a disparos de arma e fogo por parte da arguida (esta compatibilidade resulta ainda evidente do exame a fls. 785/786), a verdade é que da referida perícia não resulta sequer a conclusão que tais resíduos resultaram da directa exposição desta à nuvem resultante de disparo de arma de fogo.

Com efeito, a deposição de tais resíduos poderá resultar de uma situação de contaminação secundária que não implica tal exposição. E esta possibilidade é, no caso em apreço, perfeitamente compaginável com os resíduos encontrados no blusão da arguida, tanto mais que o facto de a investigação ter inexplicavelmente – e contra todas as normas que quanto a esta matéria regem uma investigação policial – exposto no chão de um gabinete da polícia judiciária a roupa sujeita a perícia, comprometeu irremediavelmente o valor probatório das conclusões periciais como a própria perita que a elaborou admitiu em sede de audiência de julgamento quando confrontada com tal facto desconhecido até àquele momento. A isto acresce ter colocado no mesmo saco PEB duas peças de roupa e uns ténis embrulhados num simples saco de mercearia.

Este incompreensível descuido da investigação ao comprometer irremediavelmente a preservação da cadeia de custódia da prova relativamente a uma das mais fortes provas em que assentava a acusação não pode ser suprido por qualquer esforço do tribunal de júri de recomposição, em audiência de julgamento, do seu valor probatório, outrora estabelecida pela perícia.

Com efeito, como é referido nos esclarecimentos pedidos pelo Ministério Público já no final do julgamento aos peritos do LPC, não é possível determinar o grau de probabilidade de estarmos na presença de uma contaminação primária ou secundária. Por outro lado, a conjugação desta prova com a demais prova já supra elencada e analisada levanta sérias dúvidas sobre a fonte de contaminação do referido blusão.

Atente-se, aliás, que da perícia efectuada às calças e à viatura da arguida não resultaram quaisquer vestígios significativos da presença de partículas características/consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo (cf. fls. 928 a 935). Quanto a vestígios de sangue não foram encontrados nos três pares de ténis entregues (cf. fls. 858/859)

Por outro lado, conforme resulta do teor dos esclarecimentos a fls. 1441/1442 e 1513 a possibilidade de se detectar resíduos de disparos numa peça de vestuário depende do número de partículas depositado e do intervalo de tempo decorrido entre os disparos e a recolha de vestígios ou da altura em que a peça de vestuário deixou de ser usada e ficou ao abrigo da exposição aos elementos atmosféricos, sendo que a maioria dos estudos sobre persistência de resíduos de disparos em peças de vestuário apontam para um intervalo de tempo de cerca de 24 horas após os disparos, havendo algumas referência a tempos superiores (cerca de 48 horas).

No caso em apreço temos de ter em atenção que o blusão da arguida era por esta utilizado diariamente (mesmo após o dia do homicídio) sendo que a sua entrega apenas ocorreu em 25.11.2012, tendo o mesmo ainda sido exposto no chão de um gabinete da policia judiciária em 28.11.2012 (cf. fls. 229) antes da sua remessa ao LPC. Daqui resulta não existirem elementos seguros de que os resíduos encontrados no blusão sejam referentes aos disparos que vitimaram a vítima Filomena Gonçalves.

Em conclusão, da existência dos referidos resíduos no blusão da arguida apenas resulta para o tribunal de júri uma probabilidade de tal ter resultado da exposição da mesma a uma nuvem provocada pelo disparo de uma arma de fogo.

Por fim, o facto de não haver quaisquer indícios de a entrada na casa da vítima ter sido forçada leva o tribunal de júri a concluir que o autor dos factos tinha uma proximidade àquela que lhe permitiu entrar na residência. Todavia, daqui não decorre por si só, desacompanhado de outros elementos, que apenas a arguida poderia ter cometido tal crime mesmo que conjugado com os demais elementos supra mencionados. Continuamos ainda assim no plano das probabilidades que não permite ao tribunal de júri formar a sua convicção de que a arguida foi a autora do crime de homicídio e do crime de peculato imputado.

Pelo exposto, estes elementos conjugados entre si não têm a potencialidade de tornar uma probabilidade em certeza, tanto mais que os mesmos terão necessariamente de ser conjugados com os demais elementos inicialmente expostos e, nesta conjugação, não pode o tribunal de júri deixar de concluir que é mínima a probabilidade de a arguida ter cometidos tais crimes nos precisos termos que constam da acusação, única versão a que o tribunal de júri está vinculado tanto mais que da prova produzida não resultou sequer indiciada a existência de novos factos de que o tribunal de júri pudesse recorrer uma vez cumprido o disposto nos art.ºs 358º e/ou 359º do C.P.Penal.

Esta conclusão terá necessariamente de reflectir-se na absolvição da arguida, sem prejuízo de o tribunal de júri ter ficado convencido, após a produção de prova e analisados os documentos juntos aos autos, que a complexidade factual subjacente ao crime que vitimou Filomena Gonçalves transcende o que foi dado a conhecer nestes autos, e tal limitação condicionar decisivamente a decisão deste tribunal de júri quanto ao cometimento pela arguida dos dois crimes imputados na acusação.

Com efeito, se ficou o tribunal de júri convencido que é muito reduzida a probabilidade de a arguida ter cometido os crimes que lhe são imputados, todas as condicionantes supra exposta não permitem, por outro lado, que se possa concluir com toda a certeza que os mesmos não foram por esta praticados.

Temos assim que concluir pela absolvição da arguida por recurso ao princípio do in dubio pro reo.  Quanto ao valor da arma Glock atribuída à inspectora Liliana Vasconcelos e respectivas munições o tribunal atendeu ao teor da informação constante de fls. 1540.

Quanto às condições pessoais e económicas da arguida o tribunal atendeu ao teor do relatório social junto aos autos.

No que diz respeito aos antecedentes criminais, o tribunal atendeu ao teor do CRC junto aos autos a fls. 3335».

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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo

recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. – cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do C.P.P.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à decisão da matéria de facto não provada, que foi impugnada na totalidade.

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I – CONHECIMENTO DA PROVA INVOCADA

Diz o art. 428º do C.P.P. que as relações conhecem de facto e de direito.

Mais do que conhecê-la a relação pode alterar essa decisão, conforme decorre do art.

431º do C.P.P., se, nomeadamente, a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art.

412º.

No recurso interposto o Ministério Público impugnou a decisão referente a toda a matéria de facto julgada não provada. Alega desconformidade com a prova e, para que seja feita a sindicância dessa desconformidade, socorre-se do mecanismo estabelecido no art. 412º do

C.P.P. que determina, no nº 3, que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a)  Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b)  As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)  As provas que devem ser renovadas».

Acrescenta o seu nº 4 que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação». Em resultado do decidido no acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012, o recorrente pode substituir esta indicação pela transcrição das passagens/excertos das declarações que, no seu entender, imponham decisão diversa.

 

                                   Estando cumprido o formalismo legal cumpre decidir.

 Como dissemos, impugnação respeita a todos os factos julgados não provados e no recurso reclama-se que a alteração da decisão relativa a estes factos será o resultado da análise dessa prova nos termos que a lei determina, ou seja, segundo as regras da experiência (art. 127º do C.P.P.).

O mesmo é referido quanto à prova pericial produzida nos autos. Embora esta esteja, nos termos do art. 163º do C.P.P., subtraída à livre apreciação do juiz, diz o Ministério Público que esta prova não foi devidamente analisada no seu todo e de acordo com as regras legais.

Na análise da concordância entre a decisão e a prova produzida o tribunal procede à audição e análise das provas relevadas pelo recorrente.

Porém, e nos termos do art. 412º, nº 6, do C.P.P., quando o tribunal de recurso proceda à audição de provas orais ouvirá, para além das passagens especificadas, «outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa».

Da leitura do recurso o que verificamos é que os depoimentos invocados nesta peça e que são tidos por fundamentais para a tese da acusação também foram, de uma forma ou de outra, decisivos para o tribunal – por terem sido acolhidos ou relegados -, como resulta da motivação da decisão da matéria de facto. Por isso entendemos que a audição destes depoimentos não se pode restringir aos segmentos invocados pelo Ministério Público e tem que ser mais ampla.  E serão os pontos desses depoimentos que este tribunal teve por relevantes que serão consignados.

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 O primeiro alvo do recurso respeita ao resultado da perícia realizada ao blusão que a arguida usou no dia 21-11-2012 com vista à detecção de resíduos de disparo de arma de fogo.

Resulta do recurso que a consagração na matéria assente que o blusão que a arguida usou no dia 21-11-2012 continha resíduos de disparo de arma de fogo é evidente e essencial para alterar a decisão final, o que determinará a alteração de vários factos dados como não provados, nomeadamente os constantes dos pontos 20, 21, 24, 26 e 32, com a consequente alteração da decisão final.

A propósito da prova pericial realizada ao blusão alega-se que, de acordo com o exame e esclarecimentos de fls. 719 a 723 e 778, 779, 1441, 1442 e 1513, a perícia detectou, inequivocamente, resíduos de disparo de arma de fogo nas mangas e na parte anterior do blusão

– concretamente partículas características de resíduos de disparo genericamente constituídas por chumbo, antimónio e bário, do mesmo tipo das detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime -, resíduos que resultaram de transferência primária por exposição directa à nuvem de partículas proveniente das deflagrações que mataram a vítima e não, como foi decidido, de transferência secundária de resíduos, pois que se da quebra na cadeia da custódia da prova poderia aventar-se a possibilidade de contaminação do blusão, essa possibilidade fica definitivamente afastada com a análise de todos os elementos da prova produzida.

Recordando, decidiu o tribunal recorrido que a prova pericial feita ao referido blusão não demonstrou a transferência primária, na base da seguinte argumentação:

«Sendo certo que do exame constante de fls. 719 a 723 (com os esclarecimentos de fls. 778/779) feito ao blusão entregue pela arguida e utilizado por esta no dia do homicídio resulta que no mesmo foram detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparos de arma de fogo os quais eram do mesmo tipo das partículas detectadas nos elementos municiais deflagrados da marca Sellier & Bellet, e sendo a presença destas partículas compatível com disparos, manipulação ou proximidade a disparos de arma e fogo por parte da arguida (esta compatibilidade resulta ainda evidente do exame a fls. 785/786), a verdade é que da referida perícia não resulta sequer a conclusão que tais resíduos resultaram da directa exposição desta à nuvem resultante de disparo de arma de fogo.

Com efeito, a deposição de tais resíduos poderá resultar de uma situação de contaminação secundária que não implica tal exposição. E esta possibilidade é, no caso em apreço, perfeitamente compaginável com os resíduos encontrados no blusão da arguida, tanto mais que o facto de a investigação ter inexplicavelmente – e contra todas as normas que quanto a esta matéria regem uma investigação policial – exposto no chão de um gabinete da polícia judiciária a roupa sujeita a perícia, comprometeu irremediavelmente o valor probatório das conclusões periciais como a própria perita que a elaborou admitiu em sede de audiência de julgamento quando confrontada com tal facto desconhecido até àquele momento. A isto acresce ter colocado no mesmo saco PEB duas peças de roupa e uns ténis embrulhados num simples saco de mercearia.

Este incompreensível descuido da investigação ao comprometer irremediavelmente a preservação da cadeia de custódia da prova relativamente a uma das mais fortes provas em que assentava a acusação não pode ser suprido por qualquer esforço do tribunal de júri de recomposição, em audiência de julgamento, do seu valor probatório, outrora estabelecida pela perícia.

Atente-se, aliás, que da perícia efectuada às calças e à viatura da arguida não resultaram quaisquer vestígios significativos da presença de partículas características/consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo (cf. fls. 928 a 935). Quanto a vestígios de sangue não foram encontrados nos três pares de ténis entregues (cf. fls. 858/859)

Por outro lado, conforme resulta do teor dos esclarecimentos a fls. 1441/1442 e 1513 a possibilidade de se detectar resíduos de disparos numa peça de vestuário depende do número de partículas depositado e do intervalo de tempo decorrido entre os disparos e a recolha de vestígios ou da altura em que a peça de vestuário deixou de ser usada e ficou ao abrigo da exposição aos elementos atmosféricos, sendo que a maioria dos estudos sobre persistência de resíduos de disparos em peças de vestuário apontam para um intervalo de tempo de cerca de 24 horas após os disparos, havendo algumas referência a tempos superiores (cerca de 48 horas).

No caso em apreço temos de ter em atenção que o blusão da arguida era por esta utilizado diariamente (mesmo após o dia do homicídio) sendo que a sua entrega apenas ocorreu em 25.11.2012, tendo o mesmo ainda sido exposto no chão de um gabinete da policia judiciária em 28.11.2012 (cf. fls. 229) antes da sua remessa ao LPC. Daqui resulta não existirem elementos seguros de que os resíduos encontrados no blusão sejam referentes aos disparos que vitimaram a vítima Filomena Gonçalves.

Em conclusão, da existência dos referidos resíduos no blusão da arguida apenas resulta para o tribunal de júri uma probabilidade de tal ter resultado da exposição da mesma a uma nuvem provocada pelo disparo de uma arma de fogo».

*

Nos termos do art. 151º do C.P.P. «a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» [1].

A perícia é, então, a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas dos referidos especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos [2], é o meio de prova que visa a avaliação dos vestígios da prática do crime quando ela careça destes especiais conhecimentos.

Considerando que a prova pericial se destina a apreciar os factos que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos é este juízo técnico, científico ou artístico que está subtraído à livre apreciação do julgador, ou seja, quando a descoberta da verdade exige técnicas especializadas que não se compadeçam com a aplicação das regras da experiência comum. Diferentemente se passam as coisas quanto a questões que, mesmo que abordadas pela perícia, não exijam aqueles conhecimentos especiais: nesta parte já a regra da livre apreciação domina [3].

Para além disso o que vincula o julgador são as conclusões periciais, devidamente fundamentadas e sempre dentro do circunstancialismo enunciado.

Quanto à base factual de que parte o perito para formular os seus juízos essa não é do domínio do perito, é sim do domínio do julgador. A investigação da causa, o apuramento dos factos, pertence ao juiz, cabendo ao perito emitir os juízos que, repete-se, exijam os tais conhecimentos especiais de que fala a lei no art. 151º do C.P.P.

E é neste enquadramento que a prova pericial tem a tal especial força probatória de que

fala a lei no art. 163º, nº 1, do C.P.P. – «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador» -, e que integra, como se sabe, uma das excepções à regra da livre apreciação da prova consignada no art. 127º do C.P.P.

Por isso se diz que esta é uma prova tarifada ou taxada: o seu valor probatório, o seu peso para a formação da convicção para a decisão da matéria de facto, está pré-estabelecido na lei, radicando este peso acrescido na segurança e certeza dos juízos emitidos, pois que o «papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem» [4].

E uma vez que se trata de prova com um especial peso probatório o juiz deverá acatar o juízo emitido no âmbito dessa prova.

Efectivamente, conforme diz o nº 1 do art. 163º do C.P.P., norma que versa sobre o “valor da prova pericial”, «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador».

Esta formulação logo indica que o juiz não tem o dever de acatar sempre o resultado da prova pericial, pois que é possível o tribunal concluir em sentido divergente do juízo pericial, como resulta do nº 2 do art. 163º do C.P.P., que diz que «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência».

Portanto, é possível o tribunal divergir do juízo pericial.

Só que quando isto suceda o juiz tem que fundamentar a divergência.

Sendo certo que os despachos decisórios têm que ser fundamentados, como impõe o nº 5 do art. 95º, que as sentenças têm que ser fundamentada, como diz o nº 2 do art. 374º, entendemos que a referência ao dever de fundamentação feita no nº 2 do art. 163º quando o juiz divirja da perícia tem um significado especial.

Para nós a referência a este dever de fundamentação significa um mais em relação ao dever geral de fundamentação. Servindo-nos das palavras de Figueiredo Dias [5] diremos que «se

os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação … já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material ou científica …».

Se é certo que o julgador pode divergir da prova pericial, para o fazer terá que fundamentar cientificamente a divergência estribando-se numa crítica da mesma natureza, ou seja, científica, técnica ou artística [6].

Portanto, é inequívoco que o tribunal pode decidir em desconformidade com o resultado da prova pericial que constar do processo.

Não obstante o que dissemos este tribunal considera que no caso em análise o que está em causa no recurso é não a divergência com o resultado da prova pericial, ou seja, a violação da especial força probatória dessa prova – conforme consta da matéria provada, que enumerámos como pontos 85, 86, 89 e 90, está assente que foram detectadas partículas de resíduos de disparo de arma de fogo constituídas por chumbo, antimónio e bário no blusão que a arguida usou no dia 21-11-2012, partículas essas compatíveis com as detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime -, mas sim a conclusão, que o tribunal não retirou, de que os vestígios encontrados decorreram de

transferência primária ocorrida aquando dos disparos feitos pela arguida sobre a vítima quando tinha aquele blusão vestido.

E apesar de reconhecermos que esta concreta questão também exige conhecimentos específicos e profundos da matéria ela já não se enquadra no estrito âmbito da prova pericial realizada não estando, por isso, abrangida pelo art. 163º, nº 1, do C.P.P., desde logo pela razão óbvia que a perícia nunca poderia pronunciar-se sobre se os vestígios do blusão da arguida resultaram dos disparos feitos por esta sobre a vítima. Isto cabe ao juiz decidir e não ao perito.

Relativamente à questão se os vestígios resultaram de transferência primária ou secundária o que está em causa é a análise do “percurso” do blusão desde o momento em que foi apreendido até ao momento em que foi examinado, ou seja, os termos em que esta prova foi preservada e que poderão condicionar não o resultado da perícia – esse mantém-se -, mas o relevo que o resultado da perícia poderá ter na decisão final.

O que está em causa é a discussão se aqueles resíduos resultaram ou não de transferência primária e esta resposta não cabe à perícia, tanto assim que a perícia não respondeu. Fornece orientações científicas e procedimentais para que o tribunal possa concluir.

Por isso o recurso invocou, e bem, outra prova para tentar demonstrar que os resíduos encontrados no blusão resultaram de transferência primária.

O exame feito no âmbito da perícia, cujo relatório consta de fls. 719 a 723, destinado à recolha de eventuais resíduos de disparo de arma de fogo, concluiu que o blusão continha partículas consistentes com resíduos de disparo de arma de fogo, genericamente constituídas por chumbo, antimónio e bário, compatíveis com disparo, manipulação ou proximidade a disparo de arma de fogo, partículas estas do mesmo tipo das detectadas nos elementos municiais deflagrados das munições Sellier & Bellot calibre 9 mm Parabellum, JHP 115 grains, que maioritariamente armam as armas distribuídas aos inspectores da P.J., como sucede com a arguida, com Carlos Coelho, seu marido, e com Liliana Vasconcelos.

Neste mesmo relatório também se diz que o material entregue no laboratório, blusão incluído, foi recolhido em casa da arguida e que o exame foi realizado de acordo com os procedimentos em vigor, baseados no Manual das Boas Práticas para Análise de Resíduos de Disparo.

Realçando, a perícia apresenta os resultados da recolha de resíduos de disparo de arma de fogo no blusão usado pela arguida no dia 21-11-2012 e diz, além disso, que são compatíveis com disparo, manipulação ou proximidade a disparo de arma de fogo. Ser compatível significa que a deposição pode ter decorrido de uma destas situações.

E é este o conteúdo do exame pericial.

A fls. 737 foi solicitado aos peritos que esclarecessem a quantidade e localização das partículas encontradas no blusão e se resultaram de vários disparos e na resposta, constante de fls. 778 e 779, diz-se: «… Quando ocorre a deflagração de uma munição é produzida uma nuvem de resíduos do disparo com uma geometria que é essencialmente função do tipo de arma. Esta nuvem deposita-se sobre o atirador e zonas limítrofes, ficando os resíduos depositados por retenção mecânica ou por retenção termodinâmica. Após o(s) disparo(s) o padrão é perturbado por toda e qualquer actividade, dando lugar à perda de partículas em função dessa actividade.

… foram detectadas cinco partículas características de resíduos de disparo na amostra recolhida nas mangas e uma partícula na amostra recolhida na parte anterior do blusão. A presença destas partículas apenas permite concluir o que consta das conclusões 1 e 1.1 do relatório … embora a quantidade de partículas depositadas seja, no momento imediato após os disparos, função do número de disparos, esta proporção não se mantém ao longo do tempo, não sendo tecnicamente possível determinar qual a quantidade de disparos efectuados por um atirador a partir do número de partículas detectadas nas amostras recolhidas nele ou no seu vestuário».

Dos pontos 1 e 1.1 do relatório do exame pericial, de fls. 719 a 723, consta: «1. Nas amostras com vestígios recolhidos no blusão comprido tipo Kispo de cor cinza … foram detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo; 1.1. A presença destas partículas é compatível com disparo(s), manipulação ou proximidade a disparo(s) de arma de fogo …».

Posteriormente, em 11-4-2013 (fls. 1054) foram pedidos mais os seguintes esclarecimentos aos senhores peritos:

–  1 – por quanto tempo se mantêm os resíduos de disparos com a composição indicada no blusão examinado, no pressuposto de que ele não foi lavado;

–  2 – se a composição detectada – chumbo, antimónio e bário -, é exclusiva das munições de calibre 9 mm Parabellum, da marca Sellier & Bellot, do lote 9, produzido em 2009, e do lote 8, produzido em 2008, e em caso negativo se outras munições, marca e calibre possuem aquela composição;

–  3 – se as munições usadas pela arguida e por quem realizou sessões de treino com ela contêm, na composição, chumbo antimónio e bário;

–  4 – em que circunstâncias e quais as formas possíveis em que pode ocorrer contaminação de chumbo, antimónio e bário em roupas e outros objectos.

A estas perguntas foram prestados os esclarecimentos de fls. 1441 e 1442 dos quais, para além do que já havia sido referido, consta mais o seguinte:

«1. … A quantidade de resíduos depositados, seja da referida composição, seja de outra, é essencialmente função do tipo de arma, tipo de munição, condições ambientais e número de disparos. Após o(s) disparo(s) o padrão é perturbado por toda e qualquer actividade, dando lugar à perda de partículas em função dessa actividade. Assim, a possibilidade de detectar resíduos de disparos numa peça de vestuário irá depender do número de partículas depositadas e do intervalo de tempo decorrido entre o(s) disparo(s) e a recolha de vestígios (ou da altura em que a peça de vestuário deixou de ser usada e ficou ao abrigo da exposição aos elementos atmosféricos).

A maioria dos estudos sobre persistência de resíduos de disparos em peças de vestuário apontam para um intervalo de tempo de cerca de vinte e quatro horas após os disparos, havendo referências a intervalos de tempo superiores (cerca de quarenta e oito horas).

  1. A composição das partículas características de resíduos de disparos de armas de fogo referida (chumbo, antimónio e bário) não é exclusiva dos elementos municiais deflagrados da marca e calibre descritos. Aparece em resíduos de disparos originados pela deflagração de munições de diversas marcas e calibres.
  2. As munições de calibre 9x19mm disponíveis nesta Polícia para uso em carreira de tiro interna, como a existente na Directoria do Norte da Polícia Judiciária, são do tipo Sintox. Por definição este tipo de munições não contém chumbo, antimónio ou bário na composição primária. Como tal, os resíduos de disparo destas munições não apresentam os elementos referidos na sua composição.
  3. De uma forma genérica, os resíduos de disparos transferem-se para um atirador e objectos circundantes (como roupas, por exemplo) por exposição directa à nuvem de resíduos libertada aquando do disparo. Pode ainda ocorrer transferência secundária, por exemplo através do contacto com objectos que apresentem resíduos de disparos».

Por via destes esclarecimentos conclui-se que os resíduos encontrados no blusão da arguida não resultaram de disparos feitos na carreira de tiro interna da P.J., porque as munições ali usadas não contém chumbo, antimónio e bário na composição primária.

Para além disso também ficamos a saber que a composição desses resíduos encontrados – chumbo, antimónio e bário -, não é exclusiva dos elementos municiais deflagrados da marca e calibre descritos.

Finalmente, foram pedidos àqueles peritos mais os seguintes esclarecimentos (fls. 1462 e segs.):

–  se, considerando que o blusão foi apreendido no dia 25-11-2012, pelas 2h, os resíduos encontrados no blusão podem ter subsistido desde o dia 21 até à data da perícia;

–  se face ao tempo decorrido é provável que eles tenham resultado de transferência secundária.

                                    A fls. 1513 constam os esclarecimentos prestados, que são do seguinte teor:

–  «1. Podem. Conforme consta do nosso esclarecimento de 6 de Maio de 2013 … o hiato temporal expectável de permanência de resíduos de disparo de armas de fogo em peças de vestuário é de cerca de 24 horas, podendo em casos particulares ir até às 48 horas. Naturalmente que, dadas as características físicas dos resíduos de disparo de armas de fogo, estes hiatos temporais reportam-se ao uso contínuo da peça de vestuário, ou seja, a sua contagem é interrompida sempre que a peça deixe de ser usada.

2. Tendo em conta o exposto em 1, sobre o ponto 2 nada temos a acrescentar».

Com vista a uma correcta interpretação da perícia por parte deste tribunal o Ministério Público também convocou os depoimentos prestados por Agostinho Santos, na qualidade de consultor técnico, e de Fátima Machado, perita no LPC, na área físico-documental-resíduos de disparo. Por facilidade de exposição (e de conhecimento das questões) o Ministério Público ao invés de proceder à transcrição das declarações usou o conteúdo do parecer técnico subscrito por aquele consultor, constante do apenso I, por os depoimentos e o parecer serem cientificamente iguais.

O valor probatório atribuído por lei à perícia estende-se aos esclarecimentos prestados pelo(s) respectivo(s) perito(s), desde que circunscritos ao objecto da mesma. O que extravase o exame realizado, não obstante a valia técnica dos esclarecimentos prestados, já não se poderá integrar na perícia, tal como referimos, e não estará a coberto do seu especial valor probatório.

*

 Nos termos do art. 155º do C.P.P. ordenada que seja a perícia o Ministério Público, arguido, assistente e partes civis podem designar consultor técnico para assistir à perícia, caso ainda seja possível, podendo ele também propor a realização de diligências, formular observações e objecções. Sendo o consultor nomeado depois da perícia poderá, por regra, tomar conhecimento do relatório da mesma.

Sobre este participante processual diz Paulo Pinto de Albuquerque [7] que a sua função primordial é garantir a qualidade técnica do resultado da perícia, razão pela qual ele terá que ter, pelo menos, a formação técnica do perito.

Em 23-5-2013 o Ministério Público solicitou ao director da Delegação do Centro do INML a indicação de um consultor técnico especialista em medicina legal na área de morte com arma de fogo/resíduos de disparo e se possível do quadro do instituto.

Por ofício de 27-5-2013 foi indicado Agostinho Santos, director de serviço de patologia forense da Delegação do Norte do INMLCF, IP, para exercer as referidas funções.

Mais tarde a arguida requereu que se oficiasse àquele instituto no sentido de este indicar um perito especialista na área da física/balística/resíduos de disparos e também da tanatologia forense. O tribunal decidiu não dar seguimento ao requerido uma vez que o Ministério Público já havia decidido nomear um consultor técnico para o processo, cuja identidade até já era conhecida.

E em 10-7-2013 Agostinho Santos foi nomeado consultor técnico no processo tendo-lhe sido enviados, para além do mais, os exames periciais e esclarecimentos dos peritos constantes do processo, bem como as questões colocadas pela arguida, no requerimento acima referido, e pelo Ministério Público.

As questões colocadas pela arguida ao consultor técnico foram, no essencial, as seguintes:

–  considerando que o blusão, calças e sapatilhas foram entregues pela arguida em sua casa, que todas as peças foram colocadas no mesmo saco, que este saco foi colocado na bagageira do veículo utilizado pelos elementos da P.J. e que as peças foram entregues no laboratório no dia 30-11-2012,

–  se os procedimentos realizados relativamente à recolha estavam em conformidade com o consignado nos manuais de procedimentos da P.J.;

–  se foi colhida amostra padrão dos locais onde o blusão esteve até chegar ao laboratório, para fazer a despistagem de eventual contaminação e se a cadeia de custódia de preservação da prova foi observada;

–  considerando que foi esclarecido que os resíduos se mantêm cerca de 24 horas após os disparos, se caso a arguida tivesse vestido o blusão nos dias 21, 22 e 23 de Novembro os resíduos de disparo persistiriam e se é possível ter ocorrido transferência secundária;

–  em que circunstâncias e de que forma pode haver transferência secundária;

–  se a limpeza da arma pode contaminar quem a executa;

–  se pode haver contaminação em resultado do contacto diário com ambiente de forças policiais.

                                    Dos quesitos formulados pelo Ministério Público temos como relevantes os seguintes:

–  se concorda com o relatório e esclarecimentos prestados pelos peritos;

–  se não concorda, porquê; área físico-documental

–  nas perícias destinadas à detecção de resíduos de disparos de arma de fogo que partículas características/consistentes são normalmente encontradas;

–  que tipo de partículas se privilegiam na pesquisa: as resultantes da deflagração do fulminante das munições e/ou da pólvora; as primárias ou as secundárias; quais são umas e outras;

–  que substâncias são características da deflagração do fulminante;

–  se, tendo em conta o Manual das Boas Práticas para Análise de Resíduos de Disparo da ENFSI, os procedimentos devidos foram seguidos nas perícias realizadas;

–  considerando que o blusão foi apreendido às 2h de 25-11-2012, que foi enviado para análise em 30-11-2012 e que o exame foi iniciado em 5-12-2012,

–  se os resíduos encontrados podem ter subsistido desde 25-11-2012;

–  qual o período de tempo normal em que os resíduos de disparo subsistem nas peças de vestuário, designadamente do tipo do blusão apreendido e qual o período máximo;

–  que factores há que atender no cômputo desses períodos;

–  se o uso da peça é um facto atendível para isso;

–  se a peça não for usada e não estiver exposta a elementos atmosféricos os resíduos, designadamente partículas de chumbo, antimónio e bário, podem perdurar durante quanto tempo;

–  quais os casos de transferências secundárias e como se podem processar;

–  se em caso de transferência secundária o número de partículas pode ser considerável ou será escasso.

E foram as seguintes as respostas do consultor técnico (Apenso I):

1º – questões colocadas pelo Ministério Público

  • nas perícias destinadas à detecção de resíduos de disparos de arma de fogo que partículas características/consistentes são normalmente encontradas

–      a designação “resíduos de disparo de arma de fogo” define um conjunto de resíduos de natureza orgânica e inorgânica resultante da deflagração de uma munição de arma de fogo, que têm origem na deflagração do fulminante, na queima da pólvora, podendo incluir material do invólucro, do projéctil e/ou do seu revestimento, do material do cano da arma, e, eventualmente, de resíduos anteriores e produtos de limpeza da arma;

–      de acordo com as “guide lines” os resíduos de disparo de arma de fogo definem-se

«tendo por base a sua constituição elementar dois grupos de partículas de resíduos de disparo de arma de fogo com origem na deflagração do fulminante»: as partículas características e as consistentes;

–      as partículas características são as fortemente associadas a disparo de arma de fogo, embora haja relatos raros deste tipo de partículas com origem noutras fontes. A sua composição química elementar inclui as seguintes combinações: chumbo, antimónio e bário; gadolínio, titânio e zinco e gálio, cobre e estanho no caso de munições não tóxicas ou sem chumbo. A presença de partículas características numa amostra pode resultar de disparo de arma de fogo, de permanência nas proximidades aquando do disparo, do contacto com superfície/objecto contaminado ou contacto com arma/munição contaminadas;

–      as partículas consistentes com resíduos de disparo são as associadas a disparos de arma de fogo mas que podem ter origem noutras fontes ambientais relativamente comuns: tintas, ligas metálicas, canalizações, combustíveis fósseis, fogo de artifício, airbags, discos de travão. A composição química elementar inclui as seguintes combinações: bário, cálcio e silício; antimónio e bário; chumbo e antimónio; bário e alumínio; chumbo e bário; chumbo, bário, cálcio e silício; titânio e zinco ou estrôncio, no caso de munições não tóxica ou sem chumbo. A presença destas partículas numa amostra pode resultar de disparo de arma de fogo, de permanência nas proximidades aquando do disparo, do contacto com superfície/objecto contaminado, do contacto com arma/munição contaminada ou de fontes ambientais referidas;

  • que tipo de partículas se privilegiam na pesquisa: as resultantes da deflagração do fulminante das munições e/ou da pólvora; as primárias ou as secundárias; quais são umas e outras

–      uma das metodologias mais aceites actualmente para pesquisa de resíduos reside na análise de amostras, onde são pesquisados os resíduos de disparo de natureza orgânica, nomeadamente partículas metálicas microscópicas resultantes da deflagração do fulminante. A sua morfologia típica é a morfologia esferóide/moldada, com um tamanho entre 1 – 10 micrómetros e a sua constituição química elementar inclui um dos grupos de elementos atrás descritos. A designação de partículas e secundárias não é uma designação de uso comum;

  • se, tendo em conta o Manual das Boas Práticas para Análise de Resíduos de Disparo da ENFSI, os procedimentos devidos foram seguidos nas perícias realizadas

–      tendo em conta os manuais como o relatório do exame pericial não descreve os procedimentos seguidos não há dados para responder. No entanto, estando o laboratório em questão integrado na ENFSI (European Network of Forensic Sciences Institutes) admite-se que tenham sido seguidos os procedimentos cientificamente validados;

  • considerando que o blusão foi apreendido às 2h de 25-11-2012, que foi enviado para análise em 30-11-2012 e que o exame foi iniciado em 5-12-2012

–      o exame e esclarecimentos não especificam a percentagem de área de stub por MEV/EDX, não indicam as dimensões de cada partícula encontrada, não evidenciam a composição elementar e não apresentam o respectivo espectro de RX, mas do ponto de vista teórico é admissível que as partículas possam ter subsistido desde o dia 21 até à data do exame;

–      as partículas em questão resultaram da deflagração do fulminante. Estas partículas, devido à sua natureza inorgânica, têm grande durabilidade, podendo perdurar indefinidamente nas roupas se estas forem conservadas em condições ambientais normais, isto é, se depois da deflagração foram conservadas em gaveta/armário, se não foram lavadas, se não foram usadas nas actividades da vida diária, se não foram manipuladas, por exemplo sacudidas, ou se não foram postas em contacto com superfícies que as possam contaminar. Nestas condições as partículas de resíduos de disparo resultantes da deflagração de fulminante não sofrem degradação. As partículas podem não permanecer ao longo do tempo na superfície onde se depositaram – quer superfície corporal, quer vestuário -, devido às actividades da vida diária e à intensidade dessas actividades. Essas acções geram perda de partículas de resíduos ao longo do tempo após o disparo. Mesmo quando as roupas são manipuladas dependendo da manipulação as partículas podem permanecer retidas na superfície onde estão depositadas, sendo que a manipulação da peça acarreta em regra a perda das partículas de maiores dimensões. A eficácia da amostra também interfere com o intervalo de detecção de partículas de resíduos de disparo, que por sua vez está relacionada com o tipo de tecido sobre o qual se colhe a amostra. Num estudo sobre a influência do tecido na eficiência da amostragem de resíduos demonstrou-se que quanto maior for a libertação de fibras do tecido menor será a eficácia da amostragem de resíduos de disparo com fita adesiva, sendo que, por exemplo, a amostragem em cabedal permite a detecção de 3 vezes mais partículas do que em algodão e de 5 vezes mais do que em lã;

–      no caso deve ser considerada a possibilidade de o blusão ter sido usado depois do evento, com a consequente perda de resíduos e/ou de contaminação secundária, deve atenderse à actividade profissional da arguida e à possibilidade de contaminação após a apreensão caso não tenha havido preservação da cadeia de custódia da prova até ao exame, isto se todas as peças apreendidas foram colocadas no mesmo saco e se o saco foi colocado na bagageira do veículo sem quaisquer cuidados (aqui considerou a alegação da arguida);

–      o uso da peça é um factor a atender quando se considera a preservação de partículas que constituem os resíduos de disparo e implica, para cidadão que não contacta com armas nem com ambientes e/ou superfícies em que há disparos de armas de fogo, perda gradual de partículas. No caso, dada a profissão da arguida deve ser considerada a hipótese de a roupa ter sido usada em ambiente de trabalho e a possibilidade de contaminação por transferência directa ou secundária de resíduos existentes nesse ambiente/superfície;

  • se a peça não for usada e não estiver exposta a elementos atmosféricos os resíduos, designadamente partículas de chumbo, antimónio e bário, podem perdurar durante quanto tempo

–      em teoria se uma peça estiver correctamente acondicionada e preservada, sem manipulação e exposição a elementos atmosféricos, os resíduos podem perdurar indefinidamente;

  • quais os casos de transferências secundárias e como se podem processar

–      a transferência secundária é o movimento dos vestígios de resíduos de disparos do local da deposição original para uma segunda superfície não envolvida na deposição inicial desse vestígio;

–      em teoria a transferência secundária de vestígios pode ocorrer através do contacto de um indivíduo com o autor do disparo, com superfícies contaminadas com resíduos ou pelo manuseamento de objectos contaminados com resíduos;

–      alguns estudos demonstram um potencial limitado de transferência secundária de resíduos de disparos a partir de elementos policiais, veículos policiais ou instalações policiais, pelo que há possibilidade de transferência secundária durante o processo de detenção;

  • se em caso de transferência secundária o número de partículas pode ser considerável ou será escasso

–      um estudo concluiu que a transferência secundária de resíduos pode assumir quantidades significativas, sobretudo imediatamente depois do disparo, através do contacto com o autor do disparo ou pelo manuseamento de arma contaminada.

2º – questões colocadas pela arguida (muitas das quais visam os factos e não o objecto da perícia)  os procedimentos seguidos estão conformes aos dos manuais

–      considerando que a arguida diz que o blusão, calças e sapatilhas foram colocados no mesmo saco e que o saco foi colocado na bagageira do veículo utilizado pela PJ sem cuidados e que não se sabe onde e em que condições as peças estiveram até à entrega no laboratório, os procedimentos não estão de acordo com o manual “Inspecção Judiciária – Manual de Procedimentos”;

–      considerando o que a arguida diz as desconformidades resultam da recolha dos resíduos, que o manual diz que no vestuário deve ser efectuada até cerca de 24 horas depois e através de kites, que deve ser adequadamente acondicionamento em sacos de papel, separadamente, de modo a que os resíduos não possam contaminar outras áreas, e do acondicionamento e armazenamento, que devem ser feito de modo a evitar contaminação e que quem procede à apreensão deve usar um par de luvas e um avental novos por cada objecto recolhido, mas o processo não dá informação a propósito disto;

  • se foi colhida amostra padrão do local onde o blusão esteve, isto é, da casa da arguida, da bagageira do veículo e dos demais locais onde esteve até chegar ao laboratório para fazer a despistagem de eventual contaminação e se a cadeia de custódia de preservação da prova foi observada

–      não há elementos para saber se foram colhidas amostras padrão

–      a colheita de amostra-padrão visa despistar eventuais casos de contaminação da amostra-problema, no caso o blusão, e na ausência daquela não é possível excluir por completo eventual contaminação da amostra estudada por transferência secundária a partir do local onde o blusão estava e/ou dos locais por onde passou até entrar no laboratório;

–      sobre a cadeia de custódia o Manual de Procedimentos determina que é fundamental registar com precisão e minúcia o momento e local em que o vestígio foi encontrado, descrever todas as operações de manipulação e tratamento do vestígio, explicitando-se as técnicas usadas, que o acondicionamento, armazenamento e transporte do vestígio devem ser feitos em condições que garantam o seu isolamento e inviolabilidade, usando receptáculos e sistemas de fecho e etiquetagem adequados, que as operações que envolvam abertura e encerramento do receptáculo onde está o vestígio e a sua manipulação ou tratamento devem ser descritas, com registo do momento e local das mesmas e respectivo operador. A cadeia de custódia, sendo um protocolo contínuo, deve fixar todas as fases do processo para garantir a integridade do vestígio e seu valor probatório;

–      se estes elementos não existirem a demonstração dos pressupostos para assegurar que a cadeia de custódia da preservação da prova foi integralmente verificada no que respeita ao acondicionamento da prova, à ausência de problemas entre a apreensão das peças e a sua entrada no laboratório pode ser prejudicada;

  • considerando que foi esclarecido que os resíduos se mantêm cerca de 24 horas após os disparos, se a arguida tivesse vestido o referido blusão nos dias 21, 22 e 23 de Novembro os resíduos de disparo persistiriam

–      a literatura refere que qualquer manipulação de uma peça de vestuário acarreta perda de partículas de resíduos e um estudo concluiu que a persistência de partículas sobre punhos está directamente relacionada com a actividade realizada e se a actividade for moderada detectam-se partículas características até 6 horas depois do disparo, se for intensa até 3 horas depois;

  • considerando a forma como foi feita a recolha se pode ter havido contaminação por transferência secundária

–      em teoria a contaminação/transferência secundária de vestígios pode acontecer pelo contacto do indivíduo com o autor do disparo, com superfícies contaminadas ou pelo manuseamento de objectos contaminados (arma, munição);

–      se as peças foram acondicionadas juntas, em saco fornecido pela arguida, não é possível excluir a possibilidade de contaminação do blusão, quer pelo contacto com outras peças eventualmente contaminadas, com saco de transporte eventualmente contaminado, ou pela manipulação pelos agentes policiais;

  • como se limpa uma arma depois de disparada e se a limpeza pode contaminar quem a executa

–      os procedimentos básicos de limpeza são: descarregar a arma com segurança e desmontá-la; limpar todas as peças ou partes removendo os vestígios acumulados resultantes do uso; aplicar produtos de limpeza, se necessário, para desencrostar ou garantir uma limpeza eficiente de alguma parte; alternativamente podem passar-se as peças por um fluxo de ar comprimido para remover os resíduos; antes da montagem deve aplicar-se um lubrificante em todas as partes móveis;

–      quem procede à limpeza de uma arma contacta com resíduos de disparo e outros, que se acumularam no interior da arma e nos seus componentes, que variam em função do número de disparos feitos na sessão ou do número de sessões de disparos que antecederam a limpeza, podendo ocorrer contaminação durante a operação das mãos, das roupas e superfícies de apoio, quer por via directa, quer por transferência secundária, quando, por exemplo, as mãos do operador passam a ter resíduos de disparo devido ao contacto com as superfícies de apoio onde a limpeza foi feita;

–      estudos demonstram a possibilidade, embora limitada, de transferência de resíduos de disparo a partir de elementos policiais, de veículos policiais e instalações policiais, o que significa que dada a profissão da arguida essa possibilidade não é de excluir.

Também o consultor técnico refere que a presença de partículas características numa amostra pode resultar de disparo de arma de fogo, de permanência nas proximidades da arma no momento do disparo, do contacto com superfície/objecto contaminado ou do contacto com arma/munição contaminadas.

Foi dado como provado que o blusão que a arguida usou no dia 21-11-2012 apresentava resíduos de disparo de arma de fogo constituídos por chumbo, antimónio e bário, sendo 5 características nas mangas e 1 na amostra recolhida na parte anterior, partículas estas compatíveis com as detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime.

                                   E sobre a transferência?

 Diz o Ministério Público que a verdadeira razão que levou à decisão recorrida de não dar como provado que os resultaram do disparo foi considerar-se que advieram de transferência secundária, diferentemente do que se provou.

Como vimos o tribunal confrontou-se com o que para si constituiu falta de demonstração de os vestígios que o blusão apresentava resultarem de transferência primária. Foi dito, além do mais, que «Sendo certo que do exame … feito ao blusão entregue pela arguida e utilizado por esta no dia do homicídio resulta que no mesmo foram detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparos de arma de fogo os quais eram do mesmo tipo das partículas detectadas nos elementos municiais deflagrados da marca Sellier & Bellot, e sendo a presença destas partículas compatível com disparos, manipulação ou proximidade a disparos de arma e fogo por parte da arguida … da referida perícia não resulta sequer a conclusão que tais resíduos resultaram da directa exposição desta à nuvem resultante de disparo de arma de fogo.

Com efeito, a deposição de tais resíduos poderá resultar de uma situação de contaminação secundária que não implica tal exposição. E esta possibilidade é, no caso em apreço, perfeitamente compaginável com os resíduos encontrados no blusão da arguida, tanto mais que o facto de a investigação ter … exposto no chão de um gabinete da polícia judiciária a roupa sujeita a perícia, comprometeu irremediavelmente o valor probatório das conclusões periciais como a própria perita que a elaborou admitiu em sede de audiência de julgamento quando confrontada com tal facto desconhecido até àquele momento. A isto acresce ter colocado no mesmo saco PEB duas peças de roupa e uns ténis embrulhados num simples saco de mercearia.

… como é referido nos esclarecimentos pedidos pelo Ministério Público já no final do julgamento aos peritos do LPC, não é possível determinar o grau de probabilidade de estarmos na presença de uma contaminação primária ou secundária».

Não obstante a probabilidade se inserir num juízo científico a resposta se, no caso, aconteceu uma ou outra pertence ao juiz e não ao perito. O perito esclarece, explica cada uma das situações, como ocorre a transferência primária e a secundária e o juiz, perante os factos e as explicações, que visam auxiliar o juiz a decidir, decidirá.

No sentido de contrariar esta convicção que o tribunal formou – que a presença dos resíduos poderá ter resultado de transferência secundária -, o Ministério Público socorreu-se das declarações prestadas em julgamento pela perita Fátima Machado e pelo consultor técnico Agostinho Santos.

Fátima Machado, especialista superior do Laboratório de Polícia Científica da P.J., declarou, além do mais, que fez as perícias de pesquisa de resíduos de disparos e deu os esclarecimentos e que o primeiro exame foi iniciado de 5-12-2012.

À pergunta sobre os protocolos seguidos pelo laboratório onde trabalha e às práticas aí seguidas disse que o laboratório iniciou aquelas perícias cerca do ano de 1997, que nessa altura ela já tinha experiência de microscopia electrónica, que depois do ingresso na P.J. fez formação no estrangeiro sobre a matéria, que assiste regularmente, tal como os colegas, a reuniões do grupo do ENFSI (European Network of Forensic Science Institute), fazendo mesmo parte do grupo de armas de fogo e resíduos de disparo.

Na pesquisa destes resíduos seguem o Manual de Boas Prática dos ENFSI, assim como a norma americana, que é a técnica unanimemente considerada como a mais específica para análise desses vestígios. E foi esta a técnica utilizada no caso. Os exames foram feitos por si mas os resultados foram analisados, como sempre, por outro perito.

No início do exame a primeira coisa que fazem é o recebimento do material e ou é recebido em kit (stub) ou é o próprio material que é recebido.

Relativamente ao resultado positivo, o do blusão, foi a depoente quem abriu o saco onde ele estava: o blusão estava dentro de um saco PEB, que é um saco de papel com uma janela, usado na polícia para transporte de evidências. A acompanhar o saco ia, como sempre, um ofício de pedido de exame, onde consta todo o material enviado para exame. Perguntada se nesse ofício constava alguma referência aos elementos que estivessem dentro do saco PEB respondeu que, conforme consta do relatório pericial (de fls. 719 e segs. e que leu na altura), o blusão, umas calças de ganga e um par de sapatilhas, estas dentro de um saco de plástico, iam dentro do mesmo saco PEB. Se tivesse analisado estas sapatilhas teria descrito o saco de plástico dentro do qual elas estavam.

Perguntada porque não analisou as sapatilhas disse que, de acordo com as práticas do laboratório seguidos pelo ENFSI, as primeiras peças a analisar são as mais expostas a resíduos de disparo. E como aquelas – no caso o blusão -, revelaram a existência de resíduos não analisou as sapatilhas. E exemplificou: se receber um casaco, uma camisa e uma camisola interior e não tiver qualquer informação complementar começa a análise pelo casaco porque, sendo a peça mais exterior, é a mais exposta. No caso como o blusão e as calças estavam no mesmo saco colocou as amostras simultaneamente na câmara do microscópio.

Quando recebem peças de vestuário os sacos são abertos na chamada “sala de recolha de vestígios”, que tem cuidados especiais de limpeza, e a observação das peças de vestuário é feita numa “wat”, que é um compartimento estanque, de superfícies lisas, que é limpo entre a observação de itens diferentes e que é sempre coberto com um papel grande. A peça de vestuário é retirada do saco e é pousada nessa superfície e o saco nunca é pousado nessa superfície. Depois observam a peça num suporte adequado que é introduzido no microscópio electrónico. O suporte metálico é revestido por uma fita adesiva de dupla face de carbono para ser condutora – a fita adesiva está sempre protegida por uma película protectora e só é removida no laboratório, remoção essa feita com luvas, batas, máscara, etc. -, a tampa do suporte é aberta na altura da recolha, é removida a película e a recolha é feita por toques sucessivos na superfície a analisar.

No caso do blusão os toques foram feitos nas mangas, parte anterior e capuz. Estas zonas são escolhidas porque são as zonas mais propícias a deposição directa de resíduos de disparo de arma de fogo. Este é o protocolo e não havendo nada que determine recolhas diferentes seguem o protocolo.

Depois das recolhas fotografa-se o material, recolhe-se e embala-se o material, retira-se o papel, limpa-se a wat, coloca-se um pano limpo sobre a wat, mudam-se as luvas e a bata e fazse a abertura e recolha de amostras na peça seguinte. E foi assim que fez no caso.

Nas calças fez a pesquisa na parte posterior, sobretudo na parte de cima.

Perguntada se a composição da peça tem relevo na recolha de amostras respondeu que existem normas sobre isso: se a peça em causa liberta muitas fibras divide-se mais a peça e fazem mais recolhas, porque a amostra carrega mais o suporte que vai ser analisado e pode influenciar na eficiência da recolha de vestígios; uma peça de material sintético, como o blusão, é um material muito liso, liberta poucas fibras e, portanto, não vai carregar muito a fita adesiva do suporte que vai ser analisado. Por isso a eficiência de recolha é superior.

Sobre a observação disse que o que fazem é pesquisa de partículas características ou consistentes com resíduos de disparos. Estes resíduos têm origem na deflagração da munição, aquando do disparo.

Sobre a deflagração da munição disse que esta é constituída pelo projéctil e pela cápsula. Na base da cápsula, que está cheia de pólvora e que é a carga propulsora, há uma cápsula mais pequena chamada cápsula fulminante ou primário. Com o disparo o percutor bate na base da cápsula fulminante, desencadeia uma chama, a chama propaga-se à carga propulsora e desencadeia a deflagração da munição. A deflagração é uma reacção química, fortemente isotérmica, isto é, expansiva, que liberta todo o material lá contido, que vai projectar o projéctil em direcção ao alvo. Durante esta reacção os compostos do fulminante misturam-se com os compostos da carga propulsora/pólvora e reagem quimicamente. Nos compostos que estão no primário há elementos ricos em determinados elementos – por exemplo chumbo, antimónio e bário -, e na altura da deflagração da munição dá-se uma reacção entre esses elementos e entre todos os elementos libertados formam-se algumas partículas com determinadas características de morfologia e composição – partículas essas aproximadamente globulares, com dimensões da ordem do micrómetro, milésimo de milímetro -, e as partículas características têm, simultaneamente, chumbo, antimónio e bário, partículas de natureza inorgânica, metálica, consideradas altamente específicas da deflagração de munições de arma de fogo. Por isso se trata de um método actualmente aceite pela maioria dos laboratórios forenses europeus, americanos, australianos, etc., para a pesquisa dessas partículas.

                No caso foram identificadas partículas com essas características.

Neste momento queremos realçar o que consta do acórdão recorrido, e já referido, sobre a impossibilidade de se saber se os vestígios encontrados no blusão da arguida resultaram de contaminação primária ou secundária argumentando-se, nesse sentido, com o facto «que da perícia efectuada às calças … não resultaram quaisquer vestígios significativos da presença de partículas características/consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo …».

 

Agostinho Santos declarou que se a peça tiver estado em local contaminado para se eliminar a possibilidade de ter havido contaminação tem que se caracterizar os ambientes em que ela podia ter ocorrido. Para despistar a possibilidade de transferência tem que se ter amostras controlo daqueles ambientes para saber que partículas há, de que tipo são, qual a composição, qual a morfologia. Não havendo amostra e sabendo que a peça andou no veículo da polícia, que esteve nas instalações da polícia, etc., não poderia excluir a possibilidade de contaminação.

Perguntado se é possível transferência secundária entre peças de vestuário respondeu que sim. Perguntado se é possível mobilização das partículas na mesma peça de vestuário respondeu que sim e que para isso suceder basta que as diferentes zonas entrem em contacto directo umas com as outras. É fácil haver transferência de resíduos de um lado para o outro por isso se recomenda o embalamento separada das peças e que sejam manipuladas o mínimo possível. Perguntado se era possível a transferência de partículas entre um blusão, umas calças de ganga e umas sapatilhas colocados num mesmo saco respondeu afirmativamente.

Perguntado se era possível a transferência de partículas de algo que estivesse na bagageira do carro onde o saco atado foi introduzido para o que estava no interior do saco respondeu que não e que a possibilidade de contaminação era para o exterior do saco. Se o saco estivesse aberto era possível a transferência para o interior.

Entretanto o consultor foi confrontado com perguntas relativas a lesões provocadas na mão do atirador por disparo de arma de fogo, devidas ao empunhamento da arma.

Perguntado se alguma vez, na sua experiência profissional, viu este tipo de lesões respondeu, e reproduzimos: «não são frequentes mas podem acontecer quando uma parte da arma vem para trás, a parte da corrediça, pode prender … “trilhar” … a pele … e deixar uma lesão …».

Perguntado se já viu lesões resultantes de queimadura provocada por uma peça da arma, nomeadamente da corrediça, disse: «eu disso não tenho experiência. Tenho alguma, pouca, porque, repito, não são muito frequentes essas lesões. Pelo menos eu, da minha experiência profissional, não posso testemunhar isso. Conheço do ponto de vista teórico, tenho alguma na minha experiência profissional. Mas em termos de aquecimento … se der queimadura pode ser de 1º grau, eventualmente de 2º grau …».

Depois percebe-se que lhe foram mostradas fotografias da mão da arguida e perante elas respondeu «as lesões resultantes da acção da corrediça, quando ela vem atrás e depois vai à frente, normalmente são lesões … padronizadas, desenham um determinado padrão, que é o desenho da parte posterior da corrediça … Não tem que ser necessariamente assim, mas o mais frequente é que assim seja. E o que eu vejo aqui é uma lesão mais ou menos linear. Não sei se se pode considerar».

Relativamente à cadeia de custódia da prova e do circunstancialismo que a rodeou, o Ministério Público também convocou os depoimentos prestados por José Cardoso, Alcides Rainho, Mota Gonçalves, todos inspectores da P.J., e do segurança José Romano.

José Carlos Leio Pinheiro Cardoso, inspector da P.J., disse estar na Directoria de Coimbra desde 2000, que está nos crimes contra as pessoas e que conhece a arguida desde quando ela estagiou em Coimbra.

Sobre o facto de ter feito a investigação deste processo disse que a distribuição de processos tem uma escala e que era a si que caberia receber o homicídio seguinte contra desconhecidos. No dia dos factos não estava de prevenção mas o colega que estava foi chamado antes do conhecimento deste crime e, por isso, foi ele ao local.

Sobre os actos de investigação em que interveio directamente disse que foi ao local e logo nessa madrugada teve contactos com algumas testemunhas: inquiriu a dona Rosa (filha da vítima), o senhor Carlos (filho da vítima), o marido da dona Rosa e o marido da arguida (Carlos

Coelho).

Sobre os contactos com a arguida disse que no dia 22 foram à Directoria do Norte recolher as armas dela e do marido, Carlos Coelho, que no sábado 24 houve nova inquirição do Carlos e que de sábado para domingo fizeram a busca em casa da arguida.  

Disse que quando foi pedida a perícia ao material aqui apreendido contactou com o laboratório e explicou como tudo se tinha passado, como é hábito fazer-se.

Sobre outras diligências disse que foi a um hipermercado Continente existente em frente à casa da arguida para ver se havia câmaras, mas esta informação obtiveram-na muito tarde e as imagens recolhidas no dia já não existiam. Esclareceu que antes tinham ido ao hipermercado da Maia porque lhes foi dito que foi aí que a arguida tinha ido no dia dos factos. Esclareceu que não foram recolhidas imagens da arguida.

Perguntado disse que foi para o local do crime no carro da perita da equipa da perícia técnica, que é uma carrinha específica para a situação. A PSP estava no local e no exterior estavam a filha e o genro da vítima. Fizeram-lhes logo a recolha de eventuais vestígios de disparos, porque souberam que eles estiveram em casa da vítima. A filha contou que tinha telefonado e como a mãe não atendeu foi ver o que tinha acontecido. Ela disse-lhe que tinha chave mas que entrou usando a chave da vizinha.

Depois entraram na casa da vítima, mas antes ele e a perita vestiram-se e calçaram luvas. Juntou-se-lhes a colega Sandra Roxo e entraram.

Quando entrou viu logo o corpo da vítima: estava numa sala, em decúbito dorsal, muito perto da porta-janela que dá para uma varanda das traseiras, com os pés virados para a entrada. Nesse dia encontraram 13 cápsulas e alguns projécteis. Também havia marcas de impacto no chão. Depois de tirado o corpo foi feita uma busca mais intensa, mas com as limitações próprias das horas a que já lá estavam e da hora do dia. Sobre a recolha das cápsulas disse que foi a perita que as recolheu e embalou.

Concluíram que o móbil não tinha sido o roubo porque a casa estava alinhada, não havia sinais de arrombamento, a vítima tinha ouro e havia ouro e dinheiro em casa. Disse que no dia 27 de Novembro os inspectores Verónica e Coutinho encontraram outra cápsula e mais dinheiro na casa da vítima.

As cápsulas recolhidas eram marca Sellier & Bellot, 9×19, lote 09, expansivas, de uso exclusivo da P.J. Perguntado que munições é que a testemunha tinha na sua arma respondeu que eram do lote 10 e não eram hollow point. Perguntado porque afirmava que as munições eram de uso exclusivo da P.J. disse que tiveram uma primeira informação, prestada pelo inspector Vitor Teixeira, instrutor da carreira de tiro do Porto, que disse que as munições poderiam não ser exclusivas da P.J. mas depois tiveram informação contrária. Concluiu que se as munições eram da P.J. então a arma que as deflagrou também tinha que ser.

Disse que esta informação, mais o que foi transmitido por Carlos Coelho do dia 21 para 22, de que tinha desaparecido uma Glock da Directoria do Norte de um gabinete em frente ao da arguida, foram muito importantes para a investigação.

Disse que Carlos Coelho foi ao local do crime e foi dando informações. Perguntado se desconfiaram dele respondeu que face aos elementos recolhidos e sendo um crime de homicídio de proximidade todas as possibilidades são consideradas, mas logo tiveram conhecimento de que não poderia ter sido ele porque tinha estado na Directoria do Norte no dia do crime.

Neste momento a defesa reagiu ao pedido do Ministério Público para relatar a conversa, dizendo que isso era ilegal.

*

O art. 356º do C.P.P. versa sobre a “leitura permitida de autos e declarações” e diz, no seu nº 7, que «os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas».

Portanto, os OPC´s que tenham recebido declarações cuja leitura não seja permitida em audiência não podem ser inquiridos sobre o conteúdo destas mesmas declarações: os art. 356º, nº 7, e 357º, nº 2, do C.P.P. vedam o aproveitamento, como meio de prova, de declarações prestadas por OPC´s sobre o que ouviram dizer aos vários intervenientes processuais no decurso do inquérito.

             Mas a intervenção dos OPC´s não se restringe a estes casos.

Obtida a notícia de um crime há que iniciar a investigação no mais curto espaço de tempo. A competência para a investigação pertence a autoridade judiciária própria, ou seja, o Ministério Público [8] mas, e como refere o nº 1 do art. 249º do C.P.P., também «compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova».

Compete aos OPC´s, nomeadamente:

«a) Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no nº 2 do artigo 171º e no artigo 173º, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares;

b)            Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;

c)            Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação ou manutenção dos objectos apreendidos» – art. 249º, nº 2, do C.P.P.

A lei contempla, nesta norma, a chamada competência cautelar própria, ao abrigo da qual os órgãos de polícia podem executar actos cautelares com vista à conservação da prova. Entre estes actos de conservação de prova inclui-se, como diz a lei, o poder de inquirir pessoas que possam ter informações relevantes à descoberta da verdade. Sendo verdade que estas pessoas não têm, naquele momento de intervenção cautelar, qualquer estatuto e que nem sequer são obrigadas a depor, também é verdade que podem e devem ser inquiridas, se nisso acederem.

Portanto, a actuação dos OPC´s no âmbito da sua competência cautelar dirigida à recolha de prova – que pode consistir na recolha de informações junto de pessoas que as possam e queiram prestar -, é legal e não se confunde com a investigação feita posteriormente, já no âmbito do inquérito. E sendo aquelas diligência legais todas as informações recolhidas em tal circunstancialismo podem ser transmitidas em audiência e podem consideradas pelo tribunal, aquando da formação da sua convicção. Todas as informações prestadas nesta altura qualquer que seja a pessoa que as preste, nomeadamente alguém que venha, depois, a ser constituída arguida, são válidas e podem, portanto, ser relatadas.

O relato era legal.

*

Fechado este parêntesis a testemunha José Cardoso continuou dizendo que no dia 22 foi ao Porto, com os inspectores Verónica e Coutinho, recolher as armas e munições distribuídas à arguida e ao marido. A recolha foi feita à noite, às 22h/23h, e as armas estavam nas instalações, nas respectivas secretárias. Disse que esteve em reunião e que só esteve com a arguida e marido no final, quando entregaram as armas e munições e que os colegas é que estiveram sempre com eles.

Nesse dia, talvez por volta das 17h, contactou Carlos Coelho comunicando o que pretendiam e que falou com ele várias vezes depois disto.

Perguntado disse que Carlos Coelho dizia que tinha sido a esposa a autora do crime e foi dizendo as razões que o levavam a fazer essa afirmação. Perguntado se foi dando informações da investigação ao marido da arguida disse que não e que ele foi uma das maiores fontes de informação no processo: ele falou do desaparecimento da arma, dos problemas financeiros e pessoais do casal, da lesão que a esposa tinha na mão e que não tinha presenciado qualquer acidente que a pudesse ter provocado.

Perguntado sobre as relações que tinha com a testemunha Carlos Coelho respondeu que sempre tiveram uma relação pessoal muito boa e que a partir de certa altura do inquérito ele deixou de lhe falar.

A testemunha continuou e disse que o encontro para entrega das armas era quando chegassem e que a arguida e marido chegaram com atraso em relação à hora combinada.   Depois foi lido à testemunha o registo de entradas na Directoria do Norte naquele dia, constante de fls. 2691 e segs., onde se diz que a arguida e marido entraram nas instalações da P.J. do Porto no dia 22-11-2012 pelas 20h09 e saíram às 22h48. A testemunha José Cardoso disse que há sempre controlo de entradas e saídas na Directoria do Norte, mesmo para inspectores, ainda para mais fora da hora de serviço e quando se trata de elementos que não trabalhem naquele local.

Sobre a referida prova a fls. 2691 e segs. do processo consta uma informação prestada pela Directoria do Norte da P.J. dizendo que no dia 22-11-2012 a arguida e o inspector Carlos Coelho estiveram naquelas instalações entre as 20h09 e as 22h48, para entregarem as armas de serviço, e que os inspectores Verónica, Coutinho e Cardoso, da Directoria do Centro, entraram naquelas instalações às 19h e saíram às 22h50.

Continuou dizendo que foi a si que as armas foram entregues, na presença dos colegas Verónica e Coutinho. Ambas as armas foram entregues pelo Carlos e foram entregues mais dois carregadores por cada arma e 50 munições. Perguntado se os carregadores tinham munições respondeu que alguns tinham.

             Depois da recolha o depoente e colegas regressaram a Coimbra.

Perguntado se a arguida e o marido apresentaram alguma justificação para o atraso disse não saber mas que no dia seguinte teve outros contactos com o marido da arguida e que aqui ele disse que se tinham atrasado porque a arguida se atrasara e que depois associou este atraso do dia 22 ao atraso do dia 21. Perguntado disse que os contactos do dia 23 foram sempre por telemóvel. Sobre a iniciativa de contacto disse que foi do Carlos: ele dava um toque e o depoente depois ligava-lhe para ele não gastar dinheiro do seu telemóvel.

Nesse dia 23 o Carlos falou dos atrasos da esposa dos dias 21 e 22 e que associou o do dia 22 ao do dia 21. Disse que no dia 21, para além de a esposa ter o telemóvel desligado, o que não era habitual, à noite, quando ele chegou a casa, ela não estava e que só chegou depois das 19h30 com a filha, quando o normal era chegar depois das 18h.  Sobre o atraso do dia 22 o depoente disse que Carlos Coelho lhe disse que a esposa tinha saído de casa para ir buscar a filha, que chegou atrasada e que depois, quando ele chegou ao carro, ele estava limpo e que associou o atraso à limpeza do carro.

O depoente disse que no dia 24 já havia a decisão de a arguida e o Carlos prestarem depoimento. Ligou ao Carlos dando-lhe essa informação e depois dirigiu-se à igreja, onde estava a vítima, mas quando chegou já a estavam a tirar.

Então foi para o cemitério e quando chegou ao acesso viu a arguida e o Carlos no passeio. Eles vieram ter com o depoente e este falou-lhes no depoimento. Disse que eles se disponibilizaram para serem ouvidos de imediato e, por isso, seguiram logo para a Directoria do Centro. O depoente esclareceu que ouviu o marido da arguida e que a arguida foi ouvida por um colega.

Nesse dia 24 retiveram a viatura cautelarmente para exame devido à informação do Carlos sobre a limpeza da viatura feita pela arguida.

À pergunta se a investigação não tinha sido muito restrita, muito dirigida, o depoente respondeu que tinham seguido a linha de investigação normal nesses casos, sendo que ela passou a ser dirigida quando tiveram acesso a determinadas informações. Também disse que nada do que devia ter sido feito deixou de o ser e que as informações que ele prestou vieram-se a confirmar pelas averiguações posteriores. Inquiriram outros elementos da família e face ao que já sabiam – que a arma tinha sido uma Glock, que não havia arrombamento, que a vítima não abria a porta a ninguém -, a linha de investigação foi orientada a seguir.

Entretanto, sobre o desaparecimento da arma da Directoria do Norte e tendo sido dito à testemunha que o que se retirava do processo é que esse incidente tinha sido tratado como um mero desaparecimento, porque nada fizeram senão uma inspecção às gavetas, e que só no dia 22 é que o desaparecimento começou a ser tratado como furto, que durante 15 dias ninguém quis saber e que só depois de o depoente ter falado das informações prestadas pelo marido da arguida é que as coisas mudaram respondeu desconhecer os termos do processo interno.

Disse que no dia 22 falou com o director da Directoria do Norte e que lhe comunicou o que lhe havia sido transmitido pelo marido da arguida.

 

A testemunha continuou dizendo que terminadas as inquirições do dia 24, que acabaram à noite, falou à arguida e marido sobre a realização de uma busca à residência na Maia, que visava a recolha de armas e elementos balísticos relevantes. A realização desta diligência resultou do entendimento dos inspectores do caso e das chefias. A arguida e o marido concordaram e estão dirigiram-se à Maia de seguida.

Perguntado o carro que usaram disse que foram num Citroen C4, 18-DV-62. O  segurança José Romano conduzia, ao lado ia o depoente e atrás a arguida e o marido.

Entretanto falou-se que constava do processo, a fls. 2192, uma fotografia deste veículo com a porta da bagageira aberta. Perguntado ao depoente se o carro era o que se via na fotografia respondeu que sim. Perguntado se a bagageira do veículo tinha, no dia 24-11-2012, o que se vê na fotografia respondeu que sim, que tinha a certeza absoluta que era aquilo que estava no carro e explicou que se tratava de um trólei específico de recolha de vestígios, composto por dois compartimentos desmontáveis, que acompanha sempre o carro.

Disse que quando chegaram estacionaram em frente ao prédio e que já os esperava o inspector Mota Gonçalves, da Directoria do Norte, que nem conhecia na altura. Esclareceu que a direcção da Directoria do Centro solicitou à Directoria do Norte que a diligência fosse acompanhada por um inspector desta directoria e que relativamente a isto a única coisa que fez foi telefonar ao inspector Mota Gonçalves quando estavam a chegar.

Chegados à Maia estacionaram o veículo junto ao prédio e antes de irem para o apartamento da arguida retiraram de um dos compartimentos do trolei um saco PEB – police evidence bag -, usado para a guarda de vestígios recolhidos nas buscas, e levou o saco.

Perguntado se põem tudo no mesmo saco ou não disse que se os elementos recolhidos forem todos do mesmo suspeito são todos colocados no mesmo saco. Esta é a prática, mas há excepções: se, por exemplo, houver elementos com manchas hemáticas ou com sinais de disparos são colocados em saco diferente.

Perguntado disse que na realização desta busca, como em todas, utilizaram luvas de látex e levaram uma caixa para cima para o caso de terem que mudar de luvas.

Chegados ao apartamento calçaram luvas e fizeram a busca. Perguntado, disse que percorreram todas as divisões: o marido da arguida acompanhou o depoente e a arguida acompanhou o outro colega e que foi este que fez a busca no quarto da arguida. O inspector Mota Gonçalves presidiu à diligência e acompanhou as buscas, ora num local, ora noutro.

Disse que quando a busca acabou sentou-se e elaborou o auto. Quando o auto estava encerrado pediu à arguida a roupa que tinha utilizado durante a semana. A arguida deslocou-se a um quarto, o depoente acompanhou-a e ela tirou um blusão que estava num cabide ao fundo da cama. Perguntado, disse que nessa altura mantinha as luvas calçadas e que só as tirou no final de tudo, já na rua. A arguida também entregou umas sapatilhas pretas, que estavam com outras junto à máquina, e umas calças de ganga.

Disse que a arguida lhes forneceu um saco de plástico, de supermercado, onde as sapatilhas foram colocadas. Depois colocou o saco de plástico no saco PEB, por cima as calças e por cima das calças o blusão, previamente dobrado. Depois entregou o saco ao colega Romano, este levou-o para o carro e colocou-o na bagageira.

Sobre o saco PEB disse que é um saco apropriado, que é dobrado em duas ou três voltas e no fim põe-se fita-cola a fechar. Disse que é assim que estes sacos são fechados e foi assim que o fechou. Perguntado disse que pôs a fita-cola junto ao carro, porque era lá que ela estava.

Trouxeram o saco para baixo e ele foi colocado na mala do carro, entre as duas malas do trólei: não o colocou dentro das malas porque não cabia e nem isso é adequado, porque nelas metem-se outros vestígios.

Depois regressaram a Coimbra: trouxeram a arguida e o marido, passaram pela Figueira onde eles queriam ficar, e vieram para Coimbra.

Perguntado disse que quando foram para a Maia levaram uma mala de viagem e sacos da arguida. No regresso também trouxeram alguns sacos da arguida.

Em Coimbra levou o PEB para as instalações da P.J. e colocou-o dentro do armário do seu gabinete, de onde constam os processos da brigada. O saco PEB manteve-se sempre fechado, esteve sempre dentro do armário e só saiu e foi aberto na altura da diligência das fotografias (que constam de fls. 377), que foram tiradas pelo colega Alcides Rainho.

Disse haver um outro armário metálico, que está fora dos postos de trabalho, onde se guardam as armas de fogo e vestígios balísticos recolhidos. Estes elementos vêm embalados do local onde são recolhidos, são colocados nesse armário, o armário é fechado e a chave fica no gabinete do chefe.

Disse que aquando da diligência de fotografar as peças retirou o saco que continha a roupa do armário do seu gabinete, onde o tinha colocado, e foi chamar o inspector Rainho, porque ele tinha passado a chefiar a brigada.

Disse que a fotografia foi feita naquele dia e àquela hora para ser mostrada à testemunha Raquel no dia seguinte de manhã. Feita a fotografia passou-a para um cartão, que entregou aos colegas do Porto José Faustino e Machial Pinto, que vieram a Coimbra nesse dia 27 e que no dia seguinte iam fazer a inquirição da testemunha Raquel, como fizeram.

Disse que o chão onde as peças foram colocadas, que se vê na fotografia, é do seu gabinete. Disse saber que o chão não seria o local ideal mas que ali não se fazem disparos. Perguntado como é que podia garantir que o chão não tinha resíduos de disparo de arma disse que ele é limpo diariamente, entre as 18h e as 19h, e que as empregadas da limpeza limpam o pó, limpam o chão e passam a esfregona com cera. A fotografia foi tirada depois da limpeza, por volta das 20h. Para além de que os resíduos resultam do fulminante e a sua recolha é sempre feita com uma fita-cola.

Perguntado porque é que não tirou uma amostra do chão disse que não o fez porque o espaço era apropriado e estava limpo e que normalmente não eram feitas amostras de controlo.

Disse que quando abriu o saco verificou que as peças estavam como as tinha deixado. Tirou o blusão, as calças e as sapatilhas. Pousou as peças no chão e o blusão esteve sempre como se vê na fotografia, com as costas assentes na madeira. Depois colocou as peças no saco, dobrou o saco como tinha feito pela primeira vez e colocou-o no armário. Depois enviou o saco para o laboratório no dia 3-12-2012, embora o ofício seja de 30/11.

Disse que todo o manuseamento foi feito com luvas.

A fls. 392 e segs. consta um ofício, datado de 30-11-2012, dirigido ao director do LPC solicitando a realização de exames periciais.

A testemunha disse que a partir do momento em que os vestígios chegam ao laboratório normalmente contactam as pessoas do departamento encarregado da análise, para terem uma ideia do que aconteceu e do que vai para analisar. Foi o que fez e a partir daí decorreram contactos normais telefónicos com a pessoa encarregada.

Entretanto sobre a data que consta da “cota/informação” de fls. 417, onde o depoente relata as conversas que disse ter tido com Fátima Machado e sobre o facto de a data que consta, 4-12-2012, não ser a data da referida conversa, disse a testemunha que esta data foi um lapso, mas que a referida conversa aconteceu no máximo até ao dia 7-12-2012.

Perante isto o senhor juiz disse à testemunha que não acreditava que a conversa tivesse acontecido no dia 7 por a folha a seguir ao esclarecimento estar datada do dia 5.

*

Não obstante não constar dos deveres funcionais dos funcionários encarregados de um processo judicial a numeração das respectivas folhas o que acontece é que, na prática, as folhas dos processos são numeradas, numeração cujo relevo, por ser por demais evidente, nos dispensamos de explicar. Diferentemente, a rubrica das folhas de processo é obrigatória, nos termos do nº 1 do art. 161º do NCPC (art. 165º do CPCV).

Mas a numeração, para alcançar o grande relevo que tem, de facilitador inestimável do trabalho, tem que ser inequívoca e lógica: não se devem suscitar dúvidas sobre o número correspondente a cada página e uma vez que um processo é uma sucessão de actos supõe-se que cada nova folha junta respeite a um acto posterior.

No entanto nem sempre a numeração é correcta: nem sempre as folhas estão rubricadas e nem sempre a sucessão de folhas do processo – resultantes dos termos do processo e da junção de expediente ao processo -, corresponde a uma sucessão temporal. Muitas vezes isso sucede por meros erro material, já que sabemos que no trabalho de numeração e rubrica basta uma pequena distracção para ocorrer um erro: saltar uma dezena, repetir um número, etc.

E neste processo estes erros materiais também existem [9]: há números que não são legíveis e/ou compreensíveis, há números rasurados, há numeração repetida, há numeração repetida que, depois, é diferenciada acrescentando alíneas, há folhas não numeradas, há folhas não rubricadas, e por vezes a sucessão das páginas não corresponde à sucessão temporal dos actos praticados.

*

Depois, perguntado sobre o dia 26 o depoente começou por dizer que no dia 25 o marido da arguida comunicou-lhe que a esposa apresentava um dano na mão, disse que o achou estranho, disse que o associou a uma lesão decorrente de empunhadura de uma arma e que não visualizou qualquer incidente que tivesse provocado qualquer lesão.

Perguntado à testemunha se visualizou a lesão da arguida disse que não e que quem fez as diligências de comprovação da referida lesão foram os inspectores Alcides Rainho e Jorge Coutinho.

Perguntado se alguma vez fez sofreu uma lesão na mão decorrente de má empunhadura disse que não.

Perguntado desde quando é que ocupa o gabinete onde à data se encontrava disse que desde o ano 2000. Perguntado se desde essa data alguma vez houve algum disparo de arma no gabinete disse que não.

Perguntado que procedimento tem em relação à arma que lhe está distribuída respondeu que anda sempre com ela e que a mantém no coldre mesmo quando está no gabinete. Perguntado onde limpa a arma disse que a limpa na carreira de tiro, quando participa nas sessões de tiro. Perguntado se a colega limpa a arma no gabinete disse que não e que nunca o fez. Perguntado quando é que ele ou a colega com quem partilha o gabinete estiveram envolvidos em buscas com apreensão de armas de fogo disse não se recordar, que a recolha deste material é feita pelo perito do núcleo de polícia técnica e que os inspectores apenas procedem a essa recolha pontualmente, quando ele não esteja presente. As armas recolhidas, como referiu, são colocados num armário específico.

Perguntado se caso a roupa da arguida não tivesse sido apreendida se as demais diligências feitas permitiriam à investigação chegar às mesmas conclusões disse que a equipa as manteria, tanto mais que a detenção ocorreu antes de os resultados do exame a essas peças ter sido conhecido.

Perguntado se o marido da arguida lhe falou sobre a personalidade da mulher disse que ele lhe disse que a mulher era fria e calculista. Ele também lhe disse que uma vez falaram que se a avó tinha dinheiro devia distribui-lo pelos herdeiros.

Alcides Centeiro Santos Rainho disse ser inspector da P.J., conhecer a arguida desde antes dos factos e que até foi ao seu casamento.

Disse estar nos homicídios desde sempre e que chefia a brigada de homicídios desde 312-2012. Iniciou a participação na investigação como colaborador, no dia 26 de Novembro, mas desde 3-12-2012 passou a intervir como chefe da brigada. Explicou que na altura o inspector chefe saiu em comissão de serviço e o depoente foi nomeado para o lugar. Disse, ainda, que o anterior inspector chefe já regressou mas que manteve a chefia.

Perguntado disse que fez algumas diligências no processo, a primeira das quais foi a ida à Figueira com o inspector Coutinho, a casa dos pais da arguida, mostrar-lhe um computador que tinha sido entregue pelo marido. Disse que também fez a fotografia da roupa recolhida em casa da arguida e também esteve numa diligência de acompanhamento da limpeza feita por trabalhadores da câmara ao terreno adjacente à casa da vítima, na tentativa de se encontrar a arma usada no crime e quaisquer outros objectos que o autor do crime pudesse ter deixado.

Quando os factos ocorreram estava de férias, reentrou ao serviço no dia 26 e foi quanto tomou conhecimento do processo: deram-lhe notícia dos factos e das suspeitas que recaíam sobre a arguida, suspeitas derivadas do quadro encontrado no local, das circunstâncias do crime e do que tinha sido transmitido pelo marido. Quem lhe comunicou estas informações foram o inspector-chefe e o inspector coordenador. Também lhe falaram da lesão da mão da arguida, que o marido tinha referido.

Disse que o marido da arguida tinha feito a entrega de um computador e havia necessidade de perguntar à arguida se ela tinha alguma coisa pessoal no computador e, por isso, o depoente e o inspector Coutinho foram à Figueira no dia 26, à tarde. Foram bem recebidos pela arguida, tal como esperava porque sempre se deu muito bem com ela. Entraram e foram para um local onde havia uma mesa onde colocaram o computador. Disse que a arguida tinha uma camisola grossa vestida, azul ou verde escura, com as mangas muito puxadas para as mãos e que só se via as pontas. A casa estava aquecida, não estava frio dentro de casa, até porque a filha estava lá.

Disse que a certa altura, quando a arguida mexeu no computador, fez um gesto com a mão direita e viu-se um ferimento nesta mão. Neste momento o colega perguntou à arguida que lesão era aquela e ela disse que se tinha queimado no fogão quando estava a fazer o jantar. O depoente disse que Jorge Coutinho lhe disse que parecia uma lesão das que ocorriam muito na carreira de tiro e ela disse que já tinha tido lesões dessas mas que eram diferentes.

Perguntado onde era a lesão a testemunha disse que se situava na chamada zona da

“tabaqueira anatómica”.

Disse que sugeriram à arguida a realização de um exame médico legal, ela disse que sim e foram ao gabinete médico-legal da Figueira da Foz. Esclareceu que as fotografias da mão da arguida, juntas ao processo a fls. 120 e 121, foram tiradas pela perita médica. Sobre as fotografias de fls. 118 disse que não são fotografias da arguida e que com elas apenas se pretendeu demonstrar como se empunhava uma arma.

Perguntado à testemunha o que achou da lesão da arguida disse que, da sua experiência de instrutor de tiro desde 2000 até à data e dos vários cursos de tiro que tem feito, associou a lesão da arguida a disparos em carreira de tiro: a lesão era compatível com má empunhadura aquando de disparos de arma de fogo. Disse que aquele tipo de lesão ocorre muito em carreiras de tiro, sobretudo quando se disparam muitos tiros seguidos, porque os dedos deixam de controlar a arma e ela começa a «dançar na mão». Disse que com as Glock aqueles acidentes não eram frequentes mas também aconteciam.

Perguntado se já tinha visto lesões provocadas por má empunhadura disse que sim e que também já viu algumas lesões provocadas por Glocks.

Em carreira de tiro quando aumentam o número de disparos ou aumentam o stress, por exemplo colocando reféns no cenário, aumentam muito os casos de lesões na mão.

Perguntado disse que o carregador de uma Glock 9×19 leva quinze munições. Sobre o municiamento total de uma arma disse que com as Glocks as instruções que se dão é para municiar o carregador com quinze munições mas que havia pessoas que municiavam com 14 porque tinham dificuldade em meter a última munição.

Sobre as fotografias feitas ao vestuário da arguida disse que no dia a seguir ao recomeço do trabalho uns colegas do Porto vieram a Coimbra para deixar expediente e para levarem fotografias do blusão da arguida para mostrarem a uma testemunha que ia ser inquirida no dia a seguir. Por isso foi feita a fotografia no gabinete do inspector Cardoso. Disse que as peças estavam guardadas num armário do gabinete do inspector Cardoso, dentro de um saco PEB, e que foi o inspector Cardoso que tirou o saco do armário e as coisas dentro do saco: tirou primeiro o blusão, depois as calças e as sapatilhas estavam dentro de um saco de supermercado e colocou as peças no chão, num espaço situado entre a secretária dele e a secretária da inspectora Sandra. Disse que falaram em que espaço é que a fotografia deveria ser tirada e decidiram tirar ali porque acharam bem.

Perguntado o depoente disse que assistiu a todo o processo de retirada do saco do armário, das peças do saco e posterior colocação no saco e colocação do saco no armário.

No recurso foi realçado um longo diálogo havido entre o Ministério Público e o senhor juiz presidente do tribunal demonstrativo daquilo que chamou de «antecipação da posição do tribunal sobre a questão da possibilidade de contaminação do blusão e da valia que atribuía a essa prova, que era nenhuma …», isto quando o julgamento ainda estava na fase inicial.

Ouvido o referido diálogo a este propósito o senhor juiz presidente falou do relevo da prova pericial e da impossibilidade de esta ser posta em causa em resultado de prova testemunhal, isto devido ao facto de a testemunha Alcides Rainho ter dito que escolheram um local que não permitisse perda de elementos ou contaminação de prova e dois peritos terem afirmado que não se podia afastar a possibilidade de contaminação no caso.

O Ministério Público respondeu que se tinham que conjugar as várias provas, que o processo tinha mais provas para além da perícia ao blusão e a isto disse o senhor juiz presidente que a prova estava feita, porque o grau de probabilidade desta prova não se aferia de outra prova, e que a perícia estava comprometida irremediavelmente.

Portanto, nesta altura o senhor juiz entendia que a prova pericial realizada era irrelevante, por um lado, e que também não se podia discutir o circunstancialismo factual que rodeou/circunscreveu/condicionou o percurso da prova, digamos, isto é, se os termos em que a recolha e conservação da prova foram feitas permitiam ou não uma conclusão diferente da que o tribunal parecia já ter.

Ora, cumpre repetir que o apuramento dos factos que rodearam a recolha do material peritado e do seu percurso até à peritagem é, ainda, discussão da causa e que esta cabe ao tribunal.

Perguntada se os projécteis e cápsulas encontrados no local do crime foram examinados a testemunha respondeu que sim. Disse que começaram por pedir a informação ao inspector Vitor Teixeira, informação que depois foi confirmada pelo exame feito no LPC. Depois, quando a inspectora Liliana entregou as munições que restaram, o laboratório concluiu que estas munições eram semelhantes às deflagradas aquando do crime.

Perguntado se a distribuição de armas e munições era controlada disse que cada arma tem um controlo onde se regista tudo o que lhe diz respeito. Quanto às munições, também são registadas: regista-se o número de munições distribuídas a cada pessoa e esta, no final do ano, tem que as devolver ou, se não devolver, tem que informar o que aconteceu às munições em falta e se as usou em situação operacional.

Perguntado se esta informação de uso de munições em situação operacional era obrigatória disse que sim, obrigatória por lei e porque o director geral também o determinou em despacho.

Perguntado que munições usavam em carreira de tiro disse que são diferentes das de serviço. Quando o atirador vai à carreira de tiro leva a sua arma municiada, tira essas munições, põe munições de carreira de tiro e, no final, coloca as munições operacionais de novo na arma. As munições de carreira de tiro interna são diferentes porque não podem ter elementos tóxicos.

Disse que no final da sessão as armas são limpas e que há uma norma interna que determina que a arma deve ser limpa o mais rapidamente possível depois da sessão de tiro. Há uma máquina de limpeza das armas, situada na oficina, que está na base da estrutura da polícia. Perguntado respondeu que há batas próprias para usar aquando da limpeza, porque nesta operação usam óleos que podem estragar a roupa. Perguntado se é normal usarem batas disse que a maior parte dos inspectores de Coimbra usa batas.

Sobre o facto de as munições usadas no crime poderem ser usadas por particulares disse que até à alteração da lei os particulares devidamente autorizados podiam ter daquelas munições. Segundo a nova lei não é possível nem ter aquelas munições nem ter armas Glock.

Perguntado se os colegas costumam andar com a arma disse que as brigadas mais operacionais andam sempre com a arma e que os inspectores das outras brigadas normalmente não andam com a arma.

Perguntado disse que na carreira de tiro o normal é disparar um ou dois tiros e colocar a arma no coldre. Aqui quando se empunha de novo a arma «recupera-se» a empunhadura e, por isso, não é tão normal haver lesões nestas situações. Quando se aumenta o número de disparos «vai-se perdendo a empunhadura», o que facilita a lesão. Esta repetição de impactos vai alterando a empunhadura e esta não se consegue corrigir durante o tiro.

Perguntado se não tivesse sido recolhida qualquer peça de roupa da arguida se a investigação se tinha mantido direccionada contra ela disse que sim, porque os indícios para aí apontavam. Perguntado que indícios eram esses disse que o crime foi cometido por alguém muito próximo da vítima, que não houve roubo nem furto e que a casa não foi mexida. Referido que a arguida não era a única pessoa com acesso à casa, disse que outras pessoas próximas também foram inquiridas mas foram sendo afastadas. Disse que, para além disso, o marido da arguida passou a dar informações, que se conjugaram com os indícios e que levaram a concluir ter sido ela a autora. Também teve relevo o tipo de munição recolhida no local do crime, de elas serem iguais às usadas pela P.J., de a arma usada ser uma Glock e de ter desaparecido uma Glock no Porto.

Como acima dissemos o Ministério Público convocou, também, os depoimentos prestados pelo segurança José Romano e pelo inspector Mota Gonçalves a propósito da preservação da cadeia de custódia da prova.

José Luis Guerra Romano, segurança na Directoria do Centro da P.J., declarou que apenas teve intervenção directa numa diligência feita no processo.

Disse que no dia 24 para 25-11-2012 foi com o inspector Cardoso à Maia. Perguntado em que carro foram disse que foram num Citroen C4 18-DV-62 e que a arguida e o marido também iam: antes de saírem foram junto ao cemitério da Conchada buscar malas, acha que duas, que eles tinham no carro. O depoente disse que ia a conduzir, o inspector Cardoso ia ao seu lado e a arguida e o marido iam atrás.

Quando chegaram à casa da arguida já estava à espera o inspector chefe da P.J. do norte.

Perguntado disse que fez as buscas segundo orientação do inspector Cardoso, que levou uma caixa de luvas e um saco de papel. O depoente fez a busca aos quartos para ver se encontrava alguma pistola ou munições: foi a dois ou três quartos e a arguida foi sempre consigo e até o ajudou a levantar a cama para ele ver se havia alguma coisa dentro da caixa da cama. Perguntado sobre o inspector Cardoso disse que o viu a movimentar-se mas não sabe o que ele fez concretamente.

Depois foram todos para a sala e disse ao inspector Cardoso que não tinha encontrado nada. Depois ele sentou-se e começou a escrever.

No final o inspector Cardoso pediu à arguida a roupa. Ela levantou-se e foi ao quarto, não sabe qual, o inspector Cardoso foi atrás dela, e regressaram com a roupa. Na marquise estavam as sapatilhas e a arguida meteu-as dentro de um saco de plástico, que ficou atado. Depois o inspector Cardoso pediu ao depoente para abrir o saco de papel que ele tinha levado e ele meteu as sapatilhas, depois as calças e depois o casaco e de seguida o inspector Cardoso dobrou o saco.

Perguntado disse que estiveram sempre com luvas e que o inspector Mota Gonçalves não tinha luvas porque ele não fez nada, só viu.

Saíram, foram a um arrumo mas nem entraram e depois foram para o carro e o depoente meteu o saco de papel entre duas caixas de um trólei que estava na mala. Sobre como é que o saco foi fechado disse que em casa o inspector Cardoso deu duas dobras no saco e no carro pôs fita cola na dobra do saco.

Deitaram as luvas no lixo e regressaram, mas passaram pela Figueira porque a arguida e o marido quiseram ir para lá. Perguntado se para baixo trouxeram alguma bagagem da arguida e marido disse que trouxeram, acha que um saco e não mala. Perguntado disse que quem o meteu e tirou da bagageira do carro foi o marido da arguida. Acrescentou que na altura estava a chover e que a arguida saiu e foi logo para o prédio. Perguntado onde é que o saco de papel estava quando chegaram à Figueira disse que estava no mesmo sítio.

Disse que a busca decorreu com toda a normalidade.

Manuel Fernando Mota Gonçalves, inspector-chefe da P.J. da Directoria do Norte, disse que interveio na diligência de busca a casa da arguida realizada de 24 para 25-11-2012.

Disse que no dia 24 estava de chefe de piquete e cerca das 22h30/23h recebeu uma chamada do subdirector da Directoria do Norte, Pedro Machado, para que assistisse a uma busca que se ia realizar em casa de funcionários da P.J.: em tal situação havia necessidade de estar uma chefia. Ele não lhe disse do que se tratava, mas disse que depois seria contactado pela Directoria do Centro. Depois recebeu, de facto, uma chamada do inspector chefe Rui Dias, que lhe deu um panorama geral da diligência.

Disse que só quando eles chegaram é que soube quem eram os colegas, porque eles também iam na viatura.

Os carros ficaram estacionados um junto ao outro. Perguntado se os colegas abriram a bagageira do carro disse que não reparou em pormenores, mas que o inspector Cardoso levava uma pasta. Sobre o que é que a pasta levava respondeu que não sabia mas que no final da busca pedirem à arguida a roupa que ela tinha usado no dia dos factos, que ela a foi buscar e que, depois, essa roupa foi colocada dentro de um saco de papel que estava dobrado dentro dessa pasta.

Perguntado o que fizeram quando entraram disse que inicialmente estiveram todos na sala. Disse que não participou na busca mas assistiu a tudo e que todas as dependências da habitação foram percorridas. Perguntado a testemunha Mota Gonçalves disse que esteve na sala e que também esteve à entrada do quarto do casal, onde o segurança fez a busca. Quem fez a busca mais pormenorizada foi o inspector Cardoso, que esteve praticamente em todas as dependências da habitação.

Perguntado se tinha a certeza daquilo que estava a afirmar disse que sim, que toda a casa foi percorrida e que eles foram acompanhados pelo casal.

Perguntado se durante a busca foi apreendida alguma coisa respondeu que não.

Disse que no final da busca, quando o auto já estava redigido, foi pedido à arguida a roupa usada no dia do homicídio. Ela prontificou-se e foi buscar a roupa, entregou-a e depois a roupa foi acondicionada no saco PEB. Sabe que a arguida foi a dois locais buscar as coisas e que não se recordava se foi sozinha ou acompanhada.

Perguntado se o inspector e o segurança usaram luvas durante a diligência respondeu que sim. Perguntado se ele elaborou o auto com luvas respondeu que sim e que se lembrava que o Cardoso se desfez das luvas já no exterior.

Perguntado se havia algum bengaleiro à entrada disse que sim e que tinha umas peças de roupa.

Perguntado como é que a arguida trazia as coisas que foi buscar disse que as trazia na mão e que depois arranjou um saco de plástico para pôr os ténis. Apenas os ténis foram colocados no caso e apenas os ténis lá cabiam. Puseram as sapatilhas no saco de plástico, o inspector Cardoso foi à pasta que levava buscar o saco PEB, depois colocou o saco de plástico dentro do saco de papel e depois colocou as calças. Quanto ao blusão dobrou-o e depois meteuo no saco, por cima, e depois fechou o saco: dobrou a parte de cima mas não sabe se fez mais alguma coisa para o fechar.

Perguntado disse que quando desceram foram a uma arrecadação da arguida, arrecadação essa que era fechada mas só com rede, e que no final os colegas puseram o saco na bagageira do carro. Perguntado disse que não reparou na bagageira porque estava a falar com o colega Coelho.

Para demonstrar que a possibilidade de contaminação do local onde as fotografias de fls. 377 foram tiradas era ínfima por ter sido limpo pouco tempo antes e porque, se houvesse partículas de resíduos de disparo de arma de fogo, não ser crível que elas apenas tivessem contaminado o blusão, ainda por cima nas mangas e parte anterior, o Ministério Público convocou os esclarecimentos prestados a sua solicitação pelo senhor director da Directoria do Centro da P.J. às seguintes questões:

–  se alguma vez houve deflagrações dentro das instalações da P.J. de Coimbra;

–  se em 2012 ocorreu alguma deflagração dentro das instalações da P.J. de Coimbra;

–  se a carreira de tiro de Coimbra é dentro das instalações;

–  se as armas apreendidas podem ser deslocadas ou depositadas em qualquer gabinete ou se são depositadas nalgum local específico;

–  se o veículo utilizado para realização da diligência de 24 para 25-11-2015 tem a matrícula 18DV-62;

–  considerando o limite temporal de 21-8-2012 e 25-11-2012 a indicação das datas em que a viatura foi utilizada de e para a carreira de tiro da P.J., os mapas indicativos das deslocações feitas pela viatura, identificação de quem ocupava o gabinete onde as fotografias de fls. 229 e 377 foram tiradas e as datas em que o inspector Cardoso esteve em disparos.

resposta, datada de 30-6-2014 e constante de fls. 3569 a 3571, foi a seguinte:

–  desde Junho de 2008 nunca teve conhecimento, directo ou indirecto, de ter ocorrido qualquer deflagração produzida por arma de fogo dentro das instalações, concluindo, por isso, que nunca ocorreu;

–  relativamente a deflagrações no exterior a última situação comunicada foi em Setembro de 2011, em Nelas;

–  a carreira de tiro utilizada pela Directoria do Centro da P.J. situa-se na Figueira da Foz e pertence ao exército português;

–  em regra as armas de fogo apreendidas são recolhidas e transportadas pelos funcionários do Núcleo de Perícia Criminalística, que usam viaturas e instalações específicas, embora possa acontecer serem recolhidas e transportadas por outros funcionários. São sempre acondicionadas em sacos de prova, entram no veículo dentro desses sacos e permanecem nos sacos. Em caso de necessidade de serem examinadas ou fotografadas são retiradas, pontualmente e com os cuidados devidos, dos sacos e lá são de novo colocadas. Havendo que as remeter para o LPC ficam nas instalações pouco tempo e enquanto permanecem ficam guardadas ou no cofre transitório do piquete, em situações urgentes, ou nos cofres ou armários existentes para guardar apreendidos ou no armeiro principal/casa forte, acondicionados nos respectivos sacos e com a indicação do processo a que respeitam. Se regressarem são colocadas no Depósito dos Apreendidos, que no caso destes objectos funciona no armeiro principal, até que o tribunal lhes dê destino e sempre dentro do saco de prova;

–  o veículo usado pelo inspector José Cardoso e Segurança José Romano para realização da diligência de 24 para 25-11-2012 tem a matrícula 18-DV-62;

–  entre 1 e 4 e no dia 8-10-2012 realizou-se instrução de tiro na carreira de tiro e este veículo não foi utilizado no transporte de e para a carreira de tiro;

–  o referido gabinete era e é ocupado pelo inspector José Cardoso e pela inspectora Sandra Roxo;

–  no ano de 2012 não há registo de qualquer disparo feito em serviço pelo inspector José Cardoso: ele esteve presente em sessões de tiro ocorridas entre 9 de Março e 1-6-2012 e não frequentou as sessões de Outubro;

–  sobre as deslocações realizadas no veículo em questão resulta que naquele período foi utilizado para deslocações a Condeixa, Ansião, ..?.., Castelo Branco, Montemor-o-Novo, Penela, Tocha, Viseu, Lisboa e Tondela, Pombal, Castelo Branco, Tocha, Mangualde, Coimbra, Santa Comba Dão, Soure e Idanha-a-Nova, Viseu, Castelo Branco, Idanha, Lisboa, Tondela, Coimbra e Condeixa, Coimbra, Ansião, Viseu, Guia, Figueira da Foz, Pedrogão, Sertã, Porto, Coimbra e Penela.

Diz, ainda, o Ministério Público que caso houvesse alguma réstia de dúvida ela teria ficado desfeita com o parecer técnico de fls. 3667/3669, elaborado pelo LPC em 14-7-2014, ao abrigo do art. 16º, nº 1, al. d), do D.L. nº 42/2009, de 12/2, e subscrito por João Freire Fonseca e

André Saraiva (respectivamente licenciado, mestre e doutorado em física pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e licenciado em física e mestre em engenharia física e mestrando em estatística e investigação operacional na mesma escola).

O Ministério Público também convocou o depoimento da arguida no sentido de demonstrar que ela nunca disparou a sua arma em situação operacional e que a última vez que tinha disparado foi em Novembro de 2012 na carreira de tiro (onde as munições utilizadas não contêm os elementos encontrados no blusão).

Do depoimento que a arguida prestou resulta, efectivamente, que ela nunca esteve envolvida numa situação operacional de disparo de arma de fogo. Para além disso reconheceu, como o Ministério Público referiu, ter usado o blusão examinado no dia 21-11-2012.

*

A  propósito do parecer acima referido o Ministério Público fez o seguinte requerimento na sessão de julgamento de 14-7-2014, fls. 3629:

«Já no decurso da presente audiência … colocou-se como de grande pertinência a questão da transferência primária e secundária de resíduos, designadamente esta segunda, reportada às peças de roupa apreendidas nos autos e pericialmente examinadas.

Todos compreendemos a importância desta questão para apreciação e esclarecimento da matéria de facto e para a boa decisão da causa.

Assim sendo, consideramos de primordial importância para essa apreciação e decisão o parecer que entretanto obtivemos, elaborado por perito forense do LPC, entidade legalmente apta e legitimada para o emitir, conforme dispõe o DL nº 42/2009, de 12/02.

Em tal contexto, ao abrigo do que dispõe o art. 340º nº 1 do C.P.P. requeremos a junção aos autos do mencionado parecer só agora solicitado e obtido até porque, como referido, só no decurso desta audiência tal questão foi efectivamente colocada».

                                   Por decisão de 15-7-2014 a junção requerida foi admitida.

            O Ministério Público dirigira ao LPC um pedido de elaboração de parecer ao abrigo do art. 16º, nº 1, al. d), do D.L. nº 42/2009, de 12/2, com base nas seguintes questões:

1º – se existe potencial de transferência secundária de resíduos de disparo de arma de fogo a partir de elementos policiais, concretamente em instalações policiais;

2º – a existir qual o grau de possibilidade dessa ocorrência e que factores a condicionam;

3º – no caso de um blusão onde foram detectadas cinco partículas características de resíduos de disparo nas mangas e uma partícula consistente na sua parte anterior, que desde a sua retenção, em 25-11-2012, sempre esteve acondicionado num saco PEB e que apenas foi retirado daí para ser fotografado, tendo sido recolocado em seguida, qual o grau de probabilidade de contaminação por transferência de resíduo de disparo, informando que nesta diligência o blusão fora colocado com a parte posterior para baixo, no chão de madeira de um gabinete de trabalho da P.J., Directoria do Centro, onde nunca ocorreram deflagrações produzidas por armas de fogo;

3º – se as armas apreendidas, enquanto permanecem na Directoria do Centro, são guardadas noutro sector das instalações policiais;

4º- se é plausível contaminação do blusão por transferência secundária quando, na mesma ocasião e lugar, também foi colocada junto ao blusão um par de calças de ganga onde não foram detectados resíduos de disparo.

                                    A resposta, constante de fls. 3667/3669, foi a seguinte:

«… Quando ocorre a deflagração de uma munição numa arma de fogo, são produzidos vestígios dessa deflagração comumente designados por resíduos de disparo de armas de fogo (gunshot residues – GSR). Estes resíduos depositam-se isotropicamente sobre o autor do disparo e sobre as zonas limítrofes (até uma distância de 2m) fixando-se mecanicamente pela sua dimensão e termodinamicamente pela sua temperatura, no que se pode designar como transferência primária de GSR.

Após uma transferência primária de GSR, qualquer contacto com uma superfície onde os resíduos se encontrem depositados pode originar uma transferência secundária dos mesmos porém, neste caso, a fixação dos resíduos é apenas mecânica. Assim sendo, a detecção de resíduos de disparo de armas de fogo em amostras recolhidas num sujeito ou no seu vestuário permite concluir que o sujeito disparou ou esteve próximo a um disparo de arma de fogo, enquanto envergava as peças de vestuário em causa, ou que manipulou uma arma de fogo (superfície onde é mais expectável a presença de GSR).

Sendo uma arma de fogo a superfície onde é mais expectável a presença de GSR, fisicamente nada obsta a que estes resíduos se encontrem depositados noutras superfícies, tais como locais onde tenham sido realizado disparos, tenham sido colocadas armas de fogo ou que sejam frequentados por quem efectue regularmente disparos, pelo que, academicamente, é sempre necessário considerar estas hipóteses como plausíveis e, caso estas se verifiquem, realizar os necessários actos periciais ulteriores para descartar ou confirmar as hipóteses adicionais. Na ausência da possibilidade da realização destes actos periciais ulteriores, será então forçoso concluir pela redundância da perícia em causa pois deixa de ser inequívoca a possibilidade da correlação entre os vestígios encontrados e a ocorrência em investigação.

… ainda não estão desenvolvidas as ferramentas matemáticas que permitam calcular a probabilidade de cada uma das transferências. Apenas é possível uma avaliação qualitativa das probabilidades correspondentes a cada cenário com base num conhecimento profundo da realidade dos cenários e, caso assim seja possível, em ulteriores actos periciais.

Refira-se ainda que, por forma a solidificar as conclusões possíveis, em sede de boas práticas, têm sido procuradas soluções para minorar a possibilidade de transferências secundárias sendo procedimento standard que qualquer peça de vestuário seja devidamente preservada e alvo da menor manipulação possível desde o momento da apreensão até ao momento da recolha de vestígios … essas mesmas boas práticas impõem que qualquer manipulação, incluindo a apreensão, tem de ser efectuada com o devido vestuário protector (luvas e fato ou bata descartável).

Ainda no âmbito do reforço da validade das conclusões, verificou-se também uma alteração de paradigma de objectivo deste tipo de perícias. De uma mera determinação da presença de resíduos de disparo de armas de fogo passou-se a ter como objectivo determinar a presença de um número significativo de partículas características de resíduos de disparo de armas de fogo ou seja, determinar a presença de um número de partículas cuja presença não possa ser atribuída a um acontecimento fortuito pela quantidade das mesmas. No caso do LPC-PJ, este número mínimo é de 5 partículas. Excluindo casos extremos, este valor é sensivelmente o dobro do número máximo de partículas encontradas nos estudos populacionais, realizados no âmbito do ENFSI, que avaliam a presença aleatória de resíduos de disparo de armas de fogo.

No caso mais concreto da probabilidade de transferência secundária de resíduos de disparo de armas de fogo pelo contacto de peças de vestuário com superfícies existentes em instalações policiais … fisicamente nada obsta … pelo que, academicamente, essa hipótese tem de ser colocada e concretamente avaliada.

A potencial presença de GSR em instalações polícias está intrinsecamente ligada ao uso de armas de fogo por parte dos elementos dessas polícias bem como ao contacto das superfícies presentes nessas instalações com superfícies onde estejam depositados resíduos de disparo de armas de fogo tais como, passe a aparente redundância, as armas propriamente ditas. Conforme exemplifica o conteúdo do ofício em anexo ao pedido de parecer, elaborado pelo Exmo. Director da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, a realidade do uso de armas de fogo por parte de elementos policiais em Portugal, em particular dos elementos da Polícia Judiciária, é inequivocamente distinto de outras realidades como, por exemplo, a norte-americana. O uso operacional é consideravelmente reduzido e as sessões de treino são apenas trianuais e em local distinto da Directoria. Assim sendo, a hipótese académica de uma transferência secundária em ambiente policial é real mas não invalida per si a perícia, pela sua redundância, implicando obrigatoriamente a realização de ulteriores actos periciais tais como a avaliação de amostras de controlo significativas.

Respondendo especificamente aos quesitos colocados:

Quesitos 1º e 2º: Existe uma probabilidade real de transferência secundária de resíduos de disparo de armas de fogo por parte de elementos ou instalações policiais. Esta probabilidade é tão maior quanto a frequência de utilização (disparo) de armas de fogo por parte dos elementos policiais, a manutenção (limpeza) das armas após os disparos, o depósito de armas de fogo na instalação em particular ou de outros itens alvo de deposições primárias bem como da utilização de barreiras (vestuário) protectoras aquando do contacto com os itens que se pretende sejam alvo de perícia. Sendo real esta probabilidade, a mesma não invalida per si a perícia, pela sua redundância, mas implica obrigatoriamente a realização de ulteriores actos periciais tais como a avaliação de amostras de controlo significativas;

Quesitos 3º e 4º: A manipulação das peças de vestuário em causa (blusão e calças), designadamente a sua documentação fotográfica, não está de acordo com as boas práticas estabelecidas, tomando real a probabilidade de uma transferência secundária. Conforme exposto, para que a perícia em causa não seja redundante são necessários ulteriores actos periciais por forma a poder estabelecer um nexo de casualidade com uma ocorrência específica com um grau de probabilidade claramente distinto da probabilidade de uma transferência secundária. No caso concreto, face aos dados apresentados, embora reduzida a probabilidade da presença de resíduos de disparo na sala da Directoria do Centro da PJ é real e equiprovável em relação a qualquer ponto da superfície em causa e, assim sendo, o facto de terem sido encontrados resíduos de disparo de armas de fogo no blusão e não nas calças torna esta peça de vestuário uma amostra de controlo significativa. Assim sendo, é idóneo concluir que é claramente distinto o grau de probabilidade dos resíduos de disparo de armas de fogo detectados no blusão terem origem num disparo, proximidade a um disparo ou manipulação de uma arma de fogo por parte de quem o envergou do grau de probabilidade de estes resíduos terem origem numa transferência secundária pelo contacto com a superfície onde foi fotografado. Esta conclusão é ainda reforçada pelo facto de, considerando as características das partículas de GSR, ser mais expectável encontrar resíduos de disparo de armas de fogo por transferência secundária num tecido do tipo do que constitui as calças do que no tecido que constitui o blusão».

O D.L. nº 42/2009, de 12/2, definiu, além do mais, as competências das unidades da Polícia Judiciária de acordo com os princípios e orientações que resultam da nova Lei Orgânica da Polícia Judiciária.

Sobre o Laboratório de Polícia Científica pronuncia-se o art. 16º que estabelece, nomeadamente, que ele tem competência para «emitir pareceres e prestar assessoria técnicocientífica no domínio das suas competências em ciências forenses».

Sendo uma das competências do LPC a análise e detecção de resíduos de disparo de arma de fogo (art. 16º, nº 1, al. a)), resulta que o laboratório tem competência para emitir pareceres e prestar assessoria técnico-científica nesta matéria.

É certo que não foi o tribunal a requerer a pronúncia. Mas a partir do momento em que aceitou o documento no processo não podia ignorar a sua natureza, isto é, não podia ignorar que se tratava de um parecer técnico.

            Ou seja este é mais um parecer técnico que o processo contém.

 Para além disso não podemos deixar de considerar que se trata de uma abordagem mais profunda porque vai mais além e pronuncia-se sobre aspectos omitidos pelos demais.

             Então, temos os seguintes dois pontos de vista emitidos por técnicos da matéria:

–  um, que diz que a detecção de vestígios de disparo de arma de fogo encontrados no blusão que a arguida usou no dia 21-11-2012 é totalmente irrelevante porque, tendo as peças estado em locais contaminados, houve a possibilidade real de transferência secundária, para isto contribuindo, ainda, o facto de as peças terem sido embaladas juntas, o que também  possibilita a transferência secundária;

–  outro, constante deste último parecer, nos termos do qual considerando determinados factos resulta pouco provável ter havido transferência secundária em ambiente policial, para o afastamento da qual deveriam ter sido feitas novas perícias para avaliação de amostras de controlo significativo. Porém, o facto de terem sido encontrados resíduos no blusão e não também nas calças torna esta peça de vestuário uma amostra de controlo significativa. Por isso o grau de probabilidade de os resíduos terem resultado de transferência primária é claramente distinto da probabilidade de resultarem de transferência secundária.

Este parecer é muito importante para analisarmos quer a opinião da perita e do consultor técnico, anteriormente vistas, quer a posição do tribunal: ao mesmo tempo que afirmaram que no quadro factual apurado havia a possibilidade real de ter havido transferência secundária, nada disseram sobre o facto de as calças usadas pela arguida no dia 21-11-2012 nada terem revelado. E o recurso à álea/acaso como explicação – que não foi invocada, é verdade -, nunca seria suficiente.

Refira-se que este parecer técnico não foi sequer mencionado aquando da fundamentação da decisão da matéria de facto, o que não implicava, naturalmente, concordância. No entanto um elemento especialmente relevante porque tinha o valor probatório de outros elementos que constavam do processo, era divergente desses outros elementos e deveria ter sido explicado porque é que o tribunal não considerava o seu conteúdo. É esta a função da motivação: explicar a decisão, indicando as provas que acolhemos e as que rejeitamos.

*

 E agora é o momento de regressar ao que diz o acórdão recorrido sobre a impossibilidade de concluir que os vestígios encontrados no blusão da arguida resultaram de contaminação primária, usando a inexistência de vestígios nas calças como adjuvante da explicação.

                                   Esta é uma perspectiva, claro.

 A outra foi verbalizada no parecer acima mencionado que, naturalmente, considerou todas as hipóteses – nem se pode pensar de outra maneira, isto considerando as objecções feitas pela arguida -, que entende que o facto de não terem sido detectados nas calças da arguida «quaisquer vestígios significativos da presença de partículas características/consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo …» torna esta peça naquilo que foi chamado de «amostra de controlo significativa», tanto mais que, considerando a natureza dos tecidos, o que era expectável é que a haver transferência secundária ela tivesse ocorrido com as calças e não com o blusão.

Isto por um lado.

Por outro lado foram dadas amplas explicações/informações sobre a actividade dos elementos da P.J., sobre o exercício de funções quanto a disparos de armas de fogo, sobre a verificação de disparos no interior das instalações, situação geográfica da carreira de tiro utilizada pela Directoria do Centro e limpeza diária das suas instalações.

Tudo isto associado, depois, às explicações dadas pelos intervenientes na busca relativamente à apreensão do vestuário, seu acondicionamento e manipulação, impõe a conclusão que, como refere o Ministério Público, a possibilidade de transferência primária é muito superior à relativa à transferência secundária.

A corroborar esta conclusão diz o Ministério Público que os argumentos avançados pelo tribunal, sobre a ilogicidade de a arguida entregar a roupa usada na eventual perpetração do homicídio por saber que do seu exame resultariam provas de ter sido ela a sua autora, não colhem porque ela, não obstante ser inspectora da P.J. desde final de 2005 e de já ter trabalhado em brigada que investigava a prática de crimes contra as pessoas, tinha uma experiência muito diminuta nesta matéria, pelo que se terá que concluir que os seus conhecimentos de resíduos de disparo de arma de fogo eram irrelevantes.

E para demonstrar estes factos apela às palavras da arguida que disse, efectivamente, que na sua carreira profissional teria participado na investigação de 4 ou 5 homicídios, 2 dos quais com arma de fogo e nos quais fez as recolhas dos resíduos, e que só através das informações constantes deste processo ficou a saber os pormenores técnicos, nomeadamente que os resíduos podiam permanecer até 48 horas.

E se a arguida, inspectora da P.J., não tinha conhecimento deste facto – que nos atrevemos a afirmar que não exige conhecimentos técnicos ou científicos especialmente relevantes -, podemos concluir, sem perigo, que a arguida não conhecia, antes de ter tido acesso aos depoimentos dos peritos e aos relatórios periciais, toda a informação científica transmitida pelas testemunhas, peritos, consultor.

Portanto, contrariamente ao que consta do acórdão recorrido, não foi demonstrado que a arguida «tinha perfeita consciência que qualquer disparo poderia contaminar a roupa utilizada com resíduos dos disparos» porque já havia trabalhado nos Açores em brigadas responsáveis pela investigação de crimes de homicídio, com a dimensão que se pretendeu afirmar de ser, consequentemente, boa conhecedora da matéria sobre deposição/transferência de resíduos de disparo de arma de fogo.

O Ministério Público também refere que o tribunal decidiu contra a prova ao dizer que a arguida utilizou diariamente o referido blusão depois do dia homicídio até à sua apreensão, ocorrida na madrugada do dia 25-11-2012.

Recorrendo apenas às declarações da arguida, cuja análise o Ministério Público também suscita a este propósito, a própria arguida referiu ter usado o blusão nos dias 22 e 23, mas não também no dia 24.

No entanto, este facto não foi dado como provado, não resulta provado e nem sequer está indiciado.

Entretanto, e sobre o valor da perícia e do revelado quando às sapatilhas e às calças, que o Ministério Público entende que não foram usadas pela arguida no dia do crime, o recorrente socorre-se das declarações prestadas pela testemunha Raquel, que no dia 21-11-2012 estava com a filha da arguida quando esta a foi buscar ao infantário, por volta das 19h35/19h40.

Conforme ficou provado, na sequência da diligência feita à sua residência de 24 para 2511-2012 foi solicitada à arguida a roupa que usou no dia 21 e ela entregou o blusão comprido, de cor cinzenta, marca ln Extenso, umas calças de ganga “Mango”, azuis, e umas sapatilhas Nike pretas (factos constantes dos pontos 86 a 88).

Depois, na fundamentação, foi afastada a possibilidade de a arguida ter sapatilhas de cor clara.

Raquel da Costa Vasconcelos Ferreira, educadora de infância, declarou ser directora pedagógica, coordenadora e educadora do “Pimpolho”, onde anda a filha da arguida.

Perguntada se faz o controlo de entrada e saída das crianças disse que faz o controlo de saída, mas não faz registo escrito: a partir das 18h30 fica sozinha com todas as crianças que ainda estejam. Perguntada se sabia dizer a que horas é que uma criança saiu, disse que podia dizê-lo em relação à semana anterior mais do que isso já não.

Perguntada sobre o documento de fls. 1501 – um chamado “mapa de assiduidade/pontualidade de Inês Saltão Almeida” entre os dias 13 e 23-11-2012 -, a depoente disse que elaborou aquele quadro a pedido da advogada da arguida, para se saber a rotina da filha da arguida nessa semana: juntamente com a educadora da menina e com o mapa das faltas e presenças e porque se lembrava do que tinha acontecido, fizeram o mapa.

O horário de funcionamento do infantário é das 8h às 19h30, mas a indicação que dão aos pais é para irem buscar os filhos depois da actividade lectiva, ou seja, depois de a educadora ir embora. No caso da filha da arguida a educadora sai às 17h30, mas a maior parte das crianças fica até às 19h. Perguntada disse que não fazem recomendação aos pais para avisarem quando vão buscar os filhos mais tarde e que a essa recomendação apenas vale quando os vão buscar depois das 19h30.

            No caso da filha da arguida quem normalmente ia levar a menina era a mãe e ia num Volkswagen prateado. Perguntada se a criança era mais próxima da mãe ou do pai disse que achava que era da mãe, porque falava mais dela, e disse que isso era o normal com todas as crianças.

 Perante o documento de fls. 1501 disse que normalmente a filha da arguida chegava às 9h. Sabe isso porque tem reuniões com as educadoras e a educadora da filha da arguida dizia que ela era pontual. Sobre a saída disse que normalmente saía até às 18h. Sobre a referência que consta do dia 19, que o pai aguardou no carro, disse que foi a educadora que viu. Relativamente ao dia 20 disse que esse dia foi um dia especial, porque fizeram a festa do pijama e tiraram a fotografia geral às 15h30 porque a arguida estava à espera da filha. Sobre o dia 21 a depoente disse que entregou a menina à mãe e que sabe que foi depois das 19h30 porque esteve com uma colega até às 19h30, que a dispensou a esta hora e que depois ficou sozinha com a filha da arguida e com outro menino. Perguntada disse que quando a arguida chegou não deu qualquer explicação para o atraso.

Perguntada como é que a arguida estava vestida no dia 21 disse que tinha um fato de treino claro e um kispo escuro. Perguntada disse ter a certeza que aquilo que disse foi o que viu porque achou estranho a menina sair àquela hora, porque ia sempre cedo, até comentou com a sócia o facto e que ela até disse «a mãe da Inês atrasou-se?». Respondeu-lhe que para ela estar de fato de treino com certeza até teria estado a dormir. Por isso fixou que ela estava de fato de treino, porque nunca a tinha visto assim. Esclareceu que ela tinha uma calça de fato de treino e um kispo, escuro e comprido, fechado até acima.

Sobre o facto de ter sido inquirida 2 vezes disse que houve uma primeira inquirição, onde não lhe mostraram fotografias, e que no final desse dia o inspector Machial telefonou-lhe a dizer que tinha mandado um email com fotografias de roupas e para ela ver e confirmar se eram aquelas as roupas que a arguida tinha vestidas. Foi ao email, abriu, viu e disse que as calças e as sapatilhas não coincidiam com o que tinha visto e que o casaco possivelmente seria aquele. No dia seguinte de manhã o inspector Machial e o colega foram lá, imprimiram as fotografias para a depoente ver melhor e tomaram-lhe novas declarações.

Perguntada se reconheceu que as peças que viu nas fotografias eram aquelas que a arguida usava no dia 21 respondeu que as calças e as sapatilhas não coincidiam com o que tinha visto, mas que ficou na dúvida quanto ao casaco: sabia que era um kispo comprido de cor escura.

Depois mostraram à testemunha o blusão em causa, que estava nas instalações do tribunal, e ela respondeu que poderia ser mas não conseguia afirmar. Depois daquela inquirição mostraram-lhe três blusões: aquele, um preto e um claro e entre o preto e o cinzento ficou na dúvida e até disse que não sabia que a arguida tinha dois blusões tão parecidos e quase da mesma cor.

Repetiu que as calças e as sapatilhas não eram as que tinha visto e que o casaco possivelmente seria. Perguntada se tinha a certeza que as calças eram beges disse que tinha a certeza do que dissera quando depôs. Perguntada que calçado é que a arguida usava na altura disse que ela tinha calçadas umas sapatilhas de cor clara. Perguntada se tinha a certeza respondeu que quando depôs tinha a certeza do que disse e sabe que na altura disse que as sapatilhas eram claras.

Perguntada disse que a arguida estava calma e até ficou com a sensação que ela tinha estado a dormir, porque estava com um ar sonolento. Perguntada disse que logo pôs essa hipótese porque sabia que ela estava de baixa, foi buscar a filha muito tarde, estava com uma roupa com que nunca a tinha visto e estava muito calma, quando o normal é que quando os pais vão buscar os filhos tarde vão muito apressados.

Sobre o dia 22 disse que entregou, de novo, a menina à arguida por volta das 19h, de novo fora do padrão. Perguntada se a mãe deu alguma explicação para a hora disse que não. Sobre o comportamento disse que a arguida estava normal e que estava vestida de roupa prática, de kispo, e que concluiu que ela não tinha ido trabalhar porque normalmente não usava aquele tipo de roupa quando ia trabalhar. Neste dia a arguida disse que a filha não iria no dia seguinte. Perguntada se tinha a certeza que a menina tinha entrado até às 9h30 disse que foi a educadora que lhe deu a indicação dessa hora.

No dia 23 não viu a filha da arguida mas a educadora disse-lhe que, afinal, a menina foi e que saiu às 17h30.

Perguntada quando tinha sabido que a avó do marido da arguida tinha falecido disse que só soube no final da primeira inquirição, depois de os inspectores saírem. A depoente perguntoulhes várias vezes o que estava a acontecer, eles não disseram, e quando eles saíram foi à internet, escreveu o nome da arguida e ficou a saber o que estava a acontecer.

Como resulta, a testemunha é inequívoca na afirmação que a arguida calçava umas sapatilhas de cor clara. No entanto, o tribunal recorrido afastou a fiabilidade de tal declaração dizendo que a luz existente no local não permitiria boa visibilidade. Invocou, também, o depoimento do marido da arguida, Carlos Coelho, que tinha dito o contrário.

Deste depoimento resulta também que, apesar de a arguida ter dito que usava aquele blusão recorrentemente, no seu dia a dia, em trabalho e fora do trabalho, esta testemunha disse não ter a certeza de conhecer o referido blusão.

Sobre esta questão também a sua colega Rute Marcelo, que aquando dos factos trabalhava directamente com a arguida e partilhavam gabinete, quando foi perguntada sobre o que é que a arguida vestia, por regra, disse que ela tinha um estilo mais clássico e que quando estava bom tempo normalmente usava blasers e quando estava tempo de chuva usava blusões e que não se recordava de lhe ter visto o kispo cinzento.

Finalmente, há a realçar, em jeito de conclusão, algo que já foi sendo abordado.  A arguida usou o blusão examinado no dia 21-11-2012, não se provou que o tenha voltado a usar e na madrugada do dia 25-11-2012, na sequência de uma busca feita à sua residência, entregou-os aos colegas, tendo-o ido buscar a um quarto da sua habitação, onde ele estava arrumado.

*

*

 Sobre as lesões que a arguida apresentava na mão direita – vestígio cicatricial arredondado com 2 mm de diâmetro, com zona punctiforme centralmente mais escurecida, resultante de traumatismo de natureza perfurante compatível com introdução de cateter de perfusão se soro; vestígio cicatricial oblíquo, para baixo e para dentro, com 2 cm de comprimento, na região dorsal do 1º espaço interdigital da mão direita, que pode ter sido produzido por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal não se podendo excluir inteiramente que fosse resultado de um agente térmico; vestígio de ferimento na metade medial e distal da face dorsal da falange proximal do 2º dedo da mão, disposto transversalmente, de fundo rosado e bordos descamativos, com 4 mm de comprimento por 2 mm de largura e escoriação oblíqua na metade proximal da face dorsal da falange intermédia do 2º dedo da mão, oblíqua para baixo e para dentro, com 6 mm de comprimento, ferimentos estes resultantes de traumatismo de natureza contundente ou actuando como tal -, o Ministério Público alega que apenas a primeiro está explicado, pois aconteceu quando foi submetida a cirurgia no dia 13-11-2012, tendo as outras três resultado da utilização da pistola Glock, modelo 19, calibre 9 mm Parabellum, subtraída à inspectora Liliana Vasconcelos, no dia 21-11-2012 quando desferiu 14 tiros sobre a vítima.

O que o Ministério Público reclama aqui é o estabelecimento de uma causalidade directa entre as referidas lesões da mão direita da arguida e a utilização da arma furtada na perpetração do homicídio, em 21-11-2012.

A propósito da problemática das sessões de tiro da P.J., de como decorriam essas sessões de tiro, do que nelas se passava enfim, o Ministério Público suscitou a análise dos depoimentos prestados pelas testemunhas Vitor Teixeira, Sérgio Taipa e Alcides Rainho.

Vitor Manuel Pinto Teixeira disse ser o responsável pelo serviço de armamento e tiro e por isso responsável pela instrução de tiro, pelas armas e por tudo o que tenha a ver com exames das armas e munições apreendidas na Directoria do Norte da P.J.

Perguntado disse ser, também, docente de vários estabelecimentos de ensino superior, que colabora, esporadicamente, em acção de formação, nomeadamente do I.N.M.L., que trabalha com regularidade em dois institutos superiores, leccionando nos cursos de pósgraduação em Balística Forense e nos cursos de mestrado em Ciências Forenses. A formação que dá é sempre em torno da balística forense, armas, munições, balística terminal. Também costuma fazer exames e perícias e costuma ser chamado a tribunal como perito. Perguntado disse conhecer Agostinho Santos, que este o convida frequentemente para os cursos avançados de balística forense que promove e, para além disso, trocam muitas opiniões científicas em matéria de balística.

Disse que a sua experiência nasceu em 1984, quando iniciou a prática de tiro desportivo. Em 1986 foi para a vida militar, onde esteve 10 anos e onde tirou vários cursos, nomeadamente de instrutor de tiro, e onde foi instrutor de tiro e responsável por uma carreira de tiro militar.

Mais tarde entrou na P.J., rapidamente passou para a parte da instrução de tiro e em 2001 foi nomeado responsável de armamento e tiro.

Sobre as diligências que fez no processo disse que lhe foi solicitado que examinasse as cápsulas e projécteis encontrados no local do crime.

Disse que na Directoria do Norte a carreira de tiro e a distribuição das armas de serviço e munições são da sua responsabilidade: quando um funcionário é ali colocado distribui-lhe a arma que estiver disponível ou, quando isso é possível, a que ele preferir, a que mais se adequar ou aquela com que ele se sentir melhor e munições. Seja qual for o funcionário, directores incluídos, só recebem a arma se lhe demonstrarem que são eficientes com ela. Dá sempre uma instrução teórica e prática sobre a arma que vai entregar e segue-se sempre uma sessão de tiro, mais ou menos longa, consoante a aptidão demonstrada. Se a pessoa não demonstrar aptidão suficiente a formação continua até ter a certeza que a pessoa tem as aptidões mínimas. Quando um funcionário muda de directoria as armas não acompanham a pessoa: quando a pessoa sai entrega todo o equipamento e depois recebe novo equipamento.

Disse que sempre que uma arma é entregue faz-se um registo «redundante», pois o registo é feito em quatro sítios diferentes, um dos quais informático.

Sobre a arma que distribuiu à inspectora Liliana disse que lhe distribuiu o equipamento padrão: uma pistola Glock, dois carregadores, um acessório para municiar a arma, um coldre, um porta-carregador e uma caixa Sellier & Bellot, modelo JHP/jacket hollow point 115 grains, munições que são exclusivas para uso operacional. Toda a gente que recebe armas Glock recebe estas munições. As únicas pessoas que não recebem munições deste tipo são aquelas que têm armas mais antigas, FN Browning, que não funcionam com estas munições.

Sobre o calibre das armas de fogo disse que o calibre padrão das armas de fogo na P.J. é o 9×19 mm, também chamado calibre 9 Luger ou 9 Parabellum. Disse que as pessoas chamam calibre 9 mm mas isso é errado, porque calibres 9 mm há mais de 30 diferentes e incompatíveis entre si. Porém, quando se fala em 9 mm geralmente as pessoas referem-se ao calibre 9×19 mm. Dentro do calibre 9×19 mm há várias marcas e vários tipos de balas.

As munições que entrega são muito específicas. À data do exame disse que estava convencido que elas não seriam exclusivas da P.J., embora soubesse que eram extremamente difíceis de encontrar, por corresponderem a um modelo muito específico da Sellier & Bellot. Esta marca fabrica munições deste calibre em, pelo menos, 12 modelos diferentes, sendo que a bala JHP, com aquela tipologia, há pelo menos 4 modelos diferentes. O que distribuem na P.J., a nível nacional, para uso operacional são as JHP de 115 grains tóxicas, por oposição a não tóxicas, isto quer em 2012, quer actualmente. O lote que têm na P.J. nacional é o 09 e na Directoria do Norte recebeu cerca de 21.000/25.000. Disse que estas munições são adquiridas ou à empresa Sodarca ou à Antero Lopes: a uma a P.J. compra as armas e a outra as munições.

Disse ter a certeza absoluta que em Portugal só uma destas empresas é que vende munições Sellior & Bellot, porque tem um contrato de exclusividade para Portugal com a fábrica.

Perguntado se as munições desta marca só são vendidas à P.J. respondeu que não. Disse que com o novo Regime Jurídico das Armas e Munições o calibre 9×19 passou a ser banal para determinado patamar de licenças – magistrados, polícias -, pelo que este calibre é o mais vendido em Portugal. Para além disso a marca Sellier & Bellot também é a mais vendida por ser a de melhor preço. Isto tudo quanto às munições full metal jacket.

Quanto às JHP tanto quanto sabe só foram importadas para Portugal as que a P.J. usa, isto é, as JHP 115 grains.

Perguntado se estas munições podem existir no mercado negro disse que nunca encontrou JHP 115 grains no mercado negro. Disse que no exercício das suas funções examina milhares de armas e munições por ano e nunca antes encontrou este tipo de munição. Disse que também é coleccionador de munições desde há muitos anos e que nem no mercado negro nem em feiras de coleccionadores alguma vez viu munições JHP 115 grains tóxicas e nem 124 grains. Para além disso há que ter em conta o lote que têm na judiciária, o que torna a munição ainda mais rara.

Perguntado se outras forças policiais têm estas munições respondeu que em Portugal acha que nenhuma outra polícia tem. No estrangeiro sabe que em Espanha não usam, nem em França, mas haverá outros países que usarão: um lote corresponde a centenas de milhares de munições e a P.J. não tem dinheiro para comprar um lote inteiro.

Perguntado se olhando para a munição conseguia dizer se era de 115 grains respondeu que só quem tem conhecimentos muito, muito, avançados conseguirá ver isso e muitas vezes tem que se desmontar a munição. No caso viu as fotografias tiradas no local e não teve dúvidas que se tratava de munições de 115 grains.

Depois, perante o processo disse que as fotografias que viu foram, além de outras, as de fls. 312 e segs., pois recorda-se bem do pormenor do cadeirão. Disse que perante aquelas fotografias conseguia fazer a análise de que munições se tratava, pois soube que os projécteis e os invólucros das fotografias estavam todos no mesmo sítio.

A certa altura, e perante um comentário que ouviu, o depoente disse que parecia que o tribunal tinha pedido informações sobre munições expansivas e que estas representavam uma enormidade de possibilidade. O senhor juiz presidente disse que o que tinham pedido foram informações sobre munições Sellier & Bellot apreendidas em processos e a testemunha respondeu que isso ainda era mais genérico: só expansivas há muitos modelos de munições que não têm, contudo, nada a ver com JHP.

Perguntado disse que as fotografias lhe foram facultadas na Directoria do Norte: foi-lhe passada uma pen e viu-as no monitor do computador. Tem a certeza porque quando as viu tentou contar o número de estrias e que tipo de estrias se tratava. Acrescentou que no caso as estrias eram poligonais.

                                     Disse que o pessoal da investigação lhe pediu para ver se as munições poderiam ser da

P.J. e respondeu que eram. Depois do exame até levou o inspector Cardoso e pensa que mais alguém à casa forte, mostrou-lhes daquelas munições e viu-se que as munições eram iguais às das fotografias.

               Retomando a exposição sobre as munições que estavam distribuídas à inspectora Liliana

– e a todos os funcionários de investigação da Directoria do Norte da P.J., acrescentou -, perguntado se sabia o que depois tinha acontecido com a arma desta inspectora disse que ela lhe comunicou que a arma tinha desaparecido.

A testemunha continuou dizendo que faz o calendário de tiro cíclico, que roda por toda a gente, e que depois é o chefe de cada brigada que decide a distribuição dos inspectores por cada horário atribuído. O chefe da brigada da inspectora Liliana decidiu que ela integraria a sessão que ia ocorrer logo no dia em que ela retomou o serviço depois de férias e foi nesse dia que ela deu por falta da arma.

Disse que em cada sessão de tiro confirma todos os números de série das armas, para garantir que cada pessoa usa a sua arma.

Quando deu pela falta da arma a inspectora foi falar consigo, perguntou-lhe o que devia fazer e o depoente disse que o conselho que lhe deu foi para, antes do mais, procurar com todo o cuidado. Perguntou-lhe se ela não a teria levado para casa e ela afirmou-lhe  sempre que tinha a certeza que não o tinha feito. Na altura ela mostrou-lhe onde guardava a arma.

Sobre o que tinha desaparecido disse que desapareceu a arma e o carregador que estava introduzido na arma. Acrescentou que a arma e os carregadores distribuídos à inspectora Liliana eram novos e, como ela não tinha força para meter a décima quinta munição que o carregador comportava, o carregador só tinha 14 munições. Perguntado se ela lhe tinha dito isso respondeu que disse, que isso era sabido e que há muitas pessoas com o mesmo problema. Na altura, quando foi ver o local da arma, ela também lhe mostrou a caixa das munições, onde só faltavam as referidas 14 munições.

Perguntado que orientações dava aos formandos disse que lhes diz para carregarem os carregadores com todas as munições que eles levam.

Perguntado se dava alguma orientação sobre como é que os formando se deviam apresentar na carreira de tiro no que respeita à arma e carregadores, disse que é obrigatório apresentarem-se com a arma, os dois carregadores e o coldre. Há quem leve as munições de serviço, esvazie os carregadores na carreira de tiro e guarde as munições nos bolsos e há quem os esvazie antes. Também disse que «em vários pontos» da carreira de tiro há «cartazes bem grandes», «que é impossível não ver», dizendo «não fazer tiro com as munições de serviço», isto para evitar a toxicidade das munições normais.

Também disse que antes de começar a dar instrução verifica, sempre, que os carregadores não têm munições de serviço: os carregadores têm que estar vazios e são, depois, municiados com as munições que fornece, diariamente, para as sessões de tiro. Faz sempre isto porque, em tempos, teve uma doença profissional – intoxicação por mercúrio e chumbo -, derivada, precisamente, da utilização das munições de serviço na carreira de tiro.

Perguntado onde é que os formandos que levam a arma municiada colocam as munições de serviço e se as põem em cima da mesa e se elas ficam ali todas juntas, respondeu que «ninguém mistura munições suas com as dos outros». Acrescentou que ou se despejam as munições para o bolso, instantaneamente (percebe-se que esta explicação foi acompanhada de gestos explicativos) ou, quem não guarda as munições no bolso, vai à caixa da reciclagem, onde «estão centenas de caixas de munições vazias», pega numa caixinha, despeja as munições lá para dentro e fecham e guardam a caixa. Perguntado se cada um guarda as suas munições de forma individual respondeu «individual sempre». Disse que também tem cuidado relativamente a isto porque cada pessoa é responsável pelo estado das munições que lhe são distribuídas, cada um tem material próprio distribuído, que não pode ser trocado, e na carreira de tiro procura sempre garantir que isto não acontece.

Perguntado se também dá instrução disse que sim. Há uma escala por cada sessão, que prevê dois instrutores por cada quatro ou, excepcionalmente, cinco atiradores numa linha de tiro. As sessões que programa, para atingirem determinado nível de formação, pressupõem noventa disparos dados a distâncias distintas e em condições distintas. Cada instrutor controla e está permanentemente a ver o seu pessoal. Por vezes estão dois instrutores escalados mas só um está presente. Disse que esta situação, de um instrutor para quatro ou cinco formandos, é «perfeitamente exequível e permite que o instrutor de tiro esteja a controlar o tiro» e, simultaneamente, a carregar no comando dos alvos à distância, porque isso não exige que se esteja a olhar para o alvo.

Esclareceu que controlar o tiro é ver se o tiro está a ser feito bem feito, «se os atiradores estão a sacar bem, se estão a empunhar bem, se estão a ter a postura correcta do corpo para fazer pontaria, se não estão a fazer aquilo que chamamos que dar gatilhadas». Controlar o tiro não é ver o tiro no alvo. Também disse que o tiro é sempre dado com as duas mãos.

E isto começa logo no primeiro tiro da primeira série dos noventa tiros, a quinze metros.

Quando detectam que alguém faz o tiro muito mal dá-se um complemento à pessoa até ela corrigir o erro no final da sessão, depois de todos saírem, o que é fácil para um instrutor experiente, ou então fica anotado na folha que a pessoa precisa de instrução suplementar.

Disse que o esquema de tiro da Directoria do Norte é o seguinte: aos 15 metros e partindo da posição de arma no coldre – nem arma na mão, nem arma à mostra -, no espaço de 5 segundos a pessoa tem que sacar, apontar ao alvo e disparar 2 tiros. Os alvos são automáticos, aparecem e desaparecem automaticamente, e só estão um determinado período de tempo, que dá perfeitamente para a pessoa sacar, empunhar bem, fazer a pontaria correcta, disparar 1 tiro, corrigir e dar outro tiro. O guardar nunca é contabilizado.

Depois passa-se para 10 metros, onde o tempo disponível é de 4 segundos e já ensinam uma variante da técnica da pontaria, que mistura pontaria e tiro instintivo, porque o tempo já é mais reduzido, embora a distância também seja menor. E o esquema é o mesmo: as pessoas partem de uma posição normal e disparam 2 tiros quando o alvo aparece. Depois há uma outra série feita a 5 metros do alvo, que tem 2 divisões. Primeiro gastam o primeiro carregador de 15 tiros, em que em 2 segundos têm que conseguir dar 2 tiros, que é o que chamam tiro instintivo: a pessoa dispara não olhando pelo aparelho de pontaria da arma, mas instintivamente o corpo vira-se para o alvo e dispara para a frente do corpo. Disparam e guardam, disparam e guardam. No segundo carregador o esquema depende da experiência, mas o normal é a pessoa ficar a 1 metro/1 metro e pouco do alvo e quando este aparece a pessoa foge para trás, saca a arma e dispara 2 tiros. No final, e mesmo que a pessoa tenha 3 tiros em vez de 2, dá os tiros que faltam. Isto visa uma cadência de tiro, que é muito rápida.

Perguntado se há sessões de 15 tiros seguidos disse que não e que só os instrutores por vezes fazem: o depoente e o colega Machial Pinto por vezes fazem sessões assim.

Disse que com as sessões de tiro tal como estão organizadas visam adaptar a técnica a 3 situações: na distância maior é preciso fazer bem a pontaria, a pessoa tem que ter uma empunhadura perfeita, fazer bem as miras, puxar o gatilho devagarinho, controlar a respiração; na distância intermédia já se opta por uma solução de compromisso, em que a pontaria já não é tão bem feita, a empunhadura também não, e o que interessa é disparar os 2 tiros no tempo e acertar no alvo, seja em que sítio for; no tiro instintivo o que pretendem é que se dispare de forma muito rápida.

Sobre a importância da empunhadura disse que é extremamente importante, tanto que no tiro instintivo não há tempo para fazer pontaria e o que dirige a arma para o alvo é a empunhadura.

Disse que o erro mais comum é a má empunhadura. Perguntado se quando se aumenta o número de tiros numa mesma empunhadura esta se vai deteriorando respondeu que quantos mais tiros se derem mais a arma se desloca na mão: como são tiros rápidos não se faz pontaria pelas miras e a pessoa não tem noção que a arma está a virar. O depoente disse que quando faz sessões de 15 tiros o truque que usa é pôr lixa autocolante na arma: fere a mão mas a arma não se desloca muito.

Perguntado se nos casos em que arma se mexe se ela toca com outras zonas na mão do atirador respondeu que isso é muito frequente em tiro prático e que isso causa uma lesão típica, que qualquer instrutor conhece bem, que tem o nome de «morder a mão»: a corrediça ao vir atrás a arma desloca-se um bocadinho, roça na mão e faz um ferimento típico, tipo corte. A lesão surge pelo vaivém da corrediça.

Já viu estas lesões muitas vezes e elas estão muito associadas ou a inexperiência do atirador ou ao tiro rápido. Perguntado se o stress ou a mão húmida aumenta a frequência de lesões respondeu que no tiro rápido há sempre stress e que usa a lixa na sua arma para evitar, também, o problema da transpiração na mão.

Perguntado sobre os procedimentos depois do tiro disse que há uma sala onde se limpam as armas e que não sabe exactamente o que fazem aqui porque nesta altura já está a dar treino a outras pessoas. A sala tem óleos e um compressor para limpar as armas e tem batas para as pessoas vestirem para não sujarem a roupa e luvas porque os óleos provocam irritações na pele.

Perguntado se perante as cápsulas recolhidas no local do crime e perante o sinal de percussão impresso na cápsula se se podia considerar como provável que elas tinham sido disparadas por uma Glock respondeu que falando «em linguagem científica e não policial … diria que é extremamente provável». Se falasse em linguagem policial «diria que tinha a certeza». Esclareceu que só não diz ter a certeza científica porque para o dizer tinha que ter um microscópio de comparação balística, que não tem, e isto porque existe uma arma que faz percussões com percutores rectangulares e o microscópio permitiria ver a diferença entre os sinais feitos por esta arma e pelas Glock.

A impressão normal feita na munição é circular porque em regra os percutores das armas são circulares. No entanto o percutor da Glock tem secção rectangular e por isso faz uma impressão rectangular.

No entanto disse mais o seguinte. As armas modernas fazem dois tipos de estrias, as estrias poligonais e as tradicionais, e que as armas Glock fazem estrias poligonais. A arma referida, que faz uma impressão semelhante à da Glock, não faz estrias poligonais. Trata-se de uma arma americana, extremamente rara, que foi um fiasco comercial e não tem conhecimento de alguma vez ela ter aparecido em Portugal

Depois explicou que a sua preocupação quando aumentou a imagem no computador das fotografias tiradas às munições encontradas no local do crime foi para ver o tipo de estrias e viu que as estrias feitas nessas munições era poligonais.

Perguntado se para além da Glock e da tal arma há outras armas no mundo que façam aquela impressão rectangular na cápsula respondeu que não conhece outras armas que provoquem impressão rectangular, a menos que se trate de uma arma surgida no mercado há 1 dia ou 2 e que, por esta razão, ainda não conheça.

Perguntado se o uso da arma e munições em serviço operacional tem que ser relatada superiormente respondeu que sim e que, depois, repõe as munições à pessoa.

Perguntado se, no exercício da sua actividade profissional ou docente, teve conhecimento de contaminação ou transferência secundária em instalações policiais disse que nunca teve conhecimento de um caso destes, que tem conhecimento apenas a nível científico.

Sérgio Paulo Quintela Ribeiro Taipa, inspector da P.J. na Directoria do Norte, colocado na brigada do crime económico, disse conhecer a arguida e trabalhar no mesmo piso dela.

Perguntado se também dava instrução de tiro disse que faz parte do quadro de instrutores da Directoria do Norte e, nessa qualidade, deu formação à arguida pelo menos duas vezes.

Perguntado se alguma vez viu lesões em atiradores em resultado da utilização da arma de fogo respondeu que sim. Sobre estas lesões disse que cada arma tem a sua especificação, que há armas que provocam mais lesões e que, normalmente, estas lesões são devidas ao movimento da corrediça à retaguarda ou à empunhadura.

Sobre a empunhadura disse que se estiver mal feita surgem os ferimentos. Perguntado em que zona da mão é que a corrediça provoca lesões respondeu que é na zona entre o polegar e o indicador, na região tabaqueira.

Perguntado se a empunhadura é mais fácil quando de dispara tiro a tiro ou quando se disparam muitos tiros seguidos respondeu que a empunhadura tem a ver com a forma como a arma vem sacada quando se saca. A partir daí ou se corrige o movimento ou, se não há tempo, faz-se o tiro da forma como vem a empunhadura. Se se fizerem dois tiros, por no coldre, e sacar de novo é mais fácil corrigir a empunhadura.

Mostrada à testemunha a fotografia de fls. 120 respondeu que a lesão que ali se vê pode ser uma lesão dessas.

Perguntado se, no âmbito do processo, foi abordado por alguém disse que foi abordado duas vezes: primeiro pelo marido da arguido, inspector Carlos Coelho, e outra num telefonema de uma pessoa que se identificou como sendo pai da arguida.

O colega Carlos abordou-o no corredor e pediu-lhe para ir visitar a arguida à cadeia. Respondeu que sim, disse-lhe para ele fazer o pedido relativamente a um fim de semana e que faria uma visita a título pessoal. Mas como também havia a eventualidade de ir durante a semana reportou o caso ao chefe e este respondeu que da sua parte não havia qualquer problema que a visita fosse durante a semana. Disse que o Carlos o abordou uma segunda vez, perguntou-lhe de novo se ele ia visitar a mulher e queria que o depoente fosse fora das horas de serviço e sem ser registado, porque conhecia pessoas que o poderiam deixar entrar e porque a arguida não queria fazer o pedido. O depoente respondeu que assim não iria porque ultrapassava os regulamentos e porque já tinha reportado a situação ao chefe. O Carlos respondeu-lhe que assim a visita já não interessava. Perguntado disse que o colega não lhe qualquer explicação nem para o pedido inicial nem para desinteresse posterior.

Na segunda situação recebeu um telefonema no seu telefone particular de um senhor que se identificou como José, que disse ser pai da arguida e que lhe pediu para se encontrarem. O número de telefone era um 22, ele disse-lhe que estava no shopping e para se encontrarem lá e, por isso, deduziu que ele estava a telefonar de uma cabine do centro comercial. O depoente informou-o que estava de piquete e que não podia abandonar as instalações nesse momento e pediu-lhe o número de telefone para o contactar. Depois falou com o seu chefe sobre este caso e este não viu problema nenhum no contacto. Entretanto viu o Carlos e conversou com ele sobre isso. O Carlos disse-lhe que como já tinha falado sobre isso com o chefe já não era preciso falar com o pai da arguida. Também desta vez o Carlos não lhe deu qualquer explicação.

Recordando, sobre esta questão – da lesão que a arguida apresentava na mão -, Alcides Rainho disse que associou a lesão a má empunhadura, que as lesões por má empunhadura ocorrem muito em carreiras de tiro, sobretudo quando se disparam muitos tiros seguidos porque se vai perdendo a empunhadura, o que facilita a lesão. Disse que com as Glock aquelas lesões também aconteciam e que já tinha visto algumas. Quando aumentam o número de disparos ou aumenta o stress aumentam os casos de lesões na mão.

João Manuel Batista Romão, director da Directoria do Norte da P.J. desde Março de 2008, disse conhecer a arguida no âmbito das suas funções. Disse que devido ao elevado número de funcionários o contacto estabelece-se através da hierarquia e que não será assim quando alguém suscite o contacto pessoal. Falou com ela uma vez pessoalmente devido a um processo disciplinar decorrente do comportamento que ela teve para com um magistrado.

A propósito do processo de homicídio disse que nunca falou sobre o processo nem com a arguida nem com o director nacional. Quando a investigação começou disse ao subdirector que queria ficar distante do processo, embora disponibilizando a directoria para dar todo o apoio que fosse julgado necessário. Coimbra pediu esse apoio e foi o seu subdirector que tratou disso, embora com poderes subdelegados pelo depoente.

Sobre a colaboração prestada disse que é «normalíssimo» colaborarem e que foi por isso que o inspector Mota Gonçalves acompanhou uma diligência feita pelos colegas de Coimbra. A instituição é a mesma e por economia de meios faz-se isso. Pedindo colaboração toda a gente a presta sem sequer querer saber porque é que ela é pedida.

Disse que a situação o entristeceu, agastou, porque a directoria era falada por maus motivos.

Sobre a carreira de tiro e se a frequenta disse que tem uma formação igual à que Vitor Teixeira, responsável pelo tiro na Directoria do Norte, dá a todos os funcionários e que ele lhe deu a arma quando achou que estava apto a recebê-la. Disse que o director e subdirector são incluídos nas sessões de tiro e que faz pelo menos duas formações anuais, como todos.

Perguntado como faz quando vai à carreira de tiro disse que leva a sua arma e os seus carregadores. As questões técnicas são da responsabilidade de Vitor Teixeira. Acrescentou que no final é sempre certificado se cada um leva as suas munições e anualmente também é feita conferência do armamento e munições de cada um.

Perguntado onde guarda as suas munições quando as leva disse que ou se põem em cima de uma mesa, bem à vista, junto da qual está o inspector Vitor, ou se guardam no bolso. O depoente disse que guarda as suas munições no bolso.

Perguntado se alguma vez sofreu alguma lesão na carreira de tiro pelo uso da arma respondeu que sim, na primeira ou segunda sessão de tiro instintivo. Na altura foi-lhe explicado que a lesão foi devida à má colocação da mão e que isso acontecia muitas vezes.

Disse que o tiro rápido faz parte dos planos de tiro da directoria.

Quanto ao desaparecimento da arma da inspectora Liliana disse que instaurou um processo de averiguação interno para se inteirar melhor dos factos e também foi ele que depois comunicou o desaparecimento ao Ministério Público.

Disse que teve conhecimento do caso no dia 9-11-2012 através da informação de serviço da inspectora Liliana de 6-11-2012 e que entrou no secretariado no dia 7. Despachou imediatamente solicitando ao inspector chefe informação das diligências que tinham sido feitas, dizendo que classificou a questão na altura como «extravio», e também solicitou ao inspector Vitor Teixeira que informasse se havia alguma pista para a localização da arma, isto porque quando soube do desaparecimento chamou o inspector Vitor Teixeira para falar sobre isso, disse-lhe que aquilo era extremamente grave, ele disse-lhe que nunca tinha desaparecido uma arma de fogo e que podia ter sido esquecimento. Então o depoente respondeu que tinham que apurar os factos e que não ia já presumir o furto antes de verem se a arma estava esquecida.

Depois disso o inspector chefe mandou-lhe uma informação, datada de 20-11-2012, dizendo que não tinham sido recolhidos outros elementos úteis e que a perícia criminalística dos vestígios recolhidos tinha sido negativa. Mandou-lhe cópia do exame, que foi inconclusivo. O inspector Vitor Teixeira também lhe mandou uma informação confirmando que a arma em causa tinha sido requisitada pela inspectora, que fizeram todos os esforços, que não tinha sido detectada nenhuma troca ou falha e que na última conferência não tinha sido detectada qualquer anomalia.

A testemunha disse que perante tudo isto, depois de esgotadas as diligências, decidiu instaurar um inquérito interno que foi, como todos, tramitado na unidade disciplinar que funciona em Lisboa. Simultaneamente, face aos contornos do caso, decidiu fazer a participação ao DIAP do Porto. Perguntado o que é que tinha sido decisivo para o depoente para considerar a hipótese de furto disse que foi decisivo o facto de a inspectora Liliana afirmar que tinha a certeza que a arma lhe tinha sido furtada e também a arma não ter sido encontrada, depois de todas as diligências possíveis terem sido realizadas.

Esclareceu que o caso não foi participado antes porque decidiu, com outras pessoas, que a participação imediata podia ser uma precipitação e por isso aguardou o resultado das diligências.

Perguntado se falou com a inspectora Liliana disse que falou uma vez, que ela estava muito nervosa e preocupada e que disse que tinha a certeza que a arma tinha sido furtada. O depoente disse que depois começaram a levantar hipóteses, nomeadamente sobre as empregadas de limpeza, mas logo as afastaram porque isso era impossível, pois elas eram controladas à entrada e à saída e passavam pelo detector de metais. Depois concluíram que a haver furto tinha que ser alguém de dentro. Disse que viu o local onde a arma era guardada.

Perguntado sobre a convicção que formulou depois da conversa com a inspectora Liliana disse que ficou convencido que ela estava a falar verdade. E perante isto, quando ficou convencido do furto, ainda ficou mais incomodado porque o desaparecimento de uma arma é uma coisa muito grave e sendo furto ainda é mais grave.

Perguntado disse que não tinha descurado o assunto mas que o timing foi o que foi porque ninguém se quis precipitar, até para não por em causa os funcionários da casa, que poderiam ficar desagradados por o inspector decidir pô-los logo sob suspeita sem antes ter tentado encontrar a arma. Acrescentou que a arma nunca apareceu.

Perguntado se no seu tempo alguma outra arma tinha desaparecido na Directoria do Norte, antes ou depois dos factos, disse que não desapareceu mais nenhuma arma e que o inspector Vitor Teixeira lhe disse que antes disso também nunca tinha desaparecido nenhuma arma.

Quando falaram que as responsáveis seriam as empregadas da limpeza disse que isso não podia ser porque elas eram controladas à entra da e saída das instalações e que dadas as condições teria que ser alguém da polícia. Acrescentou que há registo de quem entra e sai e que toda a gente, incluindo funcionários, são controlados à entrada e à saída e que só os inspectores e directores é que não são.

*

*

 Relativamente ao furto da pistola Glock, calibre 9 mm Parebellum, modelo 19, com o número de série PWB136, distribuída à inspectora Liliana Vasconcelos, diz o Ministério Público que considerando que no local do crime foram recolhidas 14 cápsulas deflagradas Sellier & Bellot, lote 09, que foram todas disparadas pela mesma arma, que apresentavam características geralmente observadas em elementos deflagrados por pistolas Glock, que os resíduos detectados no blusão da arguida eram do mesmo tipo das partículas detectadas nestes elementos municiais, que as munições que ficaram na caixa distribuída à inspectora Liliana, após serem deflagradas no LPC, apresentavam partículas características/consistentes com as detectadas no blusão e nas cápsulas recolhidas no local do crime, que a arma do crime foi uma Glock, que o gabinete da arguida e da inspectora Liliana são quase frente um ao outro e que esta guardava a sua arma na gaveta da secretária, apenas a utilizando nas sessões de tiro ou em diligências externas, de tudo resulta que foi a arguida que furtou a referida arma.

Para desmontar a motivação do tribunal recorrido, de que as suspeitas recaíram sobre a arguida apenas por a arma e munições usadas no crime serem compatíveis com as armas e munições usadas pela Directoria do Norte da P.J. e porque desaparecera uma arma de um gabinete próximo do da arguida, diz o Ministério Público que esta passou a ser vista como suspeita a partir do momento em que o seu marido disse ao inspector Cardoso que havia desaparecido uma arma de uma colega e que esta suspeita foi sedimentada com a investigação realizada.

Sobre a investigação desenvolvida a propósito do desaparecimento da arma disse o tribunal recorrido, para além do mais, o seguinte:

«… o tribunal … tem sérias dúvidas, por um lado, que a referida arma tenha sido subtraída (nem que a inspectora tivesse pela última vez colocado na sua gaveta a arma após a referida busca não mais mexendo na mesma), e, por outro, que a existir tal subtracção tenha sido a arguida a autora da mesma …

Quanto a este ponto, desde logo, se diga que o mesmo encerra em si mesmo um vício lógico-dedutivo que condicionou toda a investigação e, nessa medida, os seus resultados. Com efeito, da análise do processo … é nítido que logo no dia 22.11.2012 a investigação considerou a arguida a principal e única suspeita do homicídio baseando-se fundamentalmente no seguinte raciocínio: se a arma e munições utilizadas no homicídio são compatíveis com a arma e munições utilizadas pela PJ da Directoria do Norte e se aí desapareceu a uma inspectora, que trabalhava num gabinete perto da arguida … uma arma e carregador de munições, então a arma e munições utilizadas são as pertencentes à inspectora Liliana – passando o desaparecimento a furto – e foi a arguida que não só subtraiu a arma e munições como matou a vítima. Com efeito, só este raciocínio permite justificar que logo no início da investigação – em 22.11.2012 – a mesma tenha sido classificada de nível 4 (cf. fls. 2), classificação dada apenas quando o suspeito seja membro da Polícia Judiciária ou figura relevante da sociedade … sem que nessa altura houvesse qualquer outro elemento que racionalmente a pudesse justificar.

… não havia naquela data qualquer perícia ou sequer estudo balístico donde fosse inequívoco que a arma e munições utilizadas pertencessem à inspectora Liliana. E não havia naquela data, como não existe presentemente … da análise do inquérito 15497/12.8TDPRT resulta evidente que até 22.11.2012 a

Directoria do Norte da Policia Judiciária considerava que a falta da arma e munições distribuídas à Liliana Vasconcelos haviam sido perdidas por esta … Tendo sempre presente que o furto de uma arma e munições de um inspector da polícia judiciária, ocorrido nas instalações da própria policia judiciária, é algo tão grave que levaria sempre aquela força policial a tomar todas as medidas para encontrar o autor de tal furto e, por outro lado, a auditar os procedimentos de segurança que de algum modo haviam falhado, é evidente que nenhum destes procedimentos foi tomado até 22.11.2012, o que apenas pode levar à conclusão que tal não foi sequer equacionado até àquela data. Leitura diversa da postura da Directoria do

Norte da Polícia Judiciária não é sequer equacionável, uma vez que é incompatível com os mais elevados padrões que sempre regeram esta instituição e que são reconhecidos por todos … Temos assim por inequívoco que até o dia 22.11.2012 tal desaparecimento nunca foi equacionado como furto, sendo certo que tal entendimento era o único credível em face das concretas circunstâncias que rodearam tal desaparecimento.

Com efeito, não é crível que uma inspectora da polícia judiciária deixasse por longos períodos a sua arma e munições num módulo de gavetas sem verificar periodicamente se as mesmas aí se encontravam … Deixar durante pelo menos um mês a arma no módulo sem nunca verificar o seu estado, sendo certo que tal módulo é de uso frequente pela inspectora Liliana, não é compatível com as obrigações funcionais de um inspector e com a responsabilidade inerente à atribuição de uma tal arma de fogo … este comportamento apenas poderia ocorrer se houvesse a firme convicção dos inspectores da polícia judiciária que os referidos módulos não eram passíveis de serem abertos sem a chave, ou, pelo menos, que eram de difícil abertura sem a chave. Com efeito, ninguém deixaria a sua arma de serviço num módulo de gavetas de fácil abertura … A isto acresce … que não existia, nem existe, qualquer elemento que ligue a arguida ao alegado furto da arma e munições. Este salto lógico é apenas, e tão só, dado pela ligação do homicídio ocorrido em 21.11.2012 a tal desaparecimento … Esta antecipação da conclusão no início da investigação condicionou, em nosso entender, a mesma …».

A fls. 181/182 consta o relatório do exame ao invólucro de uma munição recolhida no local do crime, feito em 22-11-2012 e subscrito por Vitor Teixeira, que diz que este apresenta uma marca nítida de formato rectangular, característica típica das pistolas Glock. Na base apresenta as inscrições “9×19 S&B 09”, que correspondem às utilizadas nas munições de marca “Sellior & Bellot”. Este tipo, modelo e lote de munições é um dos que dota a P.J., nomeadamente a Directoria do Norte, e que são distribuídas como munições operacionais a quem tem armas daquele calibre.

O subscritor diz que é ele que procede à distribuição das munições e que a inspectora Liliana recebeu em 20-9-2011 uma caixa com 50 munições daquele tipo, modelo e lote, sendo que as 14 munições que estavam no carregador da arma eram desse mesmo tipo, modelo e lote.

Na perícia de fls. 551 a 566, feita pelos peritos do L.P.C. Mário Goulart e Fernando Dias a 2 pistolas com 4 carregadores, 136 munições, 14 cápsulas deflagradas, 9 projécteis, 7 fragmentos de blindagem e 3 fragmentos de chumbo, o objectivo foi identificar e caracterizar técnica e funcionalmente o material, identificar a arma suspeita e comparar as cápsulas deflagradas do local do crime com as munições remanescentes da inspectora Liliana Vasconcelos.

E concluíram, nomeadamente, que as cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime eram de calibre 9 mm Parabellum e que foram deflagradas pela mesma arma; que não é possível determinar se os 3 projécteis retirados do corpo da vítima e mais 3 projécteis foram disparados por uma mesma arma; que não é possível determinar se estes 3 últimos projecteis foram ou não disparados pelas armas examinadas na altura. Do mesmo modo não foi possível afirmar, a partir dos fragmentos de blindagem examinados, que os respectivos projécteis foram ou não disparados pela mesma arma.

Finalmente, do exame de fls. 698/699 resulta que as munições remanescentes da inspectora Liliana eram idênticas aos projécteis/invólucros recolhidos no local do crime no que respeita ao calibre, lote e marca; que as munições utilizadas na carreira de tiro da Directoria do Norte da P.J. na sessão de 6-11-2012 eram idênticas no tipo de calibre e marca dos invólucros/projécteis recolhidos no local do crime; que as 50 munições distribuídas à arguida eram idênticas aos invólucros/projécteis recolhidos no local do crime em relação ao tipo de calibre, lote e marca.

Como o acórdão recorrido refere, não foi determinado que as munições utilizadas pertencessem à inspectora Liliana, embora resulte que eram iguais.

A fls. 180 do processo consta uma informação de serviço assinada pela inspectora Liliana Vasconcelos, datada de 7-11-2012, dirigida ao director da Directoria do Norte da P.J., cujo assunto era “comunicação de desaparecimento de arma de fogo” e onde se diz o seguinte:

«a signatária vem … comunicar … que no dia de ontem, quando se preparava para participar na sessão de tiro que estava agendada, tomou conhecimento de que a arma de fogo que lhe foi distribuída – tipo pistola, de calibre 9mm, da marca Glock, com o número de série PBW136 – não se encontrava no sítio onde a tinha deixado na última vez que a utilizou, a saber, no interior do seu módulo de gavetas que, como habitualmente, se encontrava fechado. Para além da arma de fogo desapareceu ainda o respectivo carregador municiado com catorze munições … apenas utilizou a arma de fogo em questões operacionais, sendo que nunca a leva para casa no final do serviço pelo que a última vez que a utilizou foi no pretérito dia 8 de Outubro aquando da participação de uma busca não domiciliária. Da presente situação a signatária deu conhecimento, ainda no dia de ontem, verbalmente ao seu superior hierárquico, o inspector chefe Paulo Ferrinho».

Sobre o imputado «vício lógico-dedutivo que condicionou toda a investigação» o Ministério Público realça o facto de ter sido o marido da arguida que comunicou o desaparecimento da arma da colega ao inspector Cardoso.

Disse a testemunha José Cardoso que recebeu a informação a que tipo de munições pertenciam as cápsulas recolhidas, acrescentando que elas eram de uso exclusivo da P.J. e que esta informação foi importante porque deu sustentabilidade à informação recebida, do furto/desaparecimento de uma arma no Porto transmitida pelo marido da arguida logo do dia 21 para 22-11-2012.

Sobre o tratamento dado pelo director da Directoria do Norte da P.J. ao desaparecimento da arma da inspectora Liliana, recordemos que a testemunha Batista Romão disse que decidiu instaurar um processo de averiguação interno para se inteirar melhor dos factos. Quando teve conhecimento do caso ele e Vitor Teixeira decidiram fazer, primeiro, uma investigação e por isso solicitou ao sr. inspector chefe que informasse das diligências feitas e ao inspector Vitor Teixeira que informasse se havia alguma pista: em 20-11-2012 o inspector chefe informou que não tinham sido recolhidos elementos úteis e que a perícia criminalística dos vestígios recolhidos tinha sido negativa e o inspector Vitor Teixeira informou que a arma tinha sido requisitada pela inspectora e que não tinha sido detectada nenhuma troca ou falha.

Depois de ter a certeza que não tinha havido esquecimento ou troca decidiu instaurar um inquérito interno.

Disse a testemunha que a inspectora Liliana lhe disse que tinha a certeza que a arma lhe tinha sido furtada: disse que o pessoal de limpeza é sempre controlado à saída, tal como toda a gente, incluindo funcionários; disse que só os inspectores e directores é que não são controlados; disse que nunca tinha desaparecido outra na Directoria do Norte.

Sobre esta mesma questão o Ministério Público suscitou o conhecimento do depoimento da testemunha Rui Abreu, inspector da P.J., que disse que o pessoal de limpeza é sempre controlado à saída, que isso é uma rotina.

Analisemos, agora, o inquérito nº 15497/12.8TDPRT, relativo ao desaparecimento da arma distribuída a Liliana Vasconcelos, que correu no DIAP do Porto.

As primeiras 10 folhas deste inquérito são constituídas pelo processo desenvolvido na

P.J., que se iniciou com a comunicação feita por Liliana Vasconcelos dirigida ao director da Directoria do Norte da P.J. e datada de 7-11-2012, que tem num carimbo ilegível onde consta a data de 9-11-2012, 6ª feira.

Em 14-11-2012 o destinatário proferiu despacho no sentido de o inspector chefe informar o resultado das diligências efectuadas para apuramento do eventual «extravio» (é assim que figura) da arma e para o inspector Vitor Teixeira informar se existia alguma pista para a localização da arma, uma vez que estava a correr período de treino de tiro para os funcionários.

O pedido seguiu nesse dia e no dia 16 foi proferido despacho no sentido de, sem prejuízo das informações em falta, ser instaurado inquérito.

No dia 20, 3ª feira, foi aberta conclusão ao director da Directoria do Norte da P.J. com a informação que Paulo Ferreirinha tinha informado telefonicamente que até ao momento não tinha sido «possível recolherem-se outros elementos úteis do eventual “extravio” e que dos vestígios recolhidos pelo Serviço de Perícia Criminalística (SPC) o exame resultou negativo …».

No mesmo dia o director proferiu o seguinte despacho: «aguarde até amanhã pela junção das informações em falta com vista à remessa do processo, com carácter urgente, à UDI e sem prejuízo da eventual instauração de processo-crime, uma vez que poderemos estar face ao furto de arma de fogo».

Ou seja, no dia 20, face às informações já disponíveis, já foi colocada a hipótese de o desaparecimento poder ser, afinal, furto.

Depois disto consta o exame feito ao módulo de gavetas onde a arma estava, destinado à recolha de vestígios com interesse forense e cujo relatório, datado de 15-11-2012, diz que foi negativo. Nesse exame também consta que o módulo de gavetas da inspectora Liliana foi examinado e em resultado disso «verificou-se que, com o módulo fechado à chave, aplicando uma pressão com as mãos, nos bordos laterais externos da gaveta, esta “destrava” o mecanismo de tranca e abre».

O Ministério Público reclama que este exame reveste a natureza de prova pericial, pelo que ao não o valorar o tribunal violou o disposto no art. 163º do C.P.P.

Conforme já dissemos, a prova pericial é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, sendo este juízo técnico, científico ou artístico que constitui o juízo pericial, subtraído à livre apreciação do julgador. O mesmo já não acontece quanto às questões que, mesmo que abordadas na perícia, não os exijam. Não obstante aquela referência – ao módulo de gavetas e ao facto de, mesmo estando fechado à chave, abrir aplicando pressão com as mãos nos bordos laterais -, constar de uma perícia entendemos que ela não consubstancia prova pericial, independentemente do seu relevo para efeitos de demonstração do alegado.

No entanto é uma prova que está no processo e devia ter sido discutida.

Recorde-se que sobre o facto de não ser crível que as gavetas fossem passíveis de abrir sem chave, o tribunal referiu que não era razoável que pessoas conscientes guardassem armas num local inseguro, que testemunhas relataram duas situações em que gavetas foram abertas sem chave mas por métodos muito difíceis e barulhentos. E continuou o tribunal dizendo: «se mesmo para os serviços de manutenção a única forma de abrir aqueles módulos exigia um tal esforço físico, não é crível que os demais inspectores da polícia judiciária a exercer funções na Directoria do Norte da Policia Judiciária, incluindo a arguida, soubessem de qualquer outro meio – designadamente o referido na diligência de fls. 5 a 7 do inquérito 15497/12.8TDPRT – para abrir tais módulos».

Isto é contraditório porque no processo está demonstrado que era possível abrir as gavetas de forma diferente daquela que os serviços de manutenção usaram.

Conclui que «não só é mais provável que tal arma e munições tivessem sido perdidas pela inspectora Liliana, como a serem furtadas dificilmente os inspectores da polícia judiciária tinham condições para saberem sequer como se abria tais módulos sem a respectiva chave».

Retomando a análise do inquérito segue-se a informação de Vitor Teixeira, enviada em 22-11-2012, 5ª feira, da qual consta o seguinte: «… foram feitas as diligências possíveis para encontrar a arma em causa, sendo que todas elas se revelaram infrutíferas … ao longo do mais de 11 anos em que o signatário está neste SAT já aconteceu que diversos colegas “perderam” sendo que em dois casos inclusivamente foram alvo de procedimento disciplinar, mas, salvo num caso em que uma arma foi encontrada caída sob o banco de um carro, num local de difícil visibilidade, em todos os outros casos as armas acabaram por ser encontradas por quem as perdeu, sendo que invariavelmente isso aconteceu porque se confundiram ou esqueceram do local onde as tinham guardado.

Ou seja, desde que o signatário está no SAT que nunca aconteceu ter sido perdida qualquer arma.

Neste caso concreto penso ser de acrescentar os seguintes dados:

  • • A arma em causa foi requisitada pela Sr.ª lnspectora Liliana Vasconcelos em 20/09/2011
  • • A última vez que esta efectuou treino de tiro foi no dia 08/05/2012, tendo sido confirmado pessoalmente pelo signatário (como sempre se faz quando os funcionários dão tiro) que a arma que então utilizou era a que efectivamente lhe está distribuída, ou seja, a pistola Glock, modelo 19, nº: PBW136;
  • • A Sr.ª lnspectora Liliana tinha agendado a sessão de tiro deste segundo semestre para o dia 6 do corrente, sendo que não compareceu exactamente porque terá sido essa a ocasião em que se apercebeu de que não tinha a arma.
  • • O treino de tiro deste semestre iniciou-se a 29/10/2012, sendo que, desde essa data até hoje, deram tiro 146 funcionários, tendo todos eles apresentado as armas no início das respectivas sessões de tiro e estas sido foram conferidas com as respectivas fichas de requisição, não tendo sido detectada qualquer troca ou falha.
  • • Ao nível de cartuchos correspondentes às munições deflagradas nesta CT, é completamente impossível saber quais os que correspondem àquela arma extraviada …

Saliente-se que em Janeiro do corrente ano foi feita um conferência completa de todas as armas e nada de anormal se notou …».

Nesse dia o director da Directoria do Norte da P.J., Batista Romão, proferiu o seguinte despacho, que integra a folha 10 do inquérito:

«Uma vez que a referida arma de fogo não apareceu até ao momento e subsistem suspeitas de que o seu “extravio” possa ter intervenção de terceiro e ter sido objeto de furto no interior do gabinete de trabalho atribuído à Inspetora, remeta cópia do expediente também ao DIAP do Porto, por ofício confidencial dirigido ao respetivo Diretor, tendo em vista a instauração de inquérito criminal …

Remeta cópias de fls. 1 a 9, por mail, ao Sr. Inspetor Chefe António Dias da Área de Segurança, com caráter confidencial e conforme o sugerido na informação de fls. 7 atento o “extravio” da arma, indicando que por tal ocorrência foi mandado instaurar também inquérito para averiguação de responsabilidade disciplinar pela UDI.

Dê conhecimento por mail, com caráter confidencial, do presente expediente ao Sr. DNA …

Após, remeta à UDI para instrução do inquérito e apuramento da ocorrência e eventuais responsabilidades disciplinares».

Sobre a actuação da inspectora Liliana o tribunal recorrido considerou, como vimos, que «Deixar durante pelo menos um mês a arma no módulo sem nunca verificar o seu estado, sendo certo que tal módulo é de uso frequente pela inspectora Liliana, não é compatível com as obrigações funcionais de um inspector e com a responsabilidade inerente à atribuição de uma tal arma de fogo …».

Por isso o Ministério Público também suscitou o conhecimento do depoimento prestado por esta e pelos inspectores Pedro David e Rute Marcelo.

Liliana Andreia Vasconcelos Leite Vaz, colocada na Directoria do Norte, secção regional de investigação da criminalidade económico-financeira, disse que à data dos factos não estava na mesma secção da arguida, que os respectivos gabinetes eram muito próximos, quase em frente, e que na altura partilhava o gabinete com o colega Pedro David. A sua secretária era a primeira entrando no gabinete e junto dela havia, como em todas, um módulo de gavetas autónomo da secretária, gavetas essas que têm uma fechadura que as fecha a todas ao mesmo tempo.

                              Perguntada disse que em 2012 as gavetas funcionavam bem e fechavam bem.

Perguntada disse que quando estava na directoria e saía do gabinete para ir, por exemplo, à casa-de-banho não fechava as gavetas nas fechava-as sempre quando saía do edifício. Fechava-as e levava sempre as chaves consigo porque todas as suas chaves, nomeadamente as de casa e as do módulo de gavetas, estavam no mesmo molho. Perguntada disse que fechava sempre as gavetas porque tinha lá a arma.

Acrescentou que depois, durante a investigação ao desaparecimento, foi verificado que fazendo pressão na última gaveta o mecanismo destrancava e a segunda e terceira gavetas abriam.

Sobre a rotina seguida quando chegava ao local de trabalho disse que coloca a carteira dentro de um outro armário que têm no gabinete, onde têm os processos, e que quando precisava de abrir as gavetas ia buscar as chaves à carteira e, depois, deixava-as fora.

Perguntada se não devia levar sempre a arma consigo respondeu que não. Disse que lhe foi instaurado um processo disciplinar na sequência do desaparecimento da arma, que foi arquivado porque se entendeu que não tinha cometido qualquer infracção. No processo também foi vista a questão de ter estado um tempo significativo sem verificar a arma e também foi entendido que isso não constituía violação dos deveres funcionais. Explicou que estava numa área não operacional, que o seu trabalho é de gabinete, que é raro ir para o exterior e, por isso, deixava sempre a arma e que muitos colegas fazem como ela. Disse que o seu colega de gabinete tem sempre a arma consigo porque, como esteve na criminalidade violenta, habituou-se a andar sempre com ela.

A sua arma era uma Glock, modelo 19, de 9 mm, e quando lhe foi distribuída também lhe foram distribuídos dois carregadores, um coldre e uma caixa de 50 munições. Tudo isto estava na terceira gaveta do módulo. Perguntada se alguma vez utilizou essa arma em situação operacional respondeu que não.

Deu conta do desaparecimento da arma a 6 de Novembro e a sua preocupação foi saber quando a tinha usado pela última vez, porque na informação que tinha que fazer ao chefe tinha que colocar isto. Como aponta tudo numa agenda foi à agenda ver quando é que tinha usado a arma pela última vez e verificou que a última diligência externa que tinha tido foi uma busca domiciliária em 8 de Outubro, em que a levou. Lembra-se de ter participado nessa diligência e que quando chegou ao gabinete colocou a arma dentro do estojo, no local habitual. Em 6 de Novembro ia ter uma sessão de treino de tiro e quando foi buscar a arma ela não estava. Perguntada disse que neste dia abriu as gavetas com a chave.

Perguntada se entre 8 de Outubro e 6 de Novembro viu a arma respondeu que de vez em quando abria a gaveta e via o estojo e como o via presumia que a arma estava dentro, mas não verificava.

Disse que nesse período de tempo não esteve de piquete, não teve nenhuma diligência, esteve de férias na última semana de Outubro e também no feriado de Novembro.

Perguntada se deixou as gavetas fechadas respondeu que tinha a certeza que sim.

Perguntada o que é que faltava respondeu que faltava a arma e um carregador com 14 munições. Disse ter a certeza que tinha 14 munições e não 15, as que leva o carregador, porque o carregador era novo e não conseguia meter a décima quinta: há um aparelho para ajudar mas também não conseguia trabalhar com ele. Actualmente tem as 15 munições no carregador porque, como já não é novo, já as consegue meter todas.

Quando foi de férias não verificou se a arma estava. Quanto ao regresso de férias disse achar que apenas regressou no dia 6 porque para além das férias também houve o feriado, teve folgas e foi testemunha de um julgamento. Sempre que ia de férias deixava a arma na gaveta. Depois disto passou a depositá-la na carreira de tiro.

Perguntada se quando saía das instalações e no final do dia se fechava a porta do gabinete à chave respondeu que nem ela nem o colega o faziam.

António Pedro Nogueira David, inspector da P.J. na Directoria do Norte, colocado na secção regional de investigação de criminalidade económico-financeira, disse que partilhava e partilha o gabinete com Liliana Vasconcelos.

Na altura o seu gabinete era o último do lado direito do corredor, o da arguida era o penúltimo do lado esquerdo e as portas dos gabinetes davam para um corredor comum. O acesso era por elevador e por escada. Indo por elevador saía numa área comum, entrava-se no corredor, percorria-se todo o corredor e o seu gabinete era o último do corredor. Perguntado se a arguida estando sentada à secretária com a porta do gabinete aberta e se estivesse a olhar para fora se o veria passar respondeu que achava que sim.

Perguntado sobre o desaparecimento da arma da colega Liliana disse que era uma Glock igual à sua e que as munições eram iguais às suas, hallow point, munições que são distribuídas a todos os inspectores. Perguntado se sabia o lote das suas munições respondeu não saber.

Entretanto as munições que esta testemunha tinha na arma foram vistas verificou-se que eram JHP e que 10 eram do lote 09 e as 5 restantes eram do lote 08. A realização da diligência

consta da acta da respectiva sessão do julgamento (dia 25-6-2014, fls. 3491).

Perguntado se sabia o lote das munições da colega Liliana disse não saber.

Perguntado à testemunha porque tinha levado a arma para o tribunal e se os colegas da mesma secção também andavam com as respectivas armas respondeu que esteve muitos anos em Lisboa na Direcção Central de Combate ao Banditismo e que desde aí anda sempre com a arma. O seu caso é uma excepção porque os outros colegas do crime económico da sua brigada deixam a arma na polícia, no módulo de gavetas, como a Liliana fazia, porque é um sítio que tem uma chave e permite fechar.

Perguntado quando é que esses colegas usam a arma respondeu que a usam quando fazem diligências. Como as diligências do crime económico são agendadas sabe-se com antecedência quando vão ocorrer. Nestes casos os colegas levam a arma e no final deixam-na outra vez no mesmo local.

Perguntado se a colega Liliana fechava a gaveta respondeu que sim. Perguntado se costumava fechar a porta do gabinete à chave à noite, quando ia para casa, respondeu que não.

Disse que soube do desaparecimento da arma porque a Liliana lhe telefonou, estava ele num julgamento em Matosinhos. Ela disse que deu por falta da arma quando a foi buscar para ir para a carreira de tiro, estava muito preocupada e não conseguia encontrar uma explicação para o desaparecimento.

Perguntado se quando iam para a carreira de tiro levavam as armas municiadas ou desmuniciadas o depoente respondeu que tirava as munições e as deixava ficar na gaveta. Sobre a prática dos colegas disse não saber.

Continuou dizendo que nesse dia ainda foi à directoria da P.J. mas já não encontrou a Liliana. Perguntado disse que quando chegou ao gabinete a porta estava aberta, como ficava sempre: a maior parte das vezes a porta ficava entreaberta mas mesmo quando estava fechada ficava sempre destrancada.

Falou com a Liliana no diz seguinte, a situação mantinha-se e ela comunicou a ocorrência. Perguntado se os colegas ajudaram a procurar a arma respondeu não saber, mas que ele chegou a ir ver os carros de serviço para verificar se a arma estava lá.

Perguntado se na altura o depoente e a colega estavam muito no gabinete respondeu que na altura partilhava com a colega Liliana dois inquéritos complexos, que ainda se mantêm, em que havia muitas escutas telefónicas e que, por isso, passavam grande parte do dia na sala das intercepções, situada 2 pisos acima do piso dos gabinetes, embora por vezes fossem ao gabinete.

Sobre os módulos de gavetas disse que quando estava no roubo, mas já na Directoria do Norte, um dia teve necessidade de abrir o módulo de gavetas e verificou que não tinha a chave. Foi pedir ajuda à pessoa que faz esse tipo de trabalho e ele abriu o módulo com relativa facilidade: o módulo tem uma chave em cima onde se tranca e o restante funciona como um sistema de batente, que tem um espigão que entra numa determinada zona, que sendo friccionada acaba por sair. O indivíduo virou o módulo, começou a dar pancadas e a última gaveta acabou por se soltar, mas o processo fez bastante barulho.

Perguntado sobre qual tinha sido a percepção do que tinha acontecido à arma da colega quando ela o informou disse que a sua ideia se baseou na confiança que tinha na colega e que, por isso, ficou convencido que a arma lhe tinha sido tirada.

Rute Marlene Teixeira Marcelo, inspectora da P.J. colocada na Directoria do Norte da P.J., disse que trabalhou com a arguida cerca de 9 meses na mesma brigada e que neste período partilharam o gabinete, o 4C, que era perto do gabinete da colega Liliana.

Perguntada se do gabinete viam o gabinete da colega Liliana respondeu que não. Perguntada se viam o corredor disse que da sua secretária não mas que a arguida via, porque estava de frente para a porta.

Perguntada se passavam muito tempo no gabinete ou tinham muitas diligências externas disse que tinham muitas diligências externas. Perguntada se levava a arma nas diligências externas respondeu que na área da criminalidade económica muitas pessoas não levam arma, mas que quando saem duas pessoas pelo menos uma leva: a regra é essa.

Disse que teve uma diligência externa com a arguida em 8-11-2012 no Tabuaço. Perguntada quem levou a arma de função disse que achava que tinha sido a depoente. Perguntada onde se desenrolou a diligência respondeu foi na GNR. Perguntada que roupa é que a arguida levava respondeu que não. Perguntada se a arguida costumava usar blusões ou que tipo de agasalho usava nas saídas respondeu que se estivesse um dia bonito usava blaseres, se estivesse tempo chuvoso costumava usar blusões.

Perguntada se costumava ver a arguida com blusões tipo kispo respondeu que não se lembra de ter visto a arguida com um blusão cinzento.

Perguntada se alguma vez a depoente ou a arguida usaram a arma nas diligências ou se foram disparados tiros na sua presença disse que não.

Perguntada onde guardava a sua arma quando estava nas instalações da P.J. respondeu que a guardava no módulo de gavetas. Perguntada se levava a sua arma no final do dia respondeu que à data apenas levava a arma à sexta e trazia-a na segunda: disse que todos os dias via a arma, apesar de não o fazer por ter medo de lha tirarem, pois isso nunca lhe passou pela cabeça; abria a gaveta, olhava para a arma e voltava a fechar a gaveta à chave.

Perguntada se os colegas levavam as armas respondeu que quase todos os inspectores deixam a arma nas instalações, com excepção dos que andam com a arma todos os dias.

Perguntada se soube do desaparecimento da arma da colega Liliana disse que sim e que o soube pela arguida, de uma forma normal: havia “sururu” no corredor e a arguida disse-lhe o que tinha acontecido. Disse que depois do homicídio calhou em conversa com a colega Liliana falarem sobre o desaparecimento da sua arma e ela disse-lhe que tinha a certeza absoluta que lha tinham tirado da gaveta. Ela disse que chegou a ir a casa procurar a arma e que não a tinha levado para lado nenhum.

Perguntada se sabia que o sistema do fecho das gavetas era seguro disse não saber. Depois relatou um episódio que lhe aconteceu em Lisboa, durante o estágio, em que não sabia da chave, pediu à manutenção para abrir: o senhor pôs o módulo de pernas para o ar e abriu-o e nisso fez muito barulho.

Sobre o depoimento da inspectora Liliana, a respeito das razões de ter detectado o desaparecimento da arma cerca de 1 mês depois de a ter usado pela última vez, de ter tido férias, folgas, de ter retomado o serviço, segundo supunha, no dia em que detectou o desaparecimento, da sua prática e de muitos colegas de deixarem as armas nos gabinetes e do que disseram Pedro David e Rute Marcelo sobre esta última questão o tribunal recorrido nada disse.

*

 A respeito das munições o Ministério Público alega que o tribunal recorrido deu como provado que «- À inspectora Liliana foi distribuída uma caixa de 50 munições, sendo que pelo menos 36 eram do lote 09; – O lote 09, da marca Sellior & Bellot, é um dos que é utilizado pela PJ, nomeadamente na

Directoria do Norte, em munições de uso operacional», mas o que deveria ter feito constar é que as 50 munições que lhe foram distribuídas – as 36 que ficaram na gaveta mais as 14 que estavam no carregador da arma e que também desapareceu -, eram todas as mesma marca e lote (calibre 9 mm

Parabellum, 9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana, lote 09).

Defende, ainda, que também devia ter sido dado como provado que todas essas munições eram do tipo JHP (hollow point expansivo), com 115 grains de massa, tudo para se concluir que as 36 munições remanescentes eram iguais às recolhidas no local do crime.

                                   Neste sentido invoca, de novo, a perícia realizada pelo L.P.C., de fls. 551 e segs.

 Recorre ao mesmo exame quando defende que devia ter sido dado como provado que todas as 50 munições distribuídas à inspectora Liliana eram do tipo JHP, com 115 grains de massa.

                                    Da perícia de fls. 551 e segs, feita pelo L.P.C., resulta o seguinte:

–   de entre o material examinado constavam 3 projécteis retirados do corpo da vítima, «de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), do tipo “hollow-point” (expansivo), com os pesos aproximados de 7,49 g, 7,52 g e 7,51 g, respetivamente, não indiciando perda de massa, encontrando-se indeformados, apresentando seis (6) estrias impressas, do tipo poligonal, de sentido dextrogiro, não sendo tecnicamente possível determinar seguramente a marca ou origem das munições de onde serão provenientes»;

–   2 fragmentos de chumbo retirados do corpo da vítima, «indiciando serem provenientes de projéteis de arma de fogo, de provável calibre métrico 9 mm (calibre nominal não seguramente referenciável) … não apresentando quaisquer vestígios impressos»;

–   3 fragmentos de blindagem retirados do corpo da vítima, «provenientes de projéteis de arma de fogo, de provável calibre métrico 9 mm (calibre nominal não seguramente referenciável) … não apresentando vestígios de estriado claramente visíveis»;

–   foi feito exame microscópico às 14 cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime que

«permitiu observar que as mesmas são relativamente ricas no tocante a vestígios significativos e individualizadores impressos, nomeadamente na marca de percussão e no arrasto do canal do percutor

… Comparadas entre si, foi possível observar a existência de manifestas concordâncias de vestígios impressos com carácter individualizador … concluindo-se que as cápsulas suspeitas foram deflagradas por uma mesma arma»;

–   quanto às cápsulas enviadas nelas «foram observadas … características de classe, habitualmente observadas em elementos deflagrados por pistolas de marca GLOCK, admitindo-se, assim, que os elementos suspeitos tenham sido deflagrados numa pistola desta marca»;

–   comparados «os 3 projécteis retirados do corpo da vítima e os projéteis referenciados como Vest. 3,

Vest. 15 e Vest. 20 … foi possível observar a existência de concordâncias de vestígios impressos com carácter individualizador na sua superfície de estriado, concluindo-se que estes projéteis suspeitos foram provavelmente disparados por uma mesma arma» [10];

–   as «14 cápsulas deflagradas suspeitas … são do mesmo calibre (9 mm Parabellum), da mesma marca (SELLIER & BELLOT) e do mesmo lote (09 – produzidas em 2009) que as munições … distribuídas à

Inspetora Liliana … os projéteis suspeitos, recolhidos no local e retirados da vítima … são mesmo tipo que os projéteis constituintes das referidas munições (“hollow-point” – expansivo)».

Com o mesmo objectivo o Ministério Público suscitou o conhecimento dos esclarecimentos prestados por Mário Pereira Goulart, perito de balística do LPC.

Perguntado se quando analisou a munições verificou a massa dos projécteis respondeu que isso é o peso da bala e que quando recebem as pesam sempre. Disse que este elemento consta do relatório efectuado, só que a referência está em gramas e não em grains, que é outra unidade de peso, e que 115 grains corresponde a 7,5 gramas.

Sobre as JHP – jacketed hollowpoint , e consultando o catálogo actual da marca respondeu que constavam de 115 grains e de 124. Perguntado se conseguia distinguir uma munição de 115 e de 124 sem as pesar disse que, conforme resultava do catálogo, elas eram diferentes. Acrescentou que dos projécteis que recebeu todos os que estavam intactos correspondiam aos 115 grains. Examinou 9 projécteis intactos do local do crime e todos eles tinham um peso aproximado de 7,5 gramas.

Perguntado se já tinha analisado munições iguais àquelas resultantes de apreensões respondeu que não.

Sobre o mesmo assunto a testemunha Vitor Teixeira já dissera que as munições que distribui para uso operacional a quem tem armas Glock são Sellier & Bellot, modelo JHP 115 grains: o que distribuem na P.J., a nível nacional, para uso operacional são as JHP de 115 grains tóxicas, por oposição a não tóxicas, isto quer em 2012 quer hoje. A marca Sellier & Bellot é a munição mais vendida por ser a de melhor preço, mas isto não inclui as JHP 115 grains tóxicas, que nunca antes examinou no exercício das suas funções nem nunca encontrou no mercado negro ou em mercados de coleccionadores.

O Ministério Público também convocou as informações prestadas pela firma Antero Lopes, Ldª, a fls. 3380, 3381 e 3392.

Delas resulta que esta firma é a importadora autorizada pela fábrica Sellier & Bellot para fornecer entidades militares e policiais e que entre Janeiro de 2008 e Dezembro de 2012 apenas forneceu munições da marca Sellier & Bellot, de calibre 9 mm Parabellum, com projéctil JHP, à P.J. Disse não ter conhecimento de haver outra empresa ou particular que naquele período procedesse à importação de munições Sellier & Bellot, de calibre 9 mm JHP, mas que até 27-42011 a aquisição de munições JHP por particulares detentores de uso e porte de arma da classe B não era interdito, bastando a uma destas pessoas ou armeiro habilitado solicitar à P.S.P. autorização prévia para importação ou transferência destas munições e comprar as mesmas em revendedor estrangeiro.

                                   Sobre esta questão foi a seguinte a fundamentação do acórdão recorrido:

«… a arma utilizada no homicídio foi uma Glock e as munições foram da marca Sellier & Bellot, de origem checa, calibre 9 mm Parabellum (9x 19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), do lote 09, idênticas às distribuídas aos inspectores da polícia judiciária da Directoria do Norte …

… estamos perante uma mera compatibilidade da qual não resulta estar-se perante a arma e munições atribuídas à inspectora Liliana Vasconcelos …

Por outro lado, esta compatibilidade de arma e munições não é suficiente para daí se retirar a conclusão que a arma e munições utilizadas no homicídio em análise pertenciam à inspectora Liliana …

Aliás, a informação policial constante de fls. 2748 datada de 12.12.2010 menciona especificamente o furto de um carregador de pistola Glock calibre 9 mm com cerca de 10 munições pertencente à polícia judiciária, sendo que a fls. 2749 se mencionam 20 munições de calibre 9mm que estariam num estojo da arma Glock, também furtado.

Por fim, conforme resulta da informação dada pela testemunha Vitor Teixeira … a fls. 206/207, o lote “09” da marca “Sellier & Bellot” «corresponde a largas centenas de milhares de munições produzidas pela fábrica durante o ano de 2009 (…) não existindo sequer qualquer garantia de que a sua disseminação se tenha cingido ao mercado nacional o que seria extraordinário, pois é perfeitamente normal que tenham sido vendidas e comercializadas noutros países» … tais munições não têm um carácter tão exclusivo como parece …

Aliás, essa “disseminação” é patente nas informações dos inquéritos que constam em apenso aos presentes autos, onde se constata que não obstante as centenas de munições da referida marca examinados nunca houve sequer a preocupação de distinguir os lotes ou entre as FMJ e JHP…».

A fls. 2748 consta uma informação da P.S.P., de 12-12-2010, que diz que um cidadão apresentou queixa por lhe ter sido furtada de dentro do veículo, além do mais, um carregador de pistola Glock calibre 9 mm, com 10 munições, pertencente à P.J.

A fls. 2789 consta outra informação da P.S.P., de 20-12-2010, que refere um furto em residência, de onde foi tirado, além do mais, um estojo de arma Glock e um carregador com cerca de 20 munições calibre 9 mm.

A fls. 206 e 207 consta o relatório de exame efectuado por Vitor Teixeira, acima referido, que diz, nomeadamente – e como depois referiu aquando do depoimento -, que cada lote de munições corresponde a centenas de milhares de munições, não havendo a garantia que a sua disseminação se tenha ficado por Portugal. Depois, no depoimento, esclareceu esta questão.

Também se diz no relatório que essas munições também não eram de uso exclusivo da P.J. Esta questão também ficou esclarecida mais tarde.

De todo o exposto resulta que descrever as munições usadas para perpetrar o crime dizendo, apenas, que eram munições da marca Sellier & Bellot, calibre 9 mm Parabellum (9x 19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), lote 09, não corresponde ao que resulta da prova, pois é inequívoco que aquelas munições eram, também se assim se pode dizer, JHP 115 grains tóxicas.

E estas características, de se tratar de munições JHP 115 grains tóxicas, é que tornam essas munições excepcionais.

Considerando o depoimento de Vitor Teixeira, que merece deste tribunal toda a credibilidade, pelo profundo conhecimento da matéria que revelou ter e pelo depoimento impoluto e cristalino que prestou, temos por demonstrado que em Portugal nunca foram detectadas munições deste concreto tipo – Sellier & Bellot, calibre 9 mm Parabellum, JHP, 115 grains tóxicas -, nem no mercado negro, nem em mercados de coleccionadores e que também nunca foram recolhidas munições destas no âmbito de operações realizada pela P.J.

Mário Goulart, perito de balística do LPC, disse que nunca antes analisou munições iguais às usadas no crime aqui em análise.

De tudo concluímos que em Portugal o tipo de munições encontradas no local do crime era usado apenas pela P.J.

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                                       Na linha do entendimento perfilhado no Código de Processo Penal comentado [11], que

defende que a lei obriga «que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados … mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, isto é, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas …», o dever geral de fundamentação não inclui apenas a análise crítica da prova que serviu para formar a convicção, mas também da outra prova, na medida em que o afastamento desta outra prova também suporta o relevo dado à prova considerada. 

E sobre toda esta prova pouco ou nada foi dito, nomeadamente para afastar o eventual relevo que se pudesse pensar atribui-lhe na decisão desta concreta questão e para se ficar a saber o essencial: porque é que a outra prova foi relevada.

                                   Aliás a mesma omissão ocorreu em vários outros casos.

Evidentemente que se o juiz assenta a sua decisão no depoimento prestado por A e no documento x e se do depoimento do B e do documento y resulta o oposto, terão que se indicar não só as razões que levaram a atribuir credibilidade àqueles provas mas, também, as razões que levaram a afastar estas. É a chamada fundamentação negativa. Se, muitas vezes, estas razões resultam implícitas da fundamentação positiva muitas outras vezes isso não acontece e quando não acontece esta questão tem que ser abordada de forma expressa.

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 Mudando o objecto de análise questiona, depois, o Ministério Público a decisão do tribunal de ter como não credível a motivação avançada na acusação para o cometimento do crime por parte da arguida, quando diz que a vítima «tinha avultados recursos económicos» e que a arguida, devido às «dificuldades económicas que ela e o cônjuge iam sentindo para fazer face a todas as despesas do seu dia-a-dia, não se conformava com a circunstância da avó de seu marido não os ajudar mais em termos financeiros, ainda por cima obrigando-os a pagar mensalmente prestações por conta do dinheiro que lhes havia emprestado. Foi assim que decidiu matá-la, quer para evitar terem de continuar a pagar-lhe o dinheiro emprestado, quer na expectativa que com a sua morte parte do dinheiro que aquela possuía viesse a chegar ao casal, por intermédio do marido. Acreditava a arguida que, matando a Filomena, o dinheiro que esta possuía seria partilhado entre os seus dois únicos filhos … e que a sua sogra, uma vez recebida a sua parte na herança … começaria a ajudá-los economicamente, tanto que o seu marido Carlos Coelho era filho único» (fls. 2775).

             Esta matéria foi dada como não provada na base da seguinte fundamentação:

«… o motivo invocado é por si só tão fútil que só se compreenderia que o mesmo pudesse fundamentar uma actuação tão violenta da arguida se a mesma padecesse de um grave distúrbio psicológico/psiquiátrico … como referiu o médico psiquiatra Dr. Horácio Firmino, a violência do crime em questão apenas pode ser resultante de um conflito antigo e grave entre o homicida e a vítima ou de aquele sofrer de uma sociopatia … não tendo qualquer das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento referido qualquer situação de conflito entre a arguida e a vítima …

Afastada esta hipótese, menos crível será a possibilidade de estarmos perante uma sociopata, uma vez que sendo a arguida inspectora da polícia judiciária tal rastreio foi necessariamente feito aquando da sua admissão à Polícia Judiciária.

Por outro lado, o apoio dado pela arguida a uma colega da PJ que sofreu de uma doença oncológica … e que deu origem ao estado depressivo do qual estava a ser tratada – é demonstrativo de estarmos perante uma pessoa que se liga emocionalmente aos outros, facto que é incompatível com um tal quadro clínico enquadrado no denominado Transtorno de Personalidade Antissocial.

Aqui chegados, e analisando o motivo imputado na acusação temos de concluir, desde logo, e ainda que o mesmo se tivesse como provado, dificilmente poderia por si só apresentar-se como uma motivação válida para a prática do crime nos moldes em que o mesmo ocorreu … quanto à situação económica do agregado familiar da arguida resulta claro dos elementos bancários que o mesmo mensalmente pagava todos os seus débitos …

Esta conclusão não é contrariada pelo facto de o agregado familiar da arguida ter recebido por duas vezes dinheiro da vítima.

Com efeito, nesta matéria atendeu-se ao depoimento do marido da vítima que sobre esta matéria depôs de forma coerente e credível, tendo ainda o seu depoimento sido corroborado pelo testemunho do pai da arguida ouvido em audiência de julgamento.

Ouvido o marido da arguida por este foi dito que efectivamente a vítima emprestou-lhe numa vez 1.000,00 Euros e numa segunda vez 500,00 Euros …

Em face deste depoimento ficou o tribunal de júri convencido que o depósito de 1.000,00 Euros datado de 17.8.2012 não resultou de qualquer novo empréstimo feito pela vítima.

… tais quantias foram entregues como empréstimo estando, à data dos factos, a arguida e marido a pagar os mesmos de forma mensal … sempre se poderia argumentar que a possibilidade de ter uma vida mais desafogada poderia constituir motivo suficiente para levar a arguida a matar a vítima. Todavia, esta conclusão teria necessariamente como pressuposto o conhecimento por parte da arguida da situação financeira da vítima.

Da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova constante dos autos, não ficou minimamente provado que a arguida tivesse conhecimento da situação patrimonial da vítima. Com efeito, ouvidos os dois filhos da vítima, estes foram peremptórios ao referir que a mãe era uma pessoa muito reservada nas questões financeiras, não tendo sequer a filha (mãe do marido da arguida) conhecimento do montante depositado na conta que lhe dizia respeito e muito menos na conta adstrita ao seu irmão. Este desconhecimento foi também referido pelo marido da arguida. Ora, se nem estes tinham tal conhecimento não poderia a arguida ter um tal conhecimento …

A isto acresce que a mesma não só não seria directamente beneficiária de tais poupanças, como as mesmas teriam que reverter directamente para a mãe do marido …

Por fim, é de atentar no facto de a vítima à data dos factos ter a idade de 80 anos o que levaria a arguida, mesmo querendo apropriar-se das suas economias … a colocar a possibilidade desta a curto/médio prazo vir a falecer, não sendo necessário assassiná-la …».

Sobre a fundamentação começa o Ministério Público por dizer que se é certo que não se provou a existência de conflito entre a vítima e a arguida, também não se provou a existência de qualquer proximidade, antes resultando o afastamento entre a arguida e a família do marido.

                                   E invoca prova para fazer a demonstração desta realidade.

 Entendemos que a análise desta prova é irrelevante porque para além de não determinar qualquer alteração da decisão da matéria de facto resulta haver concordância com o tribunal porque este diz que não se provou a existência de conflito(s) entre a arguida e a vítima e que havia um afastamento entre aquela e a família do marido.

Para além de concordarmos com o decidido pelo tribunal recorrido acrescentamos que nem o afastamento da arguida da vítima é um elemento demonstrativo da autoria do crime por parte daquela, nem a proximidade afasta, por si só, a autoria.

Sobre a argumentação relativa à idade da vítima e de ser expectável que ela, por essa razão, faleceria a curto/médio prazo, diremos que o desespero/raiva/ansiedade que determinam muitos comportamentos humanos são incompatíveis com o aguardar que a natureza siga o seu percurso, por muito rápido que o desfecho pareça poder ocorrer, para além de que é uma evidência que há imensas pessoas que falecem muito para além dos 80 anos de idade.

Mas, realça o recurso, da inexistência de um conflito não deriva a inexistência de um sentimento de raiva e de grande animosidade que a arguida pudesse ter pela vítima e o desejo da morte desta, tudo para melhorar o seu nível de vida que, alega o Ministério Público, era o que acontecia com a arguida.

A afirmação de a inexistência de um conflito não significar a inexistência de um sentimento de raiva e de grande animosidade parece-nos uma evidência, face àquilo que todos conhecemos da vida.

Avança o Ministério Público que resultou que a vítima tinha, à data da morte, as quantias de 111.211,64 € e 67.310,18 € em contas bancárias, a primeira co-titulada pela filha e a segunda co-titulada pelo filho, contas estas que, apesar de geridas exclusivamente por si, se destinavam a cada um dos filhos.

Neste sentido invoca o depoimento prestado pelo filho da vítima, irmão da mãe do marido da arguida, Carlos Almeida, e pela esposa deste, Albertina Almeida.

*

 Carlos Alberto Gonçalves de Almeida é assistente no processo, prestou declarações e, aquando do depoimento «foi advertido nos termos do art. 145º, nº 2 do C.P.P. …» (fls. 3389).

Nos termos dos nº 1 e 2 do art. 145º do C.P.P. é possível a tomada de declarações ao assistente e quando isso suceda ele fica sujeito ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação. Acrescenta o nº 3 que «a prestação de declarações pelo assistente … fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente».

Ou seja, a disciplina das declarações do assistente é a mesma da da prova testemunhal, excepto no que for manifestamente inaplicável. Nomeadamente estão sujeitos ao dever de verdade, sob pena de responsabilidade penal em caso de falsidade, nos termos do art. 359º do Código Penal, isto apesar de não prestar juramento, como consta do nº 4 do art. 145º.

A partir do momento em que prestam declarações estas constituem um meio de prova, a par de todos os outros admitidos por lei, não existindo nenhuma capitis diminutio que impenda sobre o assistente em termos de o seu depoimento ter que ser desvalorizado no confronto com outros depoimentos. Aliás, o mesmo sucede com as declarações da parte civil (cujo regime é em tudo igual), do arguido, do ofendido: a apreciação de toda a prova por declarações está sujeita às mesmas regras da livre apreciação da prova, do art. 127º do C.P.P. Ou seja, dependendo da credibilidade que elas mereçam, devidamente explicada na fundamentação, assim serão valorizadas ou não.

*

 Vejamos, então, o que disse Carlos Alberto Gonçalves de Almeida, filho da vítima e tio do marido da arguida.

Perguntado disse que soube dos factos cerca das 21h do dia 21-11-2012, quando a sua filha mais velha lhe telefonou a dizer que se tinha passado alguma coisa com a avó. Telefonou à irmã, esta disse-lhe que tinha acontecido alguma coisa à mãe, mas não percebeu bem o quê. Veio para Coimbra com a mulher e foi cá que soube o que tinha acontecido. Quando chegou a polícia já estava e não o deixou entrar em casa da mãe.

Perguntado se sabia de problemas que a mãe tivesse com alguém, nomeadamente com familiares, respondeu que não. Perguntado quem, da família, contactava mais com a mãe respondeu que os filhos, o genro, a Maria do Carmo, irmã da mãe, o marido desta, a Maria do Céu, irmã da mãe, e por vezes o Armelim, também irmão. Perguntado se a mãe se dava com os netos respondeu que tinha uma relação forte com os netos. Sobre a relação da arguida com a vítima disse que esta lhe falava, com mágoa, que sentia que a família do neto a rejeitava.

Perguntado se a mãe era reservada ou não respondeu que ela tinha o núcleo familiar em que se apoiava e que apoiava e tinha, depois, mais 2 ou 3 senhoras amigas e vizinhas com quem tomava café, com quem fazia caminhadas: era uma pessoa reservada e que se tornou desconfiada perante o que foi ouvindo nas notícias sobre assaltos a idosos e roubos por esticão. Perguntado se ela abriria a porta a qualquer pessoa respondeu que isso estava «totalmente» fora da questão: quando estava com a mãe assistiu, muitas vezes, que quando tocavam a mãe falava sempre pelo intercomunicador e muitas vezes não abria a porta.

Sobre as rotinas da mãe com a família disse que a irmã ia almoçar 2 ou 3 vezes por semana com a mãe e a mãe retribuía as visitas ao domingo ao almoço. Perguntado disse que as visitas da irmã eram em dias mais ou menos certos, até porque ela dava umas aulas de artesanato próximo e dava-lhe jeito ir nos dias das aulas. Quanto ao depoente, disse que visitava a mãe normalmente ao fim do dia e jantava com ela.

Sobre a situação económica da mãe disse que sabia da sua vida financeira porque ela lho dizia. Sabia que a mãe tinha duas contas, uma consigo e outra com a irmã, ela dava-lhe conta da evolução de cada uma das contas e que estes factos eram do conhecimento da família restrita, isto é, dos filhos e netos: «não havia detalhe ao cêntimo» mas que as pessoas sabiam dos montantes globais. Isso não era assunto de conversa mas também não era tabu e por vezes falavam disso. Concluiu «eu sabia, a minha mulher sabia, as minhas filhas sabiam».

Esclareceu que à data dos factos o saldo da conta que mantinha com a mãe era inferior ao saldo da conta da irmã porque a mãe lhe tinha dado dinheiro da conta que mantinha com ele quando ele precisou de ajuda para fazer um negócio. Perguntado se a mãe dava dinheiro quando percebia que precisavam respondeu que no aniversário e Natal dava sempre uma lembrança aos netos mas nunca se disponibilizaria a emprestar ou dar dinheiro sem que a pessoa interessada lho pedisse e sem que justificasse o pedido: ajudava mas a pessoa tinha que pedir e dizer para que precisava do dinheiro.

Disse que, por exemplo, quando a mãe lhe deu dinheiro a si para um negócio e quando deu dinheiro à irmã para ela remodelar a cozinha ambos pediram dinheiro à mãe e ambos tiveram que explicar para que é que queriam o dinheiro. Quando a mãe dava dinheiro era sempre a título de empréstimo. E explicou: quando pediu dinheiro à mãe não lho devolveu mas esse dinheiro ficou a faltar na sua conta e antes disso a sua conta e a da irmã estavam equilibradas.

Perguntado se a mãe faria isto com os netos respondeu que ajudaria os netos se houvesse uma coisa significativa, mas para coisas fúteis acha que ela não daria.

Perguntado se a mãe teve algum problema com algum irmão disse que há cerca de 40 anos teve problemas com o irmão Armelim. Perguntado se a mãe mantinha relações próximas com algum dos irmãos disse que a grande ligação da mãe era com a irmã Maria do Carmo. Quanto ao Armelim depois de se terem esclarecidos os conflitos passou a haver uma relação normal de família.

Perguntado se sabia que a mãe tinha emprestado dinheiro ao sobrinho, marido da arguida, disse que não sabia: a mãe tinha uma personalidade muito forte, estava em perfeitas condições, sabia gerir a sua vida e o que fazia eram assuntos dela.

Perguntado se depois do nascimento da filha do sobrinho houve alguma aproximação deste com a família disse que não e que sabia disso porque a mãe lho dizia. Sabe que a mãe chegou a ir a casa do neto de comboio mas deixou de ir porque não se sentia querida lá em casa. Ela também lhe dizia que o neto não telefonava e que era ela que o fazia sempre.

Perguntado se, na noite do crime, tentou indagar junto do sobrinho o que se estava a passar respondeu que pelas 23h30/24h ou ele ou a sua esposa tentaram falar-lhe mas ele tinha o telefone desligado. Foram tentando e a certa altura a sua esposa ou a filha conseguiram e segundo o que elas lhe disseram ele ainda não sabia. O sobrinho chegou a Coimbra cerca de 1h depois e também estava perplexo.

Perguntado quando voltou a ver a arguida respondeu que a viu no velório, no dia anterior ao funeral.

Perguntado se o sobrinho e a arguida sabiam das rotinas da vítima disse não saber.

 Perguntado se o sobrinho alguma vez tinha falado consigo sobre o caso e o possível autor do crime respondeu que ele falou consigo sobre isso duas vezes: a primeira em casa da sua irmã durante a tarde da missa do 7º dia e depois em Vendas Novas, em sua casa. No dia da missa do 7º dia antes de irem para a missa passou com a mulher em casa da sua irmã e estava lá a irmã, o cunhado e o sobrinho. Em Vendas Novas, talvez 3 semanas/1 mês depois, estavam o depoente e a mulher, as filhas, o genro, a irmã, o marido da irmã e o sobrinho. Esta reunião foi antes do Natal porque nesse dia até os convidou para irem a sua casa no Natal.

Das 2 vezes o sobrinho disse que «estava convencido a 99,9%» que a arguida tinha sido a autora do crime e só não era a 100% «porque não queria acreditar que tinha sido ela». «São palavras textuais do meu sobrinho», rematou.

Perguntado se o sobrinho estava perturbado quando falou disse que da segunda vez não estava. Perguntado se o sobrinho disse porque é que dizia aquilo respondeu que o tema de conversa era sempre a morte da mãe e que ele falou em muitas coisas quando disse aquilo. Perguntado quem ouviu respondeu que no dia da missa do 7º dia o sobrinho falou para si, para a mulher e para os pais. Depois, em sua casa, estavam sete pessoas e todas ouviram.

Depois disto nunca mais falou com o sobrinho. Perguntado se sabia se ele tinha mudado de opinião respondeu não saber.

Perguntado disse que no dia da missa do 7º dia estavam a falar do crime e durante a conversa ele disse aquilo, que a autora tinha sido a arguida. Perguntado se ele fez algumas considerações respondeu que ele disse que a relação do casal não era muito boa e que o problema eram os gastos dela e os saldos negativos dos cartões.

Em sua casa o sobrinho disse mais ou menos o mesmo e foi afirmativo quando falou.

Perguntado como reagiram os presentes disse que ninguém fez qualquer comentário sobre o que ele disse e aceitaram porque vinha de quem vinha e porque ele também era inspector da judiciária: para todos os presentes, sendo aquilo dito por quem foi, já não se tratava de uma tese mas era uma certeza.

Perguntado se o que o sobrinho tinha dito tinha sido decisivo para si disse que sim, embora depois também tivesse começado a pensar em certas coisas. Sobre que coisas é que pensou disse que, por exemplo, no dia do crime o sobrinho, quando soube quem eram os inspectores encarregados da investigação, lhe tinha dito para todos estarem tranquilos porque aquela era uma das melhores brigadas e que deviam ter confiança. Aí não se acalmaram mas houve uma serenidade de todos.

Em sua casa o sobrinho perguntou-lhe se lhe emprestaria dinheiro, caso viesse a precisar, e se lhe emprestaria um carro, porque o carro que tinham era da arguida. Perguntado se emprestou disse que não porque o sobrinho nunca mais lhe falou disso e que não sabe porquê.

Perguntado se antes da morte da mãe tinha bom relacionamento com o sobrinho e com a arguida disse que tinha bom relacionamento com o sobrinho, apesar de distante porque há muito que vivia em Vendas Novas, e com a arguida não tinha qualquer relacionamento.

Perguntado disse que a família tinha a tradição de se reunir num almoço por ano, no dia 25 de Abril, e que no dia de aniversário da mãe esta convidava a família mais chegada para almoçar e pagava o almoço: a mãe convidava os filhos, genro e nora, os netos e a irmã Maria do Carmo e o marido. Da última vez, em 2012, a mãe disse-lhe que o sobrinho lhe disse que não ia ao almoço de aniversário porque não tinha dinheiro para a viagem à Mealhada. Isto foi em Setembro porque, apesar de registada em Outubro, a mãe nasceu em Setembro e a festa era sempre em Setembro. Perguntado se houve outras vezes que o sobrinho não tivesse ido ao almoço disse que isso acontecia com regularidade. Sobre as razões de não vir disse não saber.

Quanto à reunião anual de 25 de Abril perguntado se a arguida e o marido iam respondeu que, tanto quanto se lembrava, tinham ido uma vez. Perguntado se eles eram convidados respondeu que sim.

Perguntado disse que visitava a mãe pelo menos 1 vez por mês e que a mãe passava temporadas de meses em a casa.

Sobre se a mãe tinha sinais exteriores de riqueza, se se gabava do dinheiro que tinha, respondeu que a mãe apenas falava das economias perante o núcleo duro da família. Sobre os hábitos disse que ela era extremamente poupada, que teve uma vida muito difícil, tornou-se assim e por isso conseguiu juntar tanto.

Perguntado se quando ele e a irmã eram novos se a mãe lhes dava dinheiro para férias respondeu que não.

Sobre a reforma da mãe disse que era de 300 e qualquer coisa euros, que recebia por vale dos correios. Perguntado como é que a mãe, com uma pensão tão pequena, tinha amealhado 3.000 € em casa, que lá foram apreendidos, respondeu que por um lado a mãe era muito poupada e, para além disso, quando o depoente vinha visitá-la trazia-lhe sempre mantimentos: como explora um Intermarche trazia-lhe as quebras, pacotes estragados, iogurtes no final do prazo. Para além disso trazia sempre outras coisas, como bacalhau, frango, azeite, óleo, açúcar.

Perguntado se usava a sua chave quando ia a casa da mãe disse que tocava sempre à campainha por respeito. Perguntado quem mais tinha chave de casa da mãe respondeu que a irmã, uma vizinha e a tia Carmo também tinham. Perguntado disse não saber se alguma destas chaves tinha desaparecido mas que a chave da mãe nunca apareceu. Perguntado se sabia se o sobrinho tinha chave respondeu que provavelmente não teria porque as suas filhas também não tinham.

Perguntado quem da família estava junto da casa da mãe no dia do crime disse que estavam o depoente e a esposa, a tia Carmo, o marido, o tio Armelim, o tio Evaristo, o tio Fernando, irmão da mãe, e o genro e a filha do tio Fernando. Perguntado se notou algum comportamento estranho a alguma destas pessoas respondeu que não. Perguntado se falaram sobre quem podia ter sido respondeu que ninguém fazia ideia.

Perguntado se a mãe alguma vez lhe tinha expressado preocupação em relação ao neto, Carlos Coelho, respondeu que sim: a mãe nunca lhe disse que eles estavam com dificuldades financeiras mas falava muitas vezes, preocupada, que o sobrinho e a mulher tinham um modo de vida muito gastador. Estas conversas aconteceram várias vezes. Perguntado quando é que terão começado respondeu que talvez 1 ano antes do crime e que quando estava sozinho com a mãe estas conversas eram regulares.

Perguntado se falou com a arguida no dia do funeral disse que não. Perguntado se a sua esposa falou com a arguida no dia do funeral ou do velório respondeu que as viu falar durante muito tempo no dia do velório.

Quando foi perguntado ao depoente se a esposa lhe tinha dito alguma coisa sobre essa conversa ou sobre coisas que tivesse achado estranhas no comportamento da arguida ouviu-se que a esposa do depoente iria falar e que, por isso, a resposta do depoente não era relevante, até porque se tratava de depoimento indirecto.

*

Conforme já vimos dos depoimentos anteriores muitas testemunhas relataram episódios/conversas havidos com terceiros.

Sobre o depoimento indirecto rege o art. 129º do C.P.P. que diz, no nº 1, que ele não pode ser considerado se, e salvo algumas excepções, a pessoa a quem se ouviu dizer não for chamada a depor.

O conhecimento directo é aquele que se adquire através dos sentidos próprios: o conhecimento indirecto é o que resulta de relato alheio ou da leitura de documento produzido por outrem.

Se o depoente relata o que viveu, o que viu, o que ouviu, o que assistiu, o depoimento é directo. O depoimento indirecto é aquele que incide sobre o que se ouviu dizer mas quando se relata em tribunal aquilo que se ouviu da boca de outra pessoa estamos perante um depoimento directo, pois ele incide sobre o que o próprio captou por intermédio dos seus próprios ouvidos [12]. Já quanto ao conteúdo do relato, não se trata de conhecimento directo mas sim de conhecimento indirecto.

Em segundo lugar também temos que chamar a atenção para o facto de o art. 129º do C.P.P. estar inserido no capítulo relativo à prova testemunhal e haver quem defenda que o regime do depoimento indirecto não se aplica ao depoimento indirecto do arguido, do assistente ou da parte civil sobre o que ouviram dizer a outras pessoas 13.

Finalmente, ao ter sido mencionado que a esposa do depoente iria depor (ela havia sido indicada como testemunha na acusação, a fls. 2791) pelo menos naquele momento ficou a saber-se que a situação legal que permitiria considerar a resposta do depoente estava criada.

*

Entretanto a testemunha disse não se recordar do que a esposa lhe havia dito.

Albertina Maria dos Santos Afonso Almeida, esposa de Carlos Almeida, perguntada se antes da morte da sogra tinha bom relacionamento com o marido da arguida respondeu que sim, que havia cumplicidade entre ambos porque em certos assuntos o sobrinho sentia-se mais à vontade a falar consigo do que com o resto da família. Isto antes do casamento, porque depois o Carlos Jorge afastou-se de toda a família: deixou de comparecer à reunião anual, não ia aos anos da avó, não ia aos jantares de Natal. A certa altura a sogra até deixou de fazer jantares de Natal e de passagem de ano porque como ele não ia ela não queria fomentar fracturas da família.

Perguntada se sabia a razão desse comportamento do sobrinho disse que não.

Perguntada se a cunhada lhe falava nisso respondeu que quem lhe falava nisso era a sogra, mas notava que a cunhada não convivia nem com o filho nem com a neta, porque nunca ouvia a cunhada dizer que ia a casa do filho nem ouvia que o filho visitasse a mãe e a sogra dizia que ela sofria com isso, ainda por cima porque ela vivia para o filho. Isto quer antes, quer depois da menina nascer. Disse que só uma vez ouviu a cunhada falar da questão: na semana seguinte ao baptizado da neta ouviu-a dizer para a sogra «mas viu que era só família dela?».

Sobre as razões disso respondeu que achava que nem a cunhada nem a sogra mantinham um padrão de vida que agradasse à arguida e que o padrão de vida do neto desagradava à sogra.

Disse que depois da detenção da arguida falou muitas vezes com o sobrinho e foi nestas conversas que ele falou da sua relação com a arguida.

Sobre a situação económica do casal disse que antes dessas conversas no último almoço dos anos da sogra ou no do 25 de Abril esta disse que o neto não ia porque lhe tinha dito que não tinha dinheiro nem para as portagens. Quem lhe contou isto foi o marido.

Perguntada se sabia que a sogra tinha emprestado dinheiro ao sobrinho disse que só soube quando o sobrinho lho disse e que ele também disse que o andavam a pagar em prestações.

Perguntada se depois do homicídio os contactos com o sobrinho aumentaram respondeu que após a detenção e até determinada altura os contactos com o sobrinho passaram a ser diários e muitas vezes mais do que 1 vez por dia.

Sobre o crime e como souberam disse que depois de ter recebido um telefonema o marido disse-lhe que tinha acontecido alguma coisa à mãe. Vieram para Coimbra, chegaram a casa da sogra cerca das 23h e já estava a polícia, muitas pessoas e muitos familiares, nomeadamente o Armelim. Perguntada como é que os irmãos da vítima estavam respondeu que estava toda a gente «em choque e incrédulos».

O sobrinho chegou por volta da 1h ou 2h da manhã. Perguntada como é que ele estava disse que estava como todos, incrédulo. A mensagem que ele logo transmitiu, e durante um certo tempo, é que o caso estava entregue ao melhor ou aos melhores profissionais da matéria.

Depois, talvez pelas 3h, foram para a P.J., o marido foi ouvido logo de seguida e regressaram a casa talvez pelas 7h.

Perguntada se no dia 22 teve alguma conversa com o sobrinho ou com a arguida disse que não.

Sobre a conversa que teve com o marido disse que quando saíram da P.J. ele estava convencido que se tinha tratado de um homicídio e no regresso a casa falaram sobre o caso e se a vítima teria problemas de que não falasse.

Perguntada sobre o velório disse que foi no dia 23, na igreja de Nossa Senhora da Lurdes. Chegaram à igreja no início da tarde, às 14h/14h30, houve um atraso muito grande na chegada do corpo e a certa altura até ficaram convencidos que ele nem chegaria. O motivo que deram para o atraso foi que tinham descoberto mais uma bala, que tiveram que a tirar e quando o corpo chegou já era «completamente noite».

Perguntada disse que a arguida e o marido chegaram por volta das 18h. Perguntada se a arguida estava queixosa, no sentido de estar com dores, disse que a arguida esteve sempre em pé, que a achou normal, que não notou que estivesse com dificuldades de locomoção e que só soube que ela tinha sido operada noutro dia, quando o sobrinho lhe disse.

A depoente disse que a certa altura do velório a arguida sentou-se ao seu lado e que falaram sobre o que teria acontecido e quem poderia ter sido. Na conversa disse à arguida que, pelo que tinha ouvido, tinha que ser alguém próximo e que, às tantas, estava ali na sala e a arguida respondeu que era por isso que estava ali sentada, para ver se detectava alguma reacção estranha de alguém.

A certa altura passou o tio Armelim e nessa altura a arguida disse que ele tinha má onda, que ele jogava, que talvez tivesse tido necessidade de fazer algum pagamento, que tinha sido guarda prisional, que tinha acesso a armas.

Perguntada como é que a arguida estava vestida respondeu que estava vestida toda de preto e com um vestido azul

Depois de interrompida a propósito do tipo de azul do vestido da arguida a depoente continuou dizendo que ela também tinha uma camisola ou uma peça com gola alta preta, gola não agarrada, que esteve o tempo todo com as mãos na gola e por isso se recordava da gola.

Depois deste dia não voltou a falar com a arguida.

Sobre o funeral disse que foi no dia seguinte, talvez pelas 10h.

Perguntada quando voltou a encontrar ou a falar com o sobrinho disse que na 3ª feira seguinte o marido telefonou-lhe a dizer que o sobrinho lhe tinha dito que a arguida tinha sido detida.

Telefonou ao sobrinho logo a seguir, pediu-lhe para ele explicar o que estava a acontecer e ele disse «é verdade». Perguntou-lhe «mas a Ana porquê» e ele respondeu «por causa do dinheiro, por causa do dinheiro»: ele disse-lhe que a Ana nunca se tinha conseguido adaptar aos cortes que andavam a ter, que tiveram que pedir dinheiro à avó, que ela quis pedir mais dinheiro e que não percebia o que tinha acontecido.

A certa altura a testemunha verbalizou que estava a ser incomodada, que estava alguém sempre a falar perto de si, que isso era perturbador e que tinha essa atitude como falta de respeito. Esta não foi a única vez que a testemunha abordou esta questão.

*

 É da experiência comum que há palavras que não queremos e/ou não gostamos de ouvir, porque nos comprometem, porque são falsas ou não são totalmente verdadeiras, porque achamos que são injustas. E isto acontece quaisquer que sejam as circunstâncias em que são proferidas.

Em julgamento, porém, as reacções de discordância, indignação, terão que ser contidas, devem ser manifestadas em termos próprios, nomeadamente quando proferidas pelos magistrados ou advogados intervenientes, pois que nesta sede o depoimento, seja qual for o conteúdo, tem um tratamento diferente do que ocorre no dia-a-dia, nomeadamente quando se detecte uma falsidade.

Para além disso um interrogatório pode ser duro, contundente, mas não pode ser desrespeitador, ao ponto de ofender quem depõe.

Usando as palavras de Germano Marques da Silva [13] «o dever de testemunhar é não só um dever jurídico, mas também um importante dever ético. As testemunhas para cumprirem o seu dever sofrem frequentemente … graves incómodos e elevados prejuízos, não sendo os menores a desconsideração com que são tratadas pelo tribunal, pelos advogados … Importa, por isso, não olvidar os direitos que assistem às testemunhas e que ao contrário dos deveres a lei não refere … A testemunha tem direito à correcção … “o menosprezo ou a atitude agressiva para com as testemunhas ofende a sua honorabilidade e é indigna dos órgãos de justiça”» (citando Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 1981, pág. 336).

É de realçar o facto curioso de a lei falar nos deveres das testemunhas mas não falar nos seus direitos.

Não obstante, durante este depoimento, como de várias outros aliás – por exemplo do das testemunhas José Cardoso, de Vitor Teixeira, de Sérgio Taipa, de José Faustino e do assistente Carlos Almeida -, houve muitas situações a que podemos aplicar, integralmente, a citação feita acima.

*

Continuou a testemunha dizendo que a preocupação maior do sobrinho nessa noite era convencer a família que não tinha nada a ver com o que tinha acontecido e, ainda, como é que ia enfrentar a família da mulher no dia seguinte.

Perguntada se o sobrinho se mostrava conformado com o facto foi interrompida e não respondeu.

Perguntada se depois o sobrinho indicou as razões que o levaram a desconfiar da mulher disse que nos dias seguintes e no dia da missa do 7º dia referiu que o sobrinho disse que tinha 99% de certeza de que tinha sido a mulher e disse que na noite do crime ela tinha chegado tarde a casa, o que não era normal e que tinha achado estranho e também disse que ela teve outros comportamentos estranhos, mas aqui não explicou.

Perguntada de nesta conversa o sobrinho tinha dito alguma coisa sobre o relacionamento que tinha com a mulher respondeu que ele lhe falou disso noutra situação e disse-lhe que no dia do funeral, depois de terem sido ouvidos, foram para a Figueira e tiveram uma grande discussão.

Perguntada sobre o encontro familiar em Vendas Novas disse que ocorreu no início de Dezembro, que foi sua a iniciativa, que a tomou no velório e porque entendeu, como disse a todos na altura, que era importante a família aproximar-se e falar do sucedido. A arguida disse logo que sim, que ela e o marido iam.

Nessa reunião estiveram presentes a depoente, o marido, a filha, a enteada e o marido e filhas dela e os cunhados. O sobrinho também esteve e disse, mais uma vez, que tinha 99% de certeza que tinha sido a mulher. Falaram sobre o que é que o Carlos Jorge ia fazer, ele dizia que queria que a mãe fosse lá para cima para o ajudar a ele e à filha, o cunhado não queria ir mas a cunhada disse ao filho «não te preocupes com o teu pai, eu vou» e ele até ponderava vir para Coimbra trabalhar.

Perguntado se o sobrinho pediu ajuda financeira a alguém respondeu que o marido lhe disse que o sobrinho lha tinha pedido.

Perguntada se voltou a estar com o sobrinho respondeu que estiveram nos anos dele, em 20 de Janeiro, e que ele até pediu para lhe levarem mantimentos porque precisava de ajuda. Levaram muita coisa, cozinhada e por cozinhar, e até levaram o bolo de aniversário. Nesta altura o sobrinho disse que tinha dúvidas que tivesse sido a mulher.

Perguntada se ele, aqui, pôs em dúvida a qualidade dos investigadores disse que não e que só o fez no último telefonema que tiveram, depois da libertação da arguida.

Perguntada quem é que tinha feito este telefonema respondeu que desde a morte faziam uma missa por mês pela sogra e que o sobrinho nunca tinha ido. Os telefonemas começaram a espaçar, o que achava normal, mas uma vez telefonou-lhe a dizer para ele ir à próxima missa.

Entretanto num sábado foi visitar o seu pai, que tinha tido um problema de saúde, e soube que a arguida tinha sido libertada. Telefonou ao sobrinho para saber o que tinha acontecido e para saber se ele ia à missa mas ele não atendeu. Não insistiu porque pensou que ele estaria, num caso ou noutro, num momento muito importante da sua vida.

Na 2ª feira seguinte telefonou ao sobrinho, perguntou se ele estava bom e ele respondeu que estava muito melhor porque a arguida já estava solta. Perguntou-lhe se a arguida estava com ele e o sobrinho respondeu que sim. A depoente disse que esta conversa foi completamente diferente de todas as anteriores: o sobrinho estava arrogante, mostrou desprezo total pela família, pôs em causa a investigação da P.J. e disse que estava convencido que não tinha sido a mulher.

A depoente perguntou-lhe o que é que tinha acontecido, porque é que dizia isso, porque antes tinha 99% de certeza, disse a P.J. era a melhor do mundo, porque é que agora dizia o contrário, que tinha que explicar, ele disse que o problema não era dele e não respondeu.

E a partir deste momento nunca mais falou com o sobrinho.

Perguntada se o sobrinho alguma vez lhe tinha falado da situação emocional da arguida disse que em Vendas Novas, no tal jantar, o sobrinho disse-lhe que achava que a mulher tinha ido pedir dinheiro à avó, que as coisas se teriam azedado e que a mulher se teria descontrolado até porque ela bebia e andava a tomar anti-depressivos.

Durante muito tempo ele tentou sempre arranjar uma explicação para o acto dela.

O Ministério Público também invocou o depoimento de Maria Flora Lopes Rodrigues.

A testemunha disse que partilhava aulas de ginástica com a vítima, que tomavam café de vez em quando e que faziam caminhadas juntas à noite.

Disse que a vítima era uma pessoa muito reservada, que não falava da sua vida nem na vida da família, que às vezes falava dos filhos, que gostava quando o filho a visitava e que lhe falou do neto uma vez: ela disse-lhe que o neto lhe tinha pedido dinheiro e que estava preocupada porque ele vinha a Coimbra outra vez para lhe pedir mais.

Sobre os montantes emprestados pela vítima ao casal formado pela arguida e marido o Ministério Público convocou o depoimento deste.

Carlos Jorge Almeida Gomes Coelho é marido da arguida, neto da vítima e inspector da P.J.

Relativamente à questão acima referida a testemunha reconheceu que sempre achou que as despesas que a mulher fazia no supermercado eram muito elevadas. Depois, durante a detenção dela passou que fazer as compras e percebeu que aquelas despesas eram normais. Quanto a outras despesas disse que nunca achou que fossem extravagantes.

Sobre os empréstimos da avó disse que em 2011 houve necessidade de fazerem obras no prédio em que vivem e ele e uns vizinhos concluíram que a despesa de cada um rondaria os

1.000€/1.500 €.

Depois disto um dia foi almoçar com os pais, a avó também estava e disse à avó que tinha que fazer obras e que tinha que levantar uma conta da filha para as poder pagar. Ela tomou a iniciativa de lhe emprestar o dinheiro necessário e combinaram que o reembolso seria feito quando e como pudesse. Posteriormente veio a Coimbra e a avó deu-lhe o cheque.

As obras não começaram e em Março/Abril de 2012 optou por colocar o dinheiro da filha numa outra conta mais vantajosa e juntar mais dinheiro: a mulher juntou 500 € que tinha e o depoente entrou com 500 € do dinheiro que a avó tinha dado. Passadas umas semanas disse à avó o que tinha feito e ela deu mais 500 € para repor o empréstimo inicial para as obras.

Entretanto chegou a conta do condomínio. Nessa altura foram para a Figueira e levou o dinheiro para lá, mas não o depositou logo. Na semana seguinte iam para Barcelona e o pai da mulher deu-lhe 400 € para as férias, o avô deu 100 €, e foi este dinheiro que depositou em 17 de Agosto.

Quanto às economias da avó disse que apenas sabia que ela tinha uma conta conjunta com a mãe e outra conta conjunta com o tio, sabia que as contas eram equilibradas, mas nem ele nem a mulher sabiam dos montantes de cada conta e nem a suamãe sabia.

Disse que tinha vários contactos semanais com a mãe, também telefonava à avó regularmente, mas não conhecia as rotinas de nenhuma das duas.

 

Sobre o dia 21-11-2012 disse que foi trabalhar, pelas 9h30 a mulher telefonou-lhe, disse que tinha deixado a filha e que ia descansar porque no dia anterior tinha estado de pé e tinha andado demais e estava com dores.

À tarde o depoente esteve numa videoconferência: estava marcada para a manhã, prolongou-se e acabou pelas 15h. Disse que a mulher sabia da videoconferência.

Depois de sair do trabalho foi fazer um rastreio auditivo e quando chegou a casa, às 19h, não estava ninguém. Normalmente era a mulher que ia buscar a filha, a hora de chegarem era pelas 18h15, mas não achou estranho porque por vezes chegavam mais tarde.

Durante a tarde telefonou à mulher duas vezes, depois da videoconferência, mas o telefone estava desligado. Disse que não achou estranho porque 2 dias antes derramara vinho para cima do telemóvel e, por causa disto, ele ficou com problemas e começou a desligar-se sozinho. Para além disso como a mulher tinha dito que ia descansar não achou nada estranho.

Quando a mulher e filha chegaram a mulher disse que tinha ido ao supermercado, o depoente disse que lhe tinha tentado ligar e a mulher respondeu que o telemóvel se continuava a desligar. Passou-lhe o telemóvel, ele estava desligado e ligou-o.

Perguntado sobre as limitações que nessa semana a mulher teve resultante da intervenção respondeu que no dia 19 foi com a mulher ao médico e este recomendou-lhe para não fazer esforços, não permanecer muito tempo sentada, andar devagar e com passos pequenos e descansar o mais possível. Disse que a mulher tinha dificuldade em andar, andava muito devagar, tinha dificuldade em estar sentada, a andar de carro andava com o banco rebatido para não fazer tanta pressão e também se sentava de lado.

Quando a mulher foi submetida à intervenção cirúrgica os sogros estiveram com eles até ao final da semana e a filha só foi ao infantário uma vez.

Depois da consulta foram almoçar. Perguntado se beberam bebidas alcoólicas respondeu que a mulher não bebeu. Depois do almoço foram ambos fazer uma massagem romântica:

fizeram a massagem e no fim beberam ambos espumante e comeram morangos.

Disse que nesse dia 21 a mulher teve um comportamento normal.

Depois do jantar pegou no telemóvel e viu que ele estava outra vez desligado e ligou-o.

Mais tarde foi-se deitar e começou a receber mensagens de tentativas de contacto da sua mãe. Ligou e a mãe disse-lhe que a avó tinha morrido com 3 tiros na barriga.

Foi à sala, disse à mulher o que tinha acontecido e a mulher disse-lhe para telefonar para Coimbra para confirmar. Telefonou e confirmou o que tinha sucedido. Também perguntou quem é que estava no local e a colega disse que era o Cardoso. Conhecia-o e ligou-lhe logo. Falou com ele e ele disse que a avó tinha levado uma série de tiros.

Veio para Coimbra, a mulher disse que ela e a filha também vinham, mas o depoente recusou.

Tirou o carro da garagem mas, quando estava a tirar, lembrou-se que podia ter que ficar em Coimbra e para não ir a casa decidiu ir à Directoria do Porto onde tinha um “necessaire” e levou-o.

Veio para Coimbra, foi para casa da avó, quando os colegas saíram o Cardoso cumprimentou-o e convidou-o a ir consigo até à directoria, onde ia ouvir os pais e os tios. No caminho disse-lhe que tinham recolhido 13 cápsulas, que não havia sinais de luta e que a casa estava totalmente alinhada.

Depois o inspector Cardoso foi ouvir os pais e o tio e pelas 4h/5h desceu e perguntou-lhe onde é que estavam as armas do depoente e da arguida e se os seus pais tinham acesso a elas. Depois disse que o problema é que o crime tinha sido cometido com uma Glock e que não havia Glocks aos pontapés. O depoente respondeu-lhe que no Porto havia muitas, que em Lisboa provavelmente havia mais e que há um mês tinha desaparecido uma Glock do Porto.

Aqui a testemunha disse que naquele momento teve a convicção que a investigação ao homicídio da avó tinha terminado, que partir daí o processo foi completamente direccionado primeiro para si e depois para a mulher, que a investigação tinha acabado.

Perguntado disse que não teve conversa nenhuma com o inspector Cardoso.

Depois disto esperou pelos pais, levou-os a casa e foi para a Maia.

Nessa noite ligou várias vezes para a mulher e foi-lhe dando notícias do que ia acontecendo.

Foi para casa pela nacional nº 1, saiu de Coimbra às 8h, chegou a casa às 11h e ainda encontrou a mulher e filha. A mulher foi levar a filha e depois regressou.

No dia anterior, antes de saber de tudo, tinha feito uma reserva para almoçarem: foram almoçar à Foz e falaram do que o inspector Cardoso tinha sugerido. Acabaram o almoço, deram um passeio e regressaram a casa.

Foram descansar e pelas 17h/17h30 o inspector Cardoso telefonou, disse que estavam a ir para o Porto para irem recolher as armas deles e para eles comparecerem na directoria.

Respondeu que sim mas disse que tinham que lhes dar tempo para arranjarem alguém para tomar conta da filha e que pelas 19h/30 lá estariam.

Não foram logo buscar a filha, entretanto a mulher pediu à amiga Teresa para tomar conta da filha lá em casa, mas o contacto demorou porque a mulher não conseguia contactar a amiga. Por causa disto entretanto telefonou para a Directoria do Porto a dizer o que estava a acontecer.

A mulher arranjou-se, foi buscar a filha depois das 18h, demorou 30/45m e quando regressou a amiga ainda não estava. Ligou ao inspector Cardoso a dizer que estavam atrasados e a razão do atraso e este foi o único contacto que teve com ele no dia 22. No dia 23 não falaram.

Disse que quando chegaram à directoria foi buscar a sua arma, a mulher foi buscar a dela e entregaram-nas. Disse que estiveram sempre com os inspectores Coutinho e Verónica e que o inspector Cardoso só apareceu no fim.

Perguntado como é que transmitiu o desaparecimento da arma ao inspector Cardoso, se disse que tinha desaparecido ou que tinha sido furtada, o depoente respondeu que disse que a arma tinha desaparecido e acrescentou que a convicção que teve logo, tal como outros colegas com quem falou, é que a colega tinha perdido a arma.

Continuou e disse que no dia 23 a mulher foi levar a filha e atestou o carro.

Sobre o carro também disse que o limpavam detalhadamente 1 vez por mês e que, devido ao facto de a cadela sujar os vidros e a filha comer bolachas lá dentro a mulher, que tinha um cuidado estremo com o carro, sacudia os tapetes praticamente todos os dias e limpava os estofos e a cadeira da filha com toalhetes. Acrescentou que ele próprio tinha limpado o carro no dia 18 porque a mulher lho pedira.

Quanto aos quilómetros que o carro tinha disse no dia 21, depois de saber o que tinha acontecido à avó e quando estava a arrancar para Coimbra olhou por momentos, «perdido», para o tablier e fixou que a autonomia do carro ainda dava para 330km.

No dia 23 passou todo o dia com a mulher, no final do dia foram fazer as malas e decidiram ficar uns dias na Figueira. Foram buscar a filha e foram para a Figueira: a mulher fez a viagem sentada de lado, com o banco o mais possível rebatido e tiveram que parar 2 vezes pelo caminho para ela andar um pouco.

Perguntado o que é que a mulher vestia e calçava no dia-a-dia respondeu que ela normalmente usava calças de ganga e camisola. Perguntado se a mulher tinha sapatilhas claras respondeu que não.

Chegaram à Figueira pelas 20h, deixaram a filha, a cadela e as malas com os sogros e vieram para Coimbra, para o velório da avó. A mulher esteve sempre ao seu lado, como tinha estado desde a notícia, e também deu apoio à sua mãe.

No dia seguinte foram para o funeral e, depois, para o cemitério e quem levou o carro foi a mulher. Pouco depois de chegarem ao cemitério chegou o inspector Cardoso, que se dirigiu ao depoente e disse que tinha que falar com eles de imediato. Pediu-lhe para assistir ao funeral mas ele não deixou.

Foram para a directoria, foi inquirido pelo inspector Cardoso e ele começou a conversa dizendo «quem fez isto foi a tua mulher». Respondeu que não era possível mas ele disse que tinham a certeza que tinha sido ela e elencou as razões: o lote de munições era um lote especial e exclusivo do Porto, tinham localizações celulares da mulher em Coimbra na tarde do dia do homicídio, tinham feito a comparação das munições encontradas no local e tinham apurado que tinha sido a arma da Liliana a disparar. Aqui disse que o inspector Cardoso não lhe disse que as munições encontradas eram do lote 9 porque se o tivesse dito responderia saber que havia centenas de milhares de munições dessas.

Retorquiu, disse que a mulher não estava em condições de fazer a viagem, ele respondeu que sabia que ela tinha sido operada e que alguém a tinha que ter ajudado e até acrescentou que tinha que ter sido ou depoente ou «algum gajo que ela tem».

Depois perguntou-lhe a que horas ela tinha chegado, respondeu, acrescentou que era a hora normal e ele respondeu-lhe «és mesmo burro. Ela chegou mais tarde porque veio a Coimbra». E de seguida disse «vocês não andam com dificuldades económicas? Tu deves andar à rasca como todos nós». Respondeu que não e não falou dos empréstimos.

Disse que falaram muitas horas, que disse ao inspector Cardoso que tinham um casamento muito feliz, que a mulher se dava bem com a sua avó, mas ele insistia que tinha que ter chatices com a mulher.

Depois de feito um pequeno intervalo decidido pelo tribunal a testemunha recomeçou o depoimento dizendo que queria acrescentar algo. E disse: «na sequência das informações, que hoje sei serem mentira, que me foram transmitidas pelo inspector Cardoso no sábado, dia 24, dia do funeral da minha avó, quando chegamos à Figueira … confrontei a minha mulher … nomeadamente porque como disse que havia localizações celulares em Coimbra … Ana, na 4ª feira, quando a minha avó morreu, foste a Coimbra? E ela disse-me não, não fui. Porque é que eu havia de ter ido?».

Disse que a mulher perguntou porque é que ele estava a falar assim e o depoente disse que lhe respondeu que não podia falar. E explicou em tribunal que o inspector Cardoso, quando lhe deu as informações, lhe disse «não falas isto com ninguém».

Em face disso, disse, pegou na mala, saiu de casa, foi para a estação da Figueira e veio para Coimbra.

Perguntado se, como havia localizações celulares, achou que a mulher estava a mentir respondeu «exactamente». Perguntado se essa tinha sido, para si, a prova da culpabilidade da mulher, se ficou a convicção que era ela a autora do crime, respondeu «exactamente». Perguntado se essa certeza foi transmitida a alguém disse que sim, que falou à família mais chegada, que na missa do 7º dia disse isso aos pais, ao tio e a esposa do tio.

Depois desta separação e até 8 de Dezembro não teve mais contacto com a esposa.

No fim de semana seguinte, 1 e 2 de Dezembro, foi a casa do tio com os pais e voltou a falar disso mas não lhes disse as razões porque não podia falar.

Perguntado se ali tinha pedido dinheiro ao tio disse que sim.

Depois, quando veio para Coimbra, foi a casa do amigo Pedro Melanda, falou com ele e a ele explicou-lhe tudo. E acrescentou «e aqui é quando se começa a fazer a 1ª volta». Disse que o amigo lhe disse que não era possível ter sido a mulher porque tinha saído na comunicação social que ela tinha sido vista por uma vizinha do prédio às 14h15/14h30 desse dia e que se o homicídio tinha sido às 16h não podia ser. Ele também perguntou se o depoente tinha falado que tinham problemas de dinheiro porque tinha saído na comunicação social isso, respondeu que não e ele também disse que a comunicação social até tinha falado da conta da filha. Nessa altura ele também disse que podia ter sido o irmão da avó, já que a avó tinha conflitos com ele.

O depoente disse que foi neste momento que começou a ter dúvidas: começou a percorrer um caminho nessa semana e no fim dessa semana fez a 1ª visita à mulher.

Começou a pensar que a mulher não tinha condições para trazer o carro para Coimbra, que ela não sabia vir para Coimbra por estradas secundárias, pois vinham sempre de autoestrada, que não sabia concretamente onde a avó morava, que não sabia, de todo, as rotinas da avó, que podia chegar e a avó não estar. Também pensou que motivações é que ela poderia ter, para além de saber que a mulher nunca faria algo que pusesse em risco a relação com a filha.

Perguntado porque é que o amigo tinha falado no Armelim respondeu que ele sabia de muitas coisas sobre a sua família e que até lhe disse achou muito desadequada a atitude do Armelim no velório. O depoente disse que a mulher também lhe tinha falado nisso na altura. Acrescentou que o amigo sabia que o Armelim era jogador de bingo e podia ter precisado de dinheiro, embora dissesse que não sabia se ele tinha dívidas ou não.

Perguntado porque é que a mulher, a vir para Coimbra, tinha que vir por estradas secundárias disse que ela nunca viria por auto-estrada porque deixaria rasto.

Sobre o estilo de vida da avó disse que era muito austero. Sobre os rendimentos dela disse que era a reforma e que também sabia que o tio lhe trazia mantimentos.

Perguntado se tinha a chave de casa da avó disse que não, perguntado se a mãe tinha respondeu que a mãe lhe tinha dito que não tinha encontrado a chave.

Sobre as reuniões familiares disse que iam sensivelmente uma vez por mês a casa dos pais e que foram uma vez a uma reunião da família alargada. Quanto ao almoço de aniversário da avó disse que ela os convidava, que iam sempre mas que em 2012 não foram.

Perguntado se tinha falado de discussões com a mulher à investigação respondeu que o dia 24 foi terrível, que não dormia há várias noites, que estava desgastado e triste, que esteve a ser ouvido pelo inspector Cardoso durante muitas horas, que ele não o tinha deixado assistir ao funeral, que de imediato lhe disse que tinha sido a mulher e por tudo isso estava num estado horrível. E disse «no meio desta conversa, digamos, eu, como já tive oportunidade de dizer, estive a tentar procurar em 8 anos de relacionamento … os episódios de discussão» e que tinha contado dois episódios, que nunca lhes tinha dado qualquer relevo, e que também falou de muitos episódios bons da vida do casal que ele não fez constar.

Afirmou que o que foi consignado no auto foi uma pequeníssima parte do que havia dito.

Perguntado que ideia tinha sobre os investigadores do processo disse que tinha uma boa opinião e que a tinha verbalizado à família.

Disse que depois de ter prestado declarações saiu da sala sem assinar o auto, foi para o piquete, esteve 2 ou 3 horas à espera e que foi aqui que o auto lhe foi dado para assinar. Explicou que a certa altura o inspector Coutinho desceu as escadas «em grande velocidade e disse assina aqui».

E, disse, assinou sem ler.

*

O inspector Jorge Coutinho foi indicado como testemunha pela arguida (fls. 3104) que, entretanto, prescindiu da sua inquirição.

Na sessão de 11-7-2014 (fls. 3612) o Ministério Público requereu a audição de Jorge Coutinho alegando que já havia sido referida várias vezes a sua intervenção na investigação e que considerava, por isso, ser pertinente a sua inquirição para cabal esclarecimento dos factos.

O mandatário do assistente não se opôs e o mandatário da arguida opôs-se (fls. 3613) dizendo, em síntese, que o momento da indicação da prova já havia passado e não via aquele depoimento como necessário «e muito menos indispensável para a descoberta da verdade» para justificar uma excepção à regra geral.

O juiz presidente indeferiu o requerido pelo Ministério Público dizendo não existirem razões para, na fase em que o processo se encontrava, excepcionar a regra da apresentação da prova pressuposta no art. 340º do C.P.P., isto sem prejuízo de se vir a proceder à pretendida se ela resultar relevante em consequência da acareação que iria ter lugar.

                                   Jorge Coutinho não foi ouvido.

*

Entretanto o senhor juiz disse que o depoente só poderia continuar a falar do depoimento prestado se as respectivas declarações fossem lidas. A defesa disse que se opunha à leitura porque não tinha qualquer confiança naquela investigação.

*

A menção ao facto de o depoente só poder continuar a falar do depoimento prestado durante o inquérito se as respectivas declarações fossem lidas remete-nos para o art. 356º do

C.P.P., relativo à “reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações”, e que diz, no que agora interessa, o seguinte:

«2. A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestadas perante o juiz nos casos seguintes:

b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura;

3 – É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:

b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.

5 – Verificando-se o disposto na alínea b) do n.º 2, a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal».

A norma trata da questão da leitura em audiência de declarações prestadas em fases anteriores do processo pelo assistente, pelas partes civis e pelas testemunhas e determina que a leitura dessas declarações só pode ser efectuada no circunstancialismo referido e a oposição não tem que ser fundamentada: basta ser manifestada.

Ora, no caso não se procedia à leitura das declarações prestadas no dia 24-11-2012 pela testemunha Carlos Coelho à P.J. nem isso estava em vias de acontecer. E também não estava a ser inquirido sobre o sucedido de sub-reptícia pois nenhuma pergunta houve sobre a diligência. Para além disso também não foi sugerida qualquer pergunta nem feita qualquer insinuação do que ali havia sido dito ou sugerido a contradição com as declarações que a testemunha estava a fazer no momento.

O depoimento estava a decorrer, a testemunha estava a falar sobre o que ali tinha acontecido em liberdade, de forma natural, não compelida, e sem que tivesse sido, sequer, oposto qualquer obstáculo.

             Por isso temos as declarações que prestou por legais.

 A diligência de leitura de declarações prestadas em inquérito teve lugar por diversas vezes durante o julgamento: foram lidas as declarações prestadas pela testemunha Rita Sofia de Jesus Pinto, os depoimentos a prestar pelas testemunhas Raul Jorge Fernandes Abrantes, Sara Joana Jorge Faria, Maria Luisa Almeida Trindade, Rute Maria Maurícia Preto, Fernando de Oliveira Marques e Moisés João Coelho da Silva Rocha foram substituídos pela leitura das respectivas declarações prestadas em sede de inquérito, sem prejuízo de, após a leitura, ser requerida a prestação do depoimento oral, que não foi solicitado. O mesmo sucedeu em relação aos depoimentos a prestar por Maria Luísa Lopes Garcia Velasco, Tatiana Soraia Macieira Correia, Maria do Céu Gonçalves, Fernando Gonçalves e Maria de Lurdes Benido Santos Ribeiro Fonseca e Adília dos Santos Sousa.

*

 Continuando, perguntado se assistiu ao funeral da avó Carlos Coelho disse que não porque o inspector Cardoso não deixou.

Disse que depois de ter prestado as declarações foram para a Maia no carro da polícia. À frente iam o inspector Cardoso e o segurança e atrás ele e a mulher. Também levaram as suas 2 malas e, perguntado, disse que não ia mais nada na mala do carro.

Quando chegaram o inspector Mota Gonçalves estava a aguardar e depois subiram todos. Entraram em casa, foi-lhes perguntado se tinham alguma coisa a entregar para o processo, responderam que não e o inspector Cardoso sentou-se e começou a redigir o auto. Todos estiveram sempre na sala, ninguém fez busca à casa.

No fim, quando já estavam a sair, o inspector Cardoso perguntou à mulher que roupa tinha usado no dia 21 e se a podia ir buscar. A mulher foi buscar a roupa e entregou-a. Disse que o casaco que ela entregou estava no bengaleiro que estava atrás da porta da entrada e que não sabia onde ela foi buscar as calças e sapatilhas. As peças foram colocadas num saco e o saco não foi fechado.

Perguntado se os elementos da P.J. tinham luvas disse que não.

Repetiu que, depois, foram para a Figueira, subiram a casa dos sogros, o depoente perguntou à mulher se ela tinha estado em Coimbra no dia da morte da avó, ela respondeu que não e então ele saiu, levou a sua mala, foi para a estação de comboios e veio para Coimbra e quando chegou telefonou aos pais e disse que se ia divorciar. A mãe perguntou porquê mas não explicou nada porque «tinha sido terminantemente proibido de falar».

Depois disto, à tarde, telefonou ao inspector Cardoso, perguntou se havia mais alguma coisa, ele foi ter consigo, andaram a dar uma volta carro, ele reafirmou tudo o que tinha dito no dia anterior e disse que havia uma informação adicional, pois também sabiam que a arguida «recebeu sms em Coimbra naquela tarde».

Foram a um café e quando estavam a entrar o inspector Cardoso disse-lhe para se baixar e explicou «está ali o director de Coimbra. Ninguém me pode ver contigo». Estiveram um pouco no café e foram embora.

Perguntado se teve conhecimento de alguém que tivesse um ferimento feito com uma Glock devido a má empunhadura respondeu que nunca presenciou e nunca soube que tivesse acontecido e que essas armas têm uma aba de protecção que impede qualquer lesão.

Perguntado se na missa do 7º dia ou em casa dos tios comentou os gastos excessivos da mulher respondeu que talvez.

Perguntado se voltou a contactar os tios depois desta data disse que falou com os tios no dia 20 de Janeiro, dia do seu aniversário. Nesta data eles foram a sua casa e nesse dia disse ao tio que não acreditava na culpa da mulher, que se falava na eventualidade de poder ter sido o enteado da avó, José Lopes, pessoa que nunca conheceu e que sabia que tinha um arsenal de armas muito grande em sua casa. Quem lhe disse isto foi a esposa ou os sogros. Concomitantemente sabia que o tio tinha vivido na casa com o tal José Lopes. Perguntado como é que a esposa soube respondeu não saber.

Perguntado se voltou a ter contactos com o tio disse que teve no dia 21 de Fevereiro, quando este lhe telefonou: estava muito preocupado porque tinha acabado de falar com o inspector Cardoso e este disse-lhe que ele tinha escrito uma carta para o processo a dar esclarecimentos e que também lhe disse «que eles» estavam «piurços, doidos» com o depoente, que ele não podia ter escrito aquela carta e que disseram, ainda, que o depoente ia perder o emprego e que tinha que voltar atrás.

Disse ao tio que tudo o que tinha posto na carta era verdade.

O depoente disse que já antes o inspector Cardoso lhe tinha mandado um recado pela mãe.

Perguntado se depois de 21 de Fevereiro voltou a contactar com o tio disse que não, que quando a mulher foi libertada falou com a esposa do tio, que ela quis saber pormenores mas não lhe disse nada porque estava a trabalhar não podia estar ao telefone.

Perguntado se ele ou os sogros alguma vez tinham falado com colegas para irem visitar a esposa disse que falou com o colega Sérgio Taipa. Quis apurar com ele a data da última sessão de tiro e a mulher queria dizer aos colegas que não tinha sido ela a autora do crime. E então pediu ao colega para ir visitar a mulher fora das horas de visita. Ele disse-lhe na altura que já era testemunha no processo.

Sobre a raiva que o Ministério Público defende que a arguida sentiu por ter que devolver à vítima o dinheiro que ela tinha emprestado diz o recurso que Horácio Firmino, cujas declarações relevaram para o acórdão recorrido, só passou a acompanhar a arguida a partir de 2014, sendo que reconheceu que o crime teria que ter sido metido com raiva.

Horácio Firmino, médico psiquiatra, declarou que seguia os pais da arguida, que no verão de 2011 os viu na Figueira da Foz, acompanhados da filha e da neta, que eles se mostraram preocupados com a filha, que andava muito sensível devido à doença cancerosa de uma amiga e porque se interrogava o que aconteceria se lhe acontecesse o mesmo. Na altura sugeriu à arguida que falasse com o seu médico.

Em 2014 passou a acompanhar medicamente a arguida. Verificou que ela vivia um fenómeno de adaptação à situação decorrente deste processo e apresentava um quadro angodepressivo: tristeza, desesperança, angústia, tensão, ansiedade, perturbação de sono.

Pedida a leitura do documento de fls. 2562 – declaração subscrita por Ferreira de Sousa em 28-10-2013, médico psiquiatra que seguiu a arguida de 1-8-2011 a 18-10-2012 (fls. 950 e 2562), sobre a

medicação à data da última consulta, arrolado como testemunha por esta e cujo depoimento foi prescindido -, disse que alguma da medicação ali referida a arguida ainda toma: um dos medicamentos é muito usado em situação de SOS, por exemplo em crises de ansiedade; outro tem acção anti-depressiva e ansiolítica; o terceiro é uma benzodiazepina. Acrescentou que há benzodiazepinas que não têm acção nem relaxante nem sedativa.

Perguntado se aquela medicação alterava o comportamento respondeu que não mas que há anti-depressivos, por exemplo o “Prozac”, que provocam impulsividade e há outros que geram falta de sentido crítico.

Perguntado sobre os efeitos da associação daqueles medicamentos disse que em termos gerais geram uma sedação, porque o Lorezepam e o Victan com acção ansiolítica têm acção sedativa: a pessoa fica mais relaxada e pode ficar sonolenta. O Lorezepam é mais usado à noite. O uso de 2 mg de Lorezepam tem uma acção sedativa. A dose referida do escitalopram é a dose padrão.

Perguntado se aquela medicação era inibidora do comportamento referido no processo disse que aquela medicação diminui a capacidade de condução e reacção: a pessoa fica com mais dificuldade da actividade motora, não reage como reagiria se não os tomasse. Disse que mesmo os anti-inflamatórios provocam esta diminuição de reacção.

Sobre a possibilidade de se deixar de tomar a mediação de moto próprio por uma qualquer razão disse que se se deixar de tomar escitalopram sem acompanhamento a pessoa não se sente bem e, muitas vezes, até tem que recorrer às urgências por causa dos efeitos da falta da toma.

Perguntado o que significa a referência de fls. 2548 «sente-se bem. Mantém terapêutica», feita numa consulta de psiquiatria de 18-10-2012 – o documento de fls. 2545 a 2561 integra a informação clínica sobre a arguida prestada pelo Hospital da Trofa e relativa à intervenção cirúrgica a que ali foi submetida e aos períodos em que foi acompanhada por médicos daquele estabelecimento de saúde -, disse que significa que o quadro clínico está estabilizado e que não é o momento para reduzir a medicação.

Sobre a relação da arguida com a filha disse que quando começou o acompanhamento a arguida verbalizava que o que mais lhe custou quando esteve presa foi a separação da filha. Sobre a arguida disse ser uma mulher sensível e sentiu uma ressonância afectiva da parte dela.

Perguntado se a medicação sedativa amputava a actividade motora respondeu que só tomando uma atitude anestésica. Perguntado se diminuía a ponderação respondeu que sim se houver uma atitude anestésica. Sobre se a amputação da medicação provocava sempre angústia disse que a paragem normalmente gera perda de capacidade de reacção e crises de pânico. Disse, também, que aquela medicação gera sempre alguma tolerância e, por isso, há que, por vezes, alterar mas que o efeito de sedação se mantém.

Perguntado sobre o efeito da toma de medicação com a ingestão de álcool disse que um copo de vinho por dia não provoca problemas mas que não aconselharia uma quantidade maior.  Sobre uma morte provocada por catorze tiros disse entender que teria que resultar de conflitos graves acumulados, grande tensão e raiva acumulada, ou de uma sociopatia. Esclareceu que o sociopata não tem ressonância afectiva e que o sociopata é sempre sociopata e não sociopata de vez em quando.

O Ministério Público também convoca o resultado do processo disciplinar instaurado à arguida por factos ocorridos em 22-6-2011.

Em 22-6-2011 a arguida e o inspector Matias Santos foram ao T.I.C. do Porto para entregar expediente relativo a um processo. Os lugares de estacionamento reservados à P.J. estavam ocupados, o inspector foi ao tribunal e a arguida ficou na viatura e, a certa altura, estacionou no espaço destinado aos magistrados. O procurador Prado e Castro tinha o seu veículo estacionado no espaço reservado à P.J. e pelas 12h15 quis estacioná-lo num espaço dos magistrados, que vagara. Devido à dificuldade para estacionar pediu à arguida para retirar a viatura da P.J. do espaço dos magistrados e a arguida respondeu que não tirava. Depois de estacionar ele solicitou, de novo, à arguida para tirar o veículo e ela respondeu que não e perguntou-lhe quem era ele. Ele identificou-se e pediu-lhe que retirasse a viatura e a arguida respondeu que não. Três funcionários do tribunal atestaram a qualidade profissional do procurador, este foi buscar o seu cartão identificativo, exibiu-o à arguida, exigiu ver o cartão profissional desta, que viu, e a arguida retirou a viatura.

Da decisão de 21-5-2012 foi decidido que a arguida teve uma postura desprestigiante para a P.J. e de desconsideração para com o magistrado, violadora das regras de correcção, urbanidade e civismo do art. 5º, nº 2, al. f), do RDPJ, aplicando-se-lhe a pena de repreensão escrita. A arguida recorreu hierarquicamente e por despacho de 3-12-2012 a Senhora Ministra da Justiça indeferiu o recurso.

Para comprovar o facto de a arguida beber enquanto tomou a medicação acima referida o Ministério Público invoca as palavras que ela proferiu sobre o jantar do dia 19-11-2012.

Sobre este jantar a arguida Ana Saltão disse que, tal como o marido, também tinha bebido vinho. Perguntada se tinha bebido vinho ao almoço disse não se recordar.

Ainda sobre o dia 19 a testemunha Carlos Coelho disse que depois de almoçarem foi com a mulher fazer uma massagem romântica e, no fim, ambos beberam espumante.

*

 O recurso incide, depois, sobre o facto de o telemóvel da arguida ter estado desligado durante a tarde do dia do homicídio o que, para o Ministério Público, resulta da circunstância de ela o ter desligado para que a sua deslocação a Coimbra não fosse detectada.

E para demonstrar que o telemóvel foi desligado o Ministério Público invoca os documentos de fls. 545 e 1231.

O tribunal solicitou à TMN que fornecesse a facturação detalhada do tráfego (chamadas e mensagens efectuadas e recebidas) relativamente ao cartão 965737818, da arguida, relativas ao período de 1-11-2012 a 5-12-2012 (fls. 517) e a resposta ao pedido de facturação detalhada consta de fls. 542 e segs. e 1231.

De fls. 542 e segs. resulta que às 13h22m00s, 15h50m40s e 19h24m21m do dia 21-112012 foram feitas tentativas de contacto para o número da arguida, tentativas estas que não foram concretizadas. Nestas tentativas o código que aparece na referida informação é o

BSC_CBR2L (aparece quando é efectuada uma comunicação e o equipamento está desligado, não sendo possível detectar a célula). Consta uma outra tentativa de contacto às 15h28m37s e nesta o código que aparece é o N/E (que significa célula não especificada).

Ainda no sentido de demonstrar que o telemóvel da arguida nunca esteve avariado e que no dia 21-11-2012 foi desligado propositadamente refere o Ministério Público que nunca tendo sido dito que o referido aparelho foi objecto de reparação o certo é que entre 19-11-2012 e 7-122012 o telemóvel nunca esteve desligado para além das 4 vezes acima referidas e de 1 vez em 24-11-2012.

Conforme alega o Ministério Público da consulta deste documento resulta que de 19-112012, inclusive, até às 19h14m29s de 7-12-2012 o referido número surge com a indicação de desligado nas situações indicadas e às 14h51m19s do dia 24-11-2012, sendo que neste período constam cerca de 180 registos.

Diz, também, o Ministério Público que a decisão do tribunal, que entendeu que o código N/E significava que o aparelho estava ligado mas sem capacidade de comunicação, foi para além da prova, já que o código N/E significa apenas célula não especificada.

Sobre isto consta do acórdão recorrido o seguinte: «… conforme resulta da informação da TMN a fls. 1231, a indicação “BSC_CBR2L” diz respeito ao código utilizado na célula quando é efectuada uma comunicação e o equipamento se encontra desligado, não sendo possível detectar a célula. Já a indicação N/E (ocorrida cerca das 15 horas daquele dia 21.11.2012 – cf. fls. 545) apenas diz respeito a célula não especificada, o que leva o tribunal à conclusão que nesse curto período o telemóvel esteve ligado mas sem capacidade de estabelecer ligação, donde resulta ser perfeitamente possível o alegado problema técnico de desligar e ligar do telemóvel da arguida sem intervenção humana por esta referido».

Para demonstrar o erro desta decisão o Ministério Público convoca o depoimento prestado pela testemunha Miguel Sousa.

Miguel Ferreira de Sousa, inspector da P.J., colocado na Directoria do Norte, no Sistema Integrado de Investigação Criminal-Brigada de Análise e Informação Criminal, perguntado se foi instrutor de tiro disse que foi no exército.

Perguntado sobre o “canal de controlo” disse que as telecomunicações por rede móvel funcionam em três níveis: o “MSC”, que é o sistema operativo; o “BSC”, Base Station Controller, que é o canal de controlo; e o “BTS”, Base Tansceiver Station, no fundo uma estação que comporta diferentes células e em diferentes ondas de comunicação, que é a parte da rede que comunica com o telemóvel. O BSC faz o controlo e liberta os canais de rádio disponíveis para as solicitações que são efectuadas pelas BTS´s: alguém está a tentar fazer uma chamada, «o telemóvel comunica-se com a BTS e diz eu preciso de um canal rádio e o canal de controlo diz eu tenho o canal 412 disponível, usa-o. Ele é usado para essa comunicação, o sistema regista-o não pelo número de telemóvel mas pelo número internacional de subscritor … o IMSI, International Mobile Subscriber Identity.

Não identifica o sujeito utilizador, identifica o cartão SIM utilizador … O BSC faz um bocadinho mais, que é, eu agora estou aqui mas não estou a comunicar com ninguém com o meu telemóvel mas eu estou a dizer à BTS que estou aqui e a BTS está a dizer ao canal de controlo ele está aqui … E assim funciona o canal de controlo. Estes dados estão disponíveis na operadora para 36 a 48 horas … mas o normal são as 24/36».

Sobre o que permite esta informação referiu que o que o canal de controlo diz é que numa determinada BTS – que designam por células, que fazem a cobertura em guarda-chuva

(hexagonal e sobreposta, de forma a haver sempre rede) do território nacional -, se um telemóvel fez

uma chamada ela está lá como chamada efectuada e com um destino. Mesmo que não tenha efectuado a chamada o telemóvel comunicou com a BSC e disse que estava lá (location update).

                                   Isto acontece só quando há comunicação e o telemóvel tem que estar ligado.

Quanto ao mais sobre os procedimentos na carreira de tiro da Directoria do Norte da P.J.

declarou que aquilo que sempre fez e sempre viu fazer é que cada um leva a sua arma, os dois carregadores e as suas munições. Na carreira de tiro são alertados para substituírem as munições que levam por munições de treino e fazem a substituição. São quatro pessoas em simultâneo, as munições de cada um ficam em cima de uma mesa e, no final, quando municiam os carregadores com as munições que levaram pode haver trocas mas, em princípio, as munições com que municiam a arma são aquelas que levaram. Esclareceu que não faz parte dos procedimentos garantir que não há troca de munições.

Pedido que mostrasse as munições que tinha na sua arma a testemunha desmuniciou a arma e ouve-se que as munições que municiavam a arma da testemunha eram totalmente diferentes das outras já vistas. Depois a testemunha disse que algumas dessas munições que tinha na arma lhe foram distribuídas por volta do ano 2000 e que outras eram munições de treino. Acrescentou que no outro carregador tinha munições hollow point. Disse, também, que carrega a arma com 15 munições e que acha que todos os colegas também carregam com 15.

Perguntado como eram as caixas das munições que lhes eram distribuídas disse que eram caixas de cartão, do género de caixas de parafusos, que eram caixas novas e cuja tampa encaixava no corpo da caixa, sem fecho especial.

Continuou dizendo que na carreira de tiro, depois da troca das munições à voz do instrutor dirigem-se para a linha de alvo e disparam para o alvo. Há sempre dois tiros para cada alvo, o tiro de impacto e o de confirmação. Disparam trinta munições, pelo que têm que usar os dois carregadores. Sobre o tiro instintivo disse que é feito no último alvo e sem fazer pontaria: é sacar e disparar e aqui também disparam dois tiros.

Perguntado se entre cada dois tiros arrumam a arma ou se há uma só empunhadura até descarregarem o carregador respondeu que a empunhadura vem feita e mesmo não tendo os tiros sido seguidos mantém-se a mesma empunhadura até ao final. Disse que depois de terminado o treino colocam as respectivas munições nos respectivos carregadores e fazem a limpeza da arma.

Perguntado do envolvimento da arguida durante a doença da colega Raquel, que entretanto faleceu, disse que a arguida teve um papel fundamental no grupo de apoio que se formou: faziam angariação de fundos e lembranças para vender. Perguntada se a arguida ficou afectada com o caso disse que todos ficaram abalados.

Perguntado se desapareceu alguma Glock na Directoria do Norte da P.J. disse que em 2010 um colega foi vítima de carjacking e roubaram-lhe a arma, que achava que era uma Glock e estava municiada. Houve outra furtada de um carro em Braga, em 2009 ou 2010, também municiada e que em Lisboa também desapareceram várias. A situação ficou preocupante e a Direcção Nacional até solicitou a intervenção sindical para alertar as pessoas para haver mais cuidado na forma como transportavam e guardavam as armas. Perguntado se as armas foram recuperadas disse que achava que não e sabia que a arma do colega vítima de carjacking não foi.

A testemunha informou, entretanto, que tinha sido presidente da direcção regional de um sindicato dos investigadores criminais da Directoria do Norte.

Disse que o extravio e furto de armas é sempre comunicado à PSP e, perguntado, disse que não sabia se a P.J. comunicava ou não.

Perguntado o que significa o nível 4 numa investigação disse ser o segundo nível mais seguro no sistema de investigação da P.J., significando que só o titular do inquérito, o seu chefe, o coordenador ou um operador específico do sistema e o director têm acesso à informação. Aqui os suspeitos podem ser os funcionários, magistrados, ou pode ser uma investigação que, embora não abrangendo este tipo de pessoas, importe colocar em segredo quase máximo.

Sendo dito à testemunha que no processo em análise no dia 22, dia seguinte ao crime, foi colocada a informação «nível 4», a testemunha respondeu que uma «investigação de homicídio contra desconhecidos por norma não leva nível 4».

A página 2 dos autos é constituída por uma “informação de serviço” dirigida ao coordenador de investigação criminal de piquete da Directoria do Centro da P.J., datada de 2111-2012, onde consta que pelas 22h05m a PSP telefonou dando conta que o cadáver de Filomena de Jesus Gonçalves tinha sido encontrado em sua casa e que as lesões que apresentava «eram coincidentes com as provocadas por arma de fogo … Uma vez que o senhor

Inspector Armando Santos já havia sido contactado, devido a um homicídio na forma tentada … deslocouse para o local o senhor Inspector Cardoso, acompanhado pela senhora Inspectora Sandra Roxo e a perita do NPT, Maria José Quadros …».

Nesta informação foi colocado um primeiro despacho do seguinte teor: «Ao serviço de piquete para atribuição de NUIPC. Registe-se como inq. Homicídio com arma de fogo. À SICCP.

Comunique ao M.P. no DIAP de Coimbra. Cª, 2012.11.22». O despacho e a rubrica que segue estão escritos com tinta preta.

Imediatamente a seguir escrito a tinta azul estão os seguintes dizeres: «Nível 4. Insp J. Cardoso. Inv. C, d.s.». E segue-se, também a tinta azul, uma assinatura onde se lê o nome Rui Santos.

É inequívoco que em 22-11-2012 foi atribuído ao processo o nível 4.

Perguntado à testemunha se as Glock provocam lesões na região tabaqueira das mãos Miguel Sousa disse que com estas armas nunca viu porque ela permite uma empunhadura mais consistente que protege a mão. Se, por acaso, provocar lesão é porque a pessoa estava a brincar com a arma, de qualquer maneira, e a pôs a saltar ou porque estava a aprender.

Perguntado se quem vai à P.J. para ser inquirido pode circular nos corredores enquanto espera disse que não há gente suficiente para controlar todas as pessoas que estão nas instalações. Perguntado se à saída as pessoas são revistadas disse não saber.

Perguntado que tipo de sacos são usados para recolha de elementos balísticos disse que são sacos de plástico com fecho inviolável. Perguntado se nas diligências que faz usa luvas disse que sim mas, por regra, elabora o auto sem luvas e nunca viu nenhum colega redigir com luvas.

Perguntado se pode ter munições de treino na sua arma disse que estas munições de treino não lhe foram distribuídas. Perguntado se era um procedimento correcto andar armado com munições de treino uma vez que todos os colegas, sem excepção, tinham dito que elas eram para uso exclusivo no treino a testemunha respondeu que não anda armado com munições de treino, que anda armada «com algumas munições de treino» e solicitado a esclarecer o facto disse que «a munição de treino não tem alguns constituintes que não se devem usar em carreira de tiro fechada, mas têm o mesmo impacto num corpo».

Disse, ainda, que procedimentalmente «não está fora das regras, não existem essas regras».

Neste momento o mandatário do assistente requereu que fosse notificada a «Directoria Nacional da Polícia Judiciária para informar se é procedimentalmente correcto e/ou lícito um inspector trazer na sua arma funcional munições denominadas de treino, o mesmo é dizer não

tóxicas» (vide, ainda, acta da sessão de 27-6-2014, a fls. 3511 a 3514 do processo).

Depois, perguntado à testemunha se tinha conhecimento do desaparecimento de alguma arma dentro das instalações respondeu que apenas teve conhecimento do desaparecimento da arma da colega Liliana.

Perguntado se havendo disparos múltiplos se há ou não trepidação da arma na mão respondeu ser natural que sim. Perguntado se lhe foram distribuídas munições depois de 2010 disse que não. Perguntado se têm que informar os superiores quando usam a arma de fogo em uso operacional e deflagram as munições distribuídas disse que sim.

Na sequência deste depoimento foram pedidas à Directoria Nacional da P.J. as seguintes informações:  

–  se é procedimentalmente correcto e/ou lícito um inspector ter na sua arma funcional munições denominadas de treino, isto é, não tóxicas;

–  a indicação, com menção das circunstâncias de tempo e lugar, sobre as armas e munições desaparecidas desde o ano 2000 até ao presente e se alguma foi recuperada.

A resposta da Direcção Nacional consta de fls. 3567 e 3568 e é do seguinte teor: «… as munições em uso na Polícia Judiciária com a designação de não tóxicas são de utilização exclusiva para treino em carreiras de tiro fechadas (indoor), sendo apenas fornecidas nas sessões de treino, nas quantidades exatas para cada sessão. Por tal facto a sua utilização operacional é procedimentalmente incorreta e irregular.

Relativamente ao desaparecimento de armas e respectivas munições, do acervo da Polícia Judiciária, desde o ano 2000 e até à presente data, listam-se as seguintes ocorrências: Walther PP cal. 7,65

Walther PP cal. 9x17mm K

FN 140 DA cal. 7,65

Browning BDA cal. 9×19

HK P7 cal. 9×19

Glock 26 cal. 9×19

Nº ELR142 em 6/1/05 em Setúbal;

Nº FGU722 em 30/12/10 em Setúbal com 12 munições.

Glock 19 cal. 9×19

Nº ENU170 em 17/8/05 em Coimbra, com 24 munições e recuperada; Nº PBW136 em 6/11/12 no Porto com 14 munições».

Ainda sobre o facto de o telemóvel da arguida ter sido desligado por ela na tarde de 2111-2012 diz o Ministério Público que a história do vinho derramado no jantar do dia 19 surgiu devido à necessidade de a arguida e marido arranjarem um álibi para o caso.

E para demonstrar que o derramamento do vinho sobre ele não aconteceu nas circunstâncias referidas no julgamento o Ministério Público socorre-se dos documentos de fls.

789/793 e 809/813.

Os documentos de fls. 789/793 e 809/813 respeitam a duas cartas, iguais no conteúdo, ambas datadas de 11-2-2013, ambas remetidas e assinadas pela testemunha Carlos Jorge Almeida Gomes Coelho e dirigidas, respectivamente, para a «procuradora da república da 3ª secção do DIAP de Coimbra – A/C NUIPC 849/12.1JACBR» e para a «juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra – A/C NUIPC 849/12.1JACBR». Foram incorporadas no processo em 13-2-2013.

*

 Trata-se de documentos de autor conhecido, enviados para o processo e que aqui se mantêm, seguramente por terem sido considerados relevantes.

E de facto entendemos que o são, pois que nelas o seu autor pronuncia-se sobre as declarações que anteriormente havia prestado no processo e sobre as circunstâncias em que as mesmas foram prestadas.

Estas cartas foram, aliás, referidas por Carlos Coelho aquando do seu depoimento.  Apesar de a decisão já ir longa entendemos ser relevante consignar todo o conteúdo destes documentos, realçando o segmento referente à questão suscitada:

«… Carlos Jorge Almeida Gomes Coelho, cônjuge de Ana Alexandra de Andrade Tudela Saltão, arguida no processo supra identificado, vem, por esta via, apresentar a seguinte exposição a V.Ex.a.

Assim, o signatário foi inquirido no passado dia 24 de novembro de 2012, nas instalações da Diretoria do Centro da Polícia Judiciária pelo Sr. Inspetor José Cardoso. Tal inquirição ocorreu no próprio dia em que a avó do signatário foi a enterrar, sendo que em face da solicitação feita pelo mencionado inspetor pelas 11H00 daquele dia, tanto o signatário como a sua esposa, acederam, de imediato, a acompanhá-lo, tendo achado que a sua presença nas diligências a empreender seria imprescindível para o esclarecimento dos factos em investigação. Em face da prontidão com que se prontificou para acompanhar o Sr. Inspetor José Cardoso, o depoente acabou por não assistir ao próprio enterro da sua avó.

Foi, assim, num quadro de enorme transtorno psicológico que o signatário veio a ser inquirido, facto este que se agravou quando se apercebeu das suspeitas que impendiam no processo quanto à autoria dos factos.

A inquirição prolongou-se durante cerca de 6/7 horas, ao longo das quais se abordaram os factos em investigação, tendo sido elaborado o respetivo auto dado a ler ao signatário pelas 19H00/20H00, auto este que o signatário viu numa altura em que se encontrava já absolutamente desgastado com tudo o que ocorrera naquele dia, o que motivou que ali não ficassem esclarecidos alguns aspetos que o signatário crê serem importantes e que em seguida exporá.

Acresce que tais esclarecimentos advêm do facto de o signatário ter, entretanto, refletido sobre toda a factualidade atinente à situação em apreço, tendo chegado a determinadas conclusões.

Assim, no que se refere à situação económica do casal, cujos saldos bancários da conta conjunta foram, de imediato, disponibilizados à investigação, oferece-se dizer que era uma situação económica normal para dois funcionários públicos que sofreram, como todos os restantes, cortes remuneratórios relevantes, facto este que os levou a recorrerem à chamada conta ordenado e que disponibilizava cerca de € 2.000 (dois mil euros) adicionais ao vencimento auferido por ambos. Nunca ultrapassaram o valor da mencionada conta ordenado, sendo que o casal não possui, para além do empréstimo da casa (cerca de € 500 mensais) e do infantário da filha (cerca de € 300 mensais), quaisquer outros encargos fixos. A estes montantes juntam-se as normais despesas para manutenção da habitação, com um veículo e ainda com alimentação, isto no quadro de vencimento médio de € 1500 cada um.

Não era, de todo, uma situação económica grave, nunca tendo faltado qualquer bem essencial quer à filha do casal, quer ao próprio casal. Era uma situação económica imposta pela crise que o país atravessa e que levou aos cortes salariais sobejamente conhecidos, que o casal ia gerindo de alguns meses a esta parte, mas que procurava equilibrar, ainda que surgissem alturas com maiores gastos, momentos estes que adiavam o restabelecimento do total equilíbrio da conta bancária. Contudo existia a noção que o equilíbrio em causa rapidamente seria restabelecido.

Acresce, relativamente às despesas da sua esposa, que, ainda que em determinados meses as mesmas fossem mais elevados, eram sempre realizadas para aquisição de bens para a filha de ambos e para a casa, não realizando a esposa do depoente gastos pessoais com a conta do casal. Contudo, mesmo as despesas efetuadas com a conta conjunta sempre se mantiveram nos limites da supra mencionada conta ordenado, limite este que nunca foi ultrapassado.

Ainda relativamente à questão económica, oferece dizer-se que o casal titula, com a sua filha, uma contapoupança no Banco Espirito Santo, com saldo de € 5.000, sendo que, necessariamente, tal valor seria utilizado em caso de qualquer aperto financeiro, algo que nunca sucedeu até aos dias de hoje, por não se ter revelado necessário.

Já no que concerne às conversas entre o casal sobre as contas tituladas pela avó do signatário, de referir que se trataram de conversas absolutamente pontuais e mantidas há já bastante tempo, não tendo qualquer atualidade. De facto, em duas ou três ocasiões o signatário e a sua esposa falaram nas contas bancárias em causa, contudo foram conversas que se ficaram por ali mesmo, sem qualquer relevância. O dinheiro era da avó do signatário e a mesma geria-o como bem entendia, não sendo o dia-a-dia do casal influenciado por esta questão. Por outro lado, não sendo o signatário herdeiro da sua avó, nem tendo tal expectativa, essa questão não fazia parte do dia-a-dia do casal.

Ainda no que concerne à situação económica do casal, ambos tinham perfeita consciência de que se alguma situação inopinada ocorresse e que conduzisse a gastos extra, sempre existiria alguém que os poderia ajudar, como era o caso da sua avó, o que aconteceu em duas ocasiões, a primeira com € 500 e a segunda com € 1.000 (para fazer face a obras ocorridas no prédio do casal). Este empréstimo, como já resulta da inquirição realizada ao signatário, encontrava-se a ser pago à razão de € 150 por mês. A avó do signatário sempre ajudou economicamente quando foi solicitada para o efeito, pelo que, não vê o signatário razão alguma para, por motivação económica, imputar à sua esposa a prática dos factos em investigação. Ao invés, se se encarar a questão dessa forma, a avó do signatário apenas poderia ajudar economicamente enquanto estivesse viva, situação que já não ocorreria depois do seu falecimento, tal como acontece presentemente.

No que respeita à depressão sofrida pela sua esposa, de salientar que esta situação resultou de um cansaço pela mesma acumulado, proveniente, ao que crê o signatário, do facto de, a uma colega de trabalho do casal, haver sido diagnosticado, em março de 2011, um cancro em fase de grande desenvolvimento, fator este que, em face da grande amizade que a esposa do depoente lhe tinha, causou profundo abalo à sua esposa, levando a que a mesma passasse a dormir mal, em face da impotência que sentia por nada poder fazer para ajudar a sua amiga, mãe de uma criança que tinha 8 meses no momento em que lhe foi diagnosticado o problema oncológico em causa.

A sua esposa muito se envolveu, pessoalmente, para ajudar a sua amiga, comovendo-a muito a situação de o bebé poder ficar sem a mãe, o que comparava ao drama que seria a própria filha do casal perder a mãe. Esclarece que a sua esposa é muito agarrada à filha, sendo uma mãe inexcedível e muito preocupada com o futuro da mesma.

Assim, em Setembro de 2011, a esposa do depoente consultou um psiquiatra, tendo sido acompanhada pelo mesmo desde então. Saliente-se ter o depoente verificado enormes melhorias no estado de espirito da sua esposa, que se apresentava, ao longo do ano de 2012, francamente bem disposta e alegre, algo que poderá ser confirmado por todas as pessoas que lhe são mais próximas.

Para esta situação de total melhoria do estado de espírito da sua esposa, em muito contribuiu, igualmente, o convite que, a título profissional, a mesma recebeu para integrar o Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA), criado, na dependência da Polícia Judiciária, em setembro de 2012. Esta integração constituiu, para a esposa do signatário, um forte ânimo em face de se sentir a avançar na sua carreira, pois os critérios de seleção para a integração neste projeto, que acompanhava desde dezembro de 2011, foram muito rigorosos, sentindo-se a esposa do depoente muito recompensada profissionalmente.

Por este motivo, por ter sido um culminar de um projeto desenvolvido pela Procuradoria-Geral da Republica, por via do chamado projeto Fénix, e pela integração que lhe foi designada para o mencionado GRA, a esposa do depoente encontrava-se substancialmente mais bem-disposta e fortemente empenhada em iniciar o seu trabalho no novo projeto.

No que concerne à relação entre a sua avó e a sua esposa, o signatário deseja assinalar que a mesma sempre foi absolutamente cordial, nunca tendo existido, entre ambas, qualquer situação de atrito ou conflitualidade, bem pelo contrário. Os contactos eram mantidos nos almoços que de tempos a tempos o casal, juntamente com a sua filha, fazia em casa dos pais do signatário em Coimbra, nunca tendo existido qualquer desavença entre a sua esposa e a sua avó. Ao invés, o relacionamento era, como supra foi referido, absolutamente cordial e amistoso, não existindo qualquer motivo, por mais leve que fosse, para que a sua esposa praticasse os factos que lhe são imputados.

Já no que respeita ao dia dos factos em investigação, 21 de novembro de 2012, o signatário refere que falou com a sua esposa pela manhã, tendo-lhe aquela dito que acabara de deixar a filha de ambos no infantário. Mais tarde, em hora que não sabe precisar, mas que sabe ter sido durante a tarde daquele dia, tentou ligar-lhe mas o telemóvel da mesma encontrava-se desligado. Não pode deixar de esclarecer que não tentou ligar para o n.º de casa, 309803630, uma vez que depreendeu que a sua esposa estaria a descansar, por imposição do médico que a observara na antevéspera, em face de estar em fase de recuperação da operação pela mesma realizada no dia 13.11.2012, na qual retirou um enorme tumor benigno do útero, estando em convalescença pós operatória.

No dia 21 de novembro de 2012 o signatário esteve a trabalhar, como já declarou para os autos, entre as 09H00 e as 17H30, sendo que uma vez saído do trabalho, se dirigiu para uma consulta de rastreio auditivo, que teve lugar na Rua da Boavista, no Porto. Pelas 19H15 chegou a casa, tendo passeado com sua cadela alguns minutos. Pouco depois de ter regressado a casa, a sua esposa chegou, acompanhada pela filha do casal, tendo-lhe referido que havia ido ao supermercado.

Mais recorda que disse à esposa que lhe tinha telefonado para o telemóvel à tarde e que o mesmo dava sinal de desligado, tendo-lhe a mesma referido que, para além da peça lateral partida, já há 2 dias que o mesmo se andava a ligar e a desligar sozinho, situação começara a ocorrer desde o fim de semana, altura em que o signatário havia entornado um copo de vinho em cima do telemóvel.

Este facto pode ser confirmado pelo signatário, pois que, efetivamente, entornou, num jantar do fim de semana anterior aos factos, um copo de vinho em cima do telemóvel da sua esposa, tendo, na ocasião, tentado limpar aquele aparelho, secando-o com o secador. A sua esposa disse-lhe que desde então o telemóvel se vinha desligando sozinho, o que o signatário aceitou em face de lhe ter já ocorrido um problema semelhante com um telemóvel e que causou, precisamente, que o aparelho que utilizava na ocasião apresentasse o mesmo problema de se desligar sozinho ou, sem motivo, ficar sem rede de um momento para o outro.

De referir que na chegada a casa, a esposa do signatário apresentou um comportamento e uma postura absolutamente normal, tendo seguido a rotina habitual, empreendendo a elaboração do jantar, ou seja, manteve um comportamento perfeitamente adequado a quem, nesse dia, havia, de facto, permanecido em casa todo o dia, comportamento incompatível com a prática dos factos que lhe são imputados.

No que respeita aos quilómetros realizados pelo veículo do casal entre os dias 11 de novembro de 2012, data do ultimo abastecimento de gasolina, e o momento em que o signatário entrou para o carro, para se deslocar para Coimbra, depois de haver sabido da morte da sua avó, altura em que verificou que o veículo tinha uma autonomia de 330 quilómetros, o signatário reconstruiu, com mais calma, as deslocações feitas pela viatura durante aquele espaço de tempo, apresentando, em seguida, valores de distâncias que, empiricamente, crê serem minimamente aproximados à realidade.

Assim, de esclarecer que quando o veículo é abastecido e atestado, o mesmo fica com uma autonomia de 660 a 800 quilómetros, sendo a autonomia apresentada pelo veículo variável em face do consumo médio anterior à utilização do veículo. Considerando que o veículo era, normalmente, conduzido pela sua esposa, que apresentava índices de consumo médio mais elevados, é normal que a autonomia pós abastecimento do dia 11 de novembro (feito pela sua esposa) fosse próxima dos 660/700 quilómetros.

Depois deste abastecimento, e sempre com valores de percurso aproximados e nunca exatos, o signatário sabe que a sua esposa se deslocou, no próprio dia 11 de novembro à Perafita – Matosinhos, à loja Leroy Merlin, com um trajeto total aproximado a 30 quilómetros, ida e volta. Dia 12 de novembro, o veículo ficou com a esposa do signatário, enquanto este veio trabalhar. Não sabe quantos quilómetros foram efetuados.  No dia 13 de novembro, a esposa do signatário foi operada tendo o veículo feito a deslocação de ida e volta ao Hospital Privado da Trofa, num trajeto aproximado a 50 quilómetros. Nos três dias seguintes, 14, 15 e 16 de novembro, o signatário foi trabalhar, tendo utilizado o veículo do casal para se fazer transportar para o trabalho. Atendendo a que o trajeto são cerca de 25 quilómetros, ida e volta, perfaz cerca de 75 quilómetros de utilização nestes três dias.

No domingo, dia 18 de novembro o casal foi a Matosinhos, tendo feito cerca de 40 quilómetros, em trajeto de ida e retorno e outra volta dada naquela localidade.

Na segunda-feira, dia 19 de novembro, a esposa do depoente teve que se deslocar à Trofa, por forma a ser observada pelo médico que a operara na semana anterior. O trajeto foi Maia-Trofa/Trofa-Porto (Avenida dos Aliados)/algumas voltas no Porto/Porto-Maia, num total de cerca de 85 quilómetros.  Na terça-feira, dia 20 de novembro, a esposa do signatário deslocou-se ao Hospital Privado da Boa Nova, em Perafita, para uma consulta da filha do casal, sendo este trajeto de cerca de 25 quilómetros.

A totalidade destes trajetos perfaz cerca de 305 quilómetros, sendo que a esposa do depoente terá feito outros quilómetros nos dias 11 e 12 de novembro, quilómetros estes que o depoente não sabe especificar quantos. Acrescem, ainda, outras deslocações feitas pela esposa no dia nos dias 20 e 21, por exemplo, para ir buscar a filha ao infantário e ainda demais voltas necessárias ao normal do dia-a-dia.

Esta totalidade de quilómetros, associada aos 330 quilómetros que apresentava o veículo de autonomia no dia 21 de novembro de 2012, à noite, perfazem, no mínimo, cerca de 635 quilómetros, valor aproximado aos 660/700 quilómetros que a veículo poderá ter apresentado de autonomia depois do abastecimento do dia 11 de novembro, o que leva o signatário a mostrar-se certo de que o veículo do casal não se poderá ter deslocado a Coimbra no dia 21 de novembro, viagem esta que por si só implicaria uma deslocação de cerca de 260 quilómetros, ida e volta, sendo que a ter sido efetuada tal deslocação, o veículo apresentaria uma autonomia muitíssimo inferior aos 330 quilómetros indicados.

Deseja, por fim, acrescentar que, tendo já um matrimónio de 8 anos com a sua esposa, tem plena convicção e certeza de que a mesma jamais mataria alguém. O signatário confia, inteiramente, na sua esposa, tendo certeza de que não poderá sido ela a autora do homicídio que vitimou a sua avó, pessoa contra quem nada a movia, que a sua esposa sabia perfeitamente ser absolutamente querida do signatário e a quem, por todos os motivos e mais este, nunca faria qualquer mal».

Aqui a testemunha Carlos Coelho refere que o jantar decorreu no fim de semana e em tribunal a testemunha e a arguida disseram que foi no dia 19-11-2012.

             E a propósito cumpre, agora, fazer constar o que disse a arguida sobre o caso.

 Ana Saltão começou dizendo que o marido lhe contou que a avó emprestou dinheiro duas vezes: uma vez 1.000 € e outra 500 €. Ele disse que durante um almoço em casa dos pais comentou que tinham que fazer obras no prédio onde habitavam e que a avó se ofereceu para lhe emprestar dinheiro para as obras. Disse, também, que andavam a pagar os empréstimos a prestações mas que a vítima dizia que era para pagar quando pudessem.

Perguntada se tinha conhecimento da situação económica da vítima disse que não. Perguntada se alguma vez tinha ouvido falar de contas poupança que ela tivesse disse que ouviu falar que ela teria poupança no banco mas ninguém sabia os valores depositados e que a ideia é que era pouco dinheiro.

Sobre a sua saúde disse que teve dois acompanhamentos médicos no ano de 2012.

Em Março de 2011 foi detectado um cancro nos intestinos a uma colega e grande amiga, da sua idade, e quando descobriram a doença deram-lhe dois anos de vida. Ficou muito chocada com toda a situação, começou a colocar-se na posição da amiga e foi ficando cada vez mais desgastada. Em Julho de 2011 estava muito cansada, não conseguia dormir, e decidiu ir procurar um psiquiatra. O médico receitou-lhe um anti-depressivo e um comprimido para tomar à noite mas não tomou nada porque pensava poder melhorar nas férias. Não melhorou, em Setembro voltou ao médico e ele receitou-lhe Cipralex e Lorenin para a noite. Com a medicação ficava mais sonolenta, à noite dormia e ficou mais calma.

Disse que tinha miomas no útero e que um deles, que estava muito próximo do canal vaginal, começou a entortar o útero e a provocar hemorragias. O ginecologista que a acompanhava disse que tinham que tirar o mioma e a intervenção ocorreu em 13-11-2012. Antes o médico disse-lhe que dependendo do que encontrasse ou o tiraria por via endovaginal ou por barriga aberta: no primeiro caso teria que estar de cama uma semana e no segundo pelo menos um mês.

Até ao dia 17 esteve na cama, só se levantava para ir ao quarto de banho e os seus pais estiveram em sua casa até esse dia 17. O médico disse-lhe que depois destes 5 dias se começasse a levantar, que andasse devagar, porque se andasse mais depressa poderia rebentar os pontos, que evitasse estar sentada mais de 20 minutos e que não pegasse em pesos. No dia 19 foi à consulta e o médico deu-lhe baixa mais quinze dias.

Ainda sobre o dia 19 disse que nesse dia ela e o marido fizeram anos de casados, o marido meteu um dia de férias, depois da consulta foram almoçar os dois ao Porto e depois do almoço foram buscar a filha às 17h30.

Perguntada se soube do desaparecimento da arma da colega Liliana disse que sim, que foi em Novembro, e que estava a sair com uma colega daquilo que chamam a “sala aquário”. Explicou que se trata de uma sala no meio, com vidros para uma sala e para outra, onde normalmente está o inspector chefe, ao lado estavam a arguida e a colega Rute, atrás é tudo parede e só tem passagem para dentro do hall comum à sala da chefia e a outra sala que fica do lado de lá do aquário. Disse que da sala não há visibilidade nem para a sala da Liliana nem para o corredor.

Sobre o facto de terem, ou não, que ter a arma de serviço sempre consigo disse que os instrutores de tiro lhes diziam que deviam andar sempre com a arma mas que ela própria e alguns colegas não andavam com a arma e que a deixavam no módulo de gavetas da secretária.

Perguntada se as suas gavetas se abriam sem chave disse que não.

Disse que já desapareceram armas, que apareceram sempre mas esta não apareceu.

Quando ela e a colega Ana Monteiro estavam no vão de escadas onde se podia fumar a Liliana saiu, muito aflita, do gabinete e disse que não encontrava a arma. Pensaram que ela a tinha deixado em casa e que não se lembrava. Ela foi a casa verificar e os colegas também foram aos carros ver se a arma estava em algum.

Continuou e disse que depois do dia 19 a sua rotina se alterou porque começou a andar e a fazer as coisas. Como estava em casa os horários da filha alteraram-se todos.

Sobre o dia 21-11-2012 disse que o marido saiu à hora normal e ela foi levar a filha ao infantário, entre as 9h/9h30. Depois falou com o marido, ele disse que ia ter uma videoconferência de manhã e a arguida disse-lhe que ia para casa descansar.

Foi para casa, almoçou, decidiu deitar-se na cama e vestiu o pijama. Depois lembrou-se de ir ver o correio: manteve o pijama vestido, pôs por cima o blusão apreendido e calçou umas sapatilhas. Quando desceu encontrou a vizinha Sofia Reis e cumprimentaram-se. Subiu, tomou um Victan, deitou-se e pôs o despertador para as 18h, hora a que se levantou.

Nesse dia 21 foi buscar a filha às 19h30, porque no dia anterior tinha abusado e decidiu não ir buscar a filha cedo porque se estivesse com ela tinham que brincar e não o podia fazer. Quando chegou a casa o marido já estava.

Sobre os factos de Coimbra disse que soube à meia-noite, quando o marido lhe foi dizer à sala que recebera um telefonema da mãe a dizer que a avó tinha aparecido assassinada em casa com tiros. Ele estava em choque, a tremer e a arguida disse-lhe para telefonar para o piquete para Coimbra para confirmar. O marido telefonou, identificou-se e a colega confirmou que era verdade. O marido perguntou também quem é que estava no local, pois conheciam quase todos os colegas de Coimbra e tinham os telemóveis pessoais, e quando soube que era o inspector Cardoso telefonou-lhe.

Disse ao marido para virem todos para Coimbra mas ele disse que vinha sozinho e veio cerca da 1h da manhã. Ao longo da noite o marido foi telefonando a dar conta do que ia sabendo: disse-lhe que foram recolhidas treze cápsulas 9 mm, que a avó tinha sido encontrada na sala, que não havia desalinho.

Perguntada se nesta altura não fez a associação com as munições que a P.J. usa disse que não porque todos os dias havia assaltos no Porto com aquelas munições.

O marido regressou ao Porto e disse-lhe que não havia suspeita nenhuma.

No dia 22, por volta das 17h/17h30, telefonaram ao marido da P.J. dizendo que iam ao Porto para a arguida e o marido entregarem as armas e se era possível irem à directoria entregálas. Achou isso normal.

Telefonou a uma amiga para ir para sua casa tomar conta da filha.

Sobre a entrega das armas disse que foi buscar a sua à sua gaveta, que abriu com a chave, desmuniciou a arma, que tinha 15 munições, guardou as munições na caixa e entregou tudo por volta das 9h da noite.

Perguntada sobre o percurso que teve na P.J. disse que, depois de tomar posse como inspectora, esteve dois anos numa brigada de homicídios e crimes sexuais em Ponta Delgada.

Depois ela e o marido regressaram ao continente, foi primeiro para a contrafacção de moeda e passados uns meses para a corrupção.

Perguntada se nesses dias que antecederam os factos limpou o carro disse que não, mas que o carro estava sempre limpo: uma vez por mês ia limpar por dentro e por fora e quase diariamente sacudia os tapetes e limpava os estofos e os vidros com toalhetes. Nesses dias não fez esta limpeza mas o marido fez.

Perguntada a causa das lesões que tinha na mão disse que se tinha queimado no dia 19 à noite: quando estava a fazer a omeleta tocou com a mão na frigideira e queimou-se.

Continuou dizendo que ela e o marido foram ouvidos no sábado dia 24. Estavam à espera desta inquirição e também a acharam normal. Aconteceu no dia do funeral: quando chegaram ao cemitério apareceu o inspector Cardoso que pediu para eles o acompanharem.

Perguntada sobre a busca feita à sua casa disse que no dia 24 estiveram a ser ouvidos todo o dia: a inquirição da arguida terminou por volta das 14h e a do marido por volta das 23h. Quando a inquirição do marido acabou a arguida foi chamada à sala do chefe da brigada dos homicídios e este disse-lhe que achava que ela estava fortemente envolvida no homicídio da avó do marido. Depois perguntou-lhe se ela não se importava de falar com o inspector Cardoso, respondeu que não, foi para a sala dele e ele disse-lhe o mesmo.

Depois perguntaram-lhe se podiam ir fazer uma busca à sua casa, respondeu que sim e foram de seguida, mas primeiro passaram pelo cemitério para entregarem o carro, que tinha lá ficado. Foi-lhes perguntado se precisavam de alguma coisa que estivesse no carro e disseram que precisavam dos sacos com a roupa e produtos de higiene. Tiraram os sacos e puseram-nos na mala do carro da polícia, foram para a Maia e o inspector do Porto que estava de piquete foi contactado. Quando chegaram ele já estava à espera.

E seguiu-se o relato da diligência de busca.

A arguida disse que subiram e que «aquilo foi assim muito esquisito, foi muito rápido, quer dizer, ninguém saiu da sala sequer». Perguntado se não era para andarem à procura de provas respondeu «pois, mas não procuraram nada». À observação que tinham que ter procurado, se foram ao quarto, abriram as gavetas, armário, respondeu que «ninguém saiu da sala … O inspector Cardoso perguntou há alguma coisa que vocês tenham aqui em casa que queiram entregar. Nós dissemos não e ele então sentou-se na mesa da sala e começou a redigir o auto … Depois de ter redigido o auto começou a preencher os cabeçalhos e depois perguntou quantas divisões tem a casa e nós fomos descrevendo … e ele foi escrevendo. A seguir escreveu nada foi encontrado com interesse para os autos».

Reafirmou que estiveram todos na sala: o inspector Cardoso estava sentado, o segurança estava ao lado dele e estava o inspector chefe Mota Gonçalves e não fizeram busca nenhuma.

Perguntado quando é que ele recolheu as coisas respondeu que ele não recolheu nada.

Depois de terminado o auto assinaram todos, ele arrumou o expediente numa pastita preta A4, levantou-se e depois disse «ah é verdade, tu lembraste que roupa é que usaste no dia 21. Eu disse lembro porque foi a roupa que eu usei praticamente a semana toda por causa de ter estado aqui por casa. Ah, então podes ir buscá-la. E eu está bem. Então fui eu ao quarto, ficou toda a gente na sala, fui eu sozinha ao quarto buscar as calças de ganga, depois regressei, fui à lavandaria buscar as sapatilhas … e fui ao cabide que temos no hall da entrada buscar o casaco. E depois embrulhei aquilo tudo e pousei em cima do sofá e disse foi esta a roupa que eu utilizei. A camisola já não me lembro qual foi. E ele depois perguntou-me e não tens por aí um saco para por estas coisas todas. Eu disse tenho, arranja-se. E fui, voltei, sempre sozinha, fui à cozinha, entrei na despensa e procurei um saco».

Perguntada que saco tinha levado respondeu «um saco de plástico simples … de compras. Depois coloquei as sapatilhas, coloquei as calças, coloquei o casaco e entreguei-lhe e ele levou e fomos todos embora de casa».

Depois o inspector Cardoso pôs o saco na mala do carro e foram para a Figueira, onde a filha estava.

Sobre o resultado da perícia feita ao seu blusão disse que os resíduos só podiam ter chegado por contaminação, que podia ter ocorrido de várias formas: por um lado andava sempre com aquele blusão, usou-o até ao dia 23, e era com ele que ia, por exemplo, a esquadras; no dia em que foi entregar a arma ao Porto esteve a mexer em munições; o marido também mexeu nas munições e quando chegaram a casa ele pôs o blusão por cima do seu; no dia 24 esteve doze horas nas instalações da Directoria de Coimbra, depois foi transportada num carro da polícia e quando chegou a casa foi buscar o blusão e pô-lo dentro do saco. Terminou dizendo que, apesar disto tudo, achava que a contaminação tinha acontecido nos procedimentos: a roupa que entregou andou na mala do carro, sem cuidados nenhuns, o blusão esteve sempre a ser manuseado e a roupa não foi colocada dentro de um saco de prova.

Sobre dizer-se que ela escondeu as mãos quando os inspectores Coutinho e Rainho foram à Figueira no dia 26 disse que no sábado anterior esteve todo o dia com o inspector Coutinho, das 11h da manhã às 11h da noite, e que ele não reparou em ferida nenhuma na mão.  Perguntada se alguma vez se feriu a disparar respondeu que não e que nunca soube da existência de lesões ocorridas em tais circunstâncias.

Ainda sobre o dia 19 disse que depois da consulta foi almoçar com o marido ao hotel Inter Continental, no Porto. Perguntada se nesse dia, em que andou no Porto entre as 14h e as 17h06, se alguma vez sentiu desconforto, a arguida disse que abreviaram o almoço porque não conseguia estar mais tempo sentada, que deram uma volta nos Aliados, não andaram muito a pé nem de carro, foram fazer uma massagem de relaxamento, que tinha sido comprada antes, e que a sua teve que ser feita muito devagar. Foram buscar a filha por volta das 17h30 e seguiram para casa. Quando chegaram a casa foi-se deitar e depois foi fazer o jantar e esta foi a primeira refeição que cozinhou depois da intervenção.

Quando estavam a jantar o marido entornou o copo de vinho para cima do seu telemóvel. Perguntada se também tinha bebido vinho ao jantar disse que sim e perguntada se tinha bebido vinho ao almoço disse não se recordar.

Por causa daquele derramamento o telefone deixou de funcionar bem e passou a desligar-se, mesmo tendo a bateria carregada. Isto aconteceu logo no dia 19 e continuou depois.

Por referência à informação fornecida pela TMN perguntada porque é que no dia 21 aparece a informação de equipamento desligado disse que nesse dia esteve a dormir toda a tarde e não deu conta que o telefone tinha desligado e que durante a tarde o ligou duas vezes. Disse, ainda, que no seu telemóvel o cartão entra de lado e tem uma patilha para o prender e se o telefone andar na carteira e o cartão deslizar deixa de apanhar rede. Levantou-se por volta das 18h e decidiu ir buscar a filha. Entretanto antes foi a um Continente em frente à sua casa para comprar mangas. Não comprou porque estavam verdes e demorou mais porque se começou a sentir mal. Só depois foi buscar a filha. Estava descansada com a hora porque o infantário só fechava às 19h30.

Foi-lhe referido que no dia 21, às 18h17 (fls. 747) houve um telefonema do marido (nº 964149061) para o telefone de casa e perguntada porque é que não atendeu disse que aquele telefone toca muito baixo e se, por exemplo, estiver no seu quarto não o ouve.

Perguntada quem é que fez o jantar no dia 21 respondeu «faço lá ideia …».

Quando chegou a casa o marido disse que lhe tinha tentado falar duas vezes e que não tinha conseguido. Tirou o telemóvel da carteira, verificou que ele estava desligado e passou-o ao marido e disse para ele o arranjar porque tinha sido ele estragá-lo. Ele ligou o telemóvel e foram dar banho à filha.

Tiveram conhecimento da morte da avó do marido por volta da meia noite. Perguntado porque é que ele só soube naquela hora respondeu que ele também tinha o telefone desligado, que o ligou para accionar o despertador e foi nesse momento que começaram a entrar as mensagens de tentativas de chamadas.

Sobre a entrega das armas disse que no dia 22, cerca das 17h/17h30, o inspector Cardoso ligou para o marido, disse que iam à Directoria do Porto e se a arguida e marido se podiam deslocar lá para entregar as armas. Disseram que sim, marcaram o encontro para as 19h30/20h e foi à hora a que chegaram. Na altura do telefonema o marido estava a dormir e a filha estava na escola.

Telefonou à amiga Teresa e pediu-lhe para ir tomar conta da filha lá em casa. Ela disse que só conseguia chegar às 19h30 e foi a esta hora que foram para a polícia. Antes foi buscar a filha à escola e chegou ao infantário por volta das 19h e que o encontro estava marcado para as 20h.

Disse que foram no seu carro e que não pararam para limpar o carro. Nesse dia também não limpou o carro.

Sobre o dia 23 a arguida disse que foram ao velório, mas antes foram à Figueira levar a filha a casa dos seus pais. Quem conduziu foi o marido: veio sentada de lado e tiveram que parar duas vezes no caminho.

Perguntada que roupa vestia disse que usou um vestido preto, collans pretas, botas pretas e gabardine preta. Perguntada se tinha alguma gola disse que sim e que a gola era pequena e justa.

Perguntada se na altura falou com a tia Albertina disse que falou um bocadinho. Perguntada se falou sobre prováveis autores do crime enquanto ali esteve disse que esteve atenta a certos comportamentos mas que não opinou sobre isso com ela. As conversas que teve sobre isso foram apenas com o marido.

Perguntada se conhecia os irmãos da vítima respondeu da seguinte forma: «conhecia dois, conhecia aquele indivíduo que anda sempre no bingo, aquele senhor que foi guarda prisional durante muitos anos». Aqui foi perguntada pelo nome e respondeu que era o Armelim, que estava lá e disse que também conhecia uma outra senhora que eles chamam Carma e que se chama Maria do Carmo.

Perguntada se achou alguma das pessoas que lá estavam estranha disse que achou o Armelim mais agitado e que comentou isto com o marido.

Sobre o dia 24 disse que antes de entrarem no cemitério o inspector Cardoso disse que queria falar com eles. O marido perguntou se podia ser mais tarde e ele disse que se pudesse ser de imediato era bom.

Sobre o blusão peritado repetiu que ele estava na entrada, que o foi buscar sozinha e que introduziu todas as peças no saco de plástico, que depois foi guardado na bagageira do carro da polícia. Na bagageira estavam as suas malas de viagem, uma mala cinzenta da inspecção judiciária e uma pasta do inspector Cardoso.

Disse ter a certeza absoluta que as suas coisas não foram metidas num saco PEB e todas as pessoas presentes viram. Todos viram porque todos estiveram o tempo todo na sala.

Mostrada à arguida o doc. de fls. 2192 – que contém a fotografia da parte traseira do veículo da P.J. Citroen C4 matrícula 18-DV-62 com a porta aberta -, ela disse que foram para a Maia num Peugeot verde, que tinha uma bagageira semelhante à da fotografia e que tinha uma mala de inspecção cinzenta, brilhante e muito mais pequena que a da fotografia. Perguntada se lá estavam armas de fogo disse que não.

*

O Ministério Público alega, depois, que o tribunal recorrido errou ao decidir que a arguida não conseguiria estar na casa da vítima entre as 15h53 e as 16h19, por ter sido vista no hall da entrada do prédio onde habita cerca das 14h30 porque o tribunal entendeu, sem que tivesse sido feita qualquer prova, que ela levaria entre 10 e 20 minutos a arranjar-se para sair.

Sobre isto a testemunha Ana Sofia Guedes Vaz Figueiredo Pires Silva Reis declarou ser vizinha da arguida e que no dia dos factos se cruzou com ela, circunstancialmente, no hall de entrada do edifício onde ambas habitam. Disse que a empregada que tinha, que ia de manhã para ficar com a filha, na véspera tinha-lhe dito que estava doente e que nos dias seguintes não iria. No dia 20 ela não foi e no dia 21 também não. Neste dia a filha tinha explicação de matemática em casa e teve que pedir aos pais para irem para sua casa. Depois foi almoçar a casa, quando chegou já estavam a almoçar e a filha foi para a escola com os pais de uma vizinha e colega de escola. Ficou mais um pouco a adiantar o jantar e a certa altura olhou para o relógio e decidiu ir embora.

Disse não saber a que horas saiu de casa, disse ter a certeza que às 14h ainda estava em casa, acha que saiu entre as 14h e as 14h30, mas mais perto das 14h30. E foi quando saiu que viu a arguida.

Perguntada como é que estava a arguida disse que estava «com um ar normal … descontraído … sapatilhas, calças tipo fato de treino ou coisa do género …» e com um kispo escuro comprido. Exibido à testemunha o blusão apreendido ela respondeu não garantir que fosse aquele que a arguida tinha. Disse que no dia 21 não a voltou a ver e que a viu no dia seguinte, no infantário, por volta das 19h: quando chegou a arguida estava a por a filha no carro e contou-lhe o que tinha acontecido à avó do marido. Também por isto sabe o que fez no dia anterior. Na semana seguinte foi contactada por um advogado que disse ser advogado da arguida e que lhe perguntou se se tinham cruzado no dia dos factos. Nessa altura meditou sobre o que tinha feito nesses dias: sabia que a tinha encontrado dois dias seguidos e que no segundo dia ela lhe tinha falado no homicídio e por aqui conseguiu reconstituir o que tinha feito.

Para demonstrar o erro da decisão tomada o Ministério Público também alega que o tribunal decidiu, sem qualquer prova, sobre a intensidade do trânsito que havia nesse dia em cada um dos locais considerados e que um veículo gastaria pelo menos 20m no trânsito das duas cidades.

Ao invés, defende que o que é seguro é que no dia 3-12-2012 os inspectores Machial Pinto e José Faustino demoraram 2h04 e no dia 4-12-2012 demoraram 2h da Maia para Coimbra e no dia 3-12-2012 demoraram 2h22 de Coimbra para a Maia, sendo que nenhum desses percursos foi feito em auto-estrada.

António Jorge Machial Pinto, inspector da P.J. na brigada de homicídios da Directoria do Norte, declarou que foi incumbido de colaborar na investigação deste processo, isto no dia 2611-2012. Inquiriu a encarregada do infantário onde a filha da arguida estava e uma vizinha da arguida, fez duas buscas domiciliárias à casa da arguida, pensa que nos dias 27 e 28 de Novembro, e fez três percursos automóveis, dois entre a porta de casa da arguida até à porta da casa da vítima e um no sentido inverso para o infantário.

             Perguntado se era instrutor de tiro disse que sim e que era mestre atirador.

 Relativamente às inquirições que fez perguntado se a equipa que estava à frente do processo forneceu alguma coisa para levarem para a inquirição da senhora do infantário respondeu que na primeira inquirição não tinha qualquer material ou suporte e que na segunda inquirição levou fotografias, que foram exibidas à testemunha, fornecidas pela investigação de Coimbra, da roupa apreendida à arguida. Explicou que no dia 26 esteve em Coimbra e que as fotografias foram facultadas ou pelo inspector Rainho ou pelo inspector Cardoso. A segunda inquirição não foi acordada e a sua realização ficou ao seu critério.

Sobre as buscas disse que na primeira busca apreenderam um casaco de penas comprido e sapatilhas, na segunda visaram produtos de limpeza e que ambas foram acompanhadas por Carlos Coelho. Perguntado de onde recolheu cada uma das peças disse que as sapatilhas estavam num armário que existia num anexo da cozinha e que o casaco estava num guarda-fatos ou roupeiro, existente num quarto, que acha que era da criança. Perguntado se havia casacos no quarto do casal respondeu que havia muita roupa nesse quarto. No quarto da filha também havia bastante roupa de adultos. Perguntado se havia casacos, blusões em algum desses quartos disse que acha que essa roupa estava no quarto da criança.

Sobre a medição do tempo do percurso entre a porta da residência da arguida e a porta da residência da vítima disse que fez as viagens acompanhado do inspector José Faustino num carro novo, pensa que um Peugeot 308, a gasóleo, fornecido pela Directoria do Centro.

Sobre como é que fez o percurso e porque é que o fizeram apenas por estradas nacionais disse que não havia registos de passagem em auto-estrada e a investigação entendeu que se deveria considerar o percurso susceptível de deixar menos rasto e o que demorasse mais tempo. Esclareceu que é possível circular em auto-estrada sem deixar rasto mesmo tendo via verde: se se utilizar uma saída de cartão a via verde não regista.

Perguntado quem lhe solicitou a diligência respondeu que a partir do momento que o incumbiram de prestar colaboração foi a testemunha e o seu colega que decidiram fazer essa diligência e que as horas de início de cada viagem não foram escolhidas aleatoriamente. No percurso para cima foram para o infantário para contabilizarem o tempo deste percurso.

Preocuparam-se em fazer o percurso como uma pessoa normal, com calma e sem transgredir. Houve períodos complicados de tráfego, com camiões: no IC2, na zona de Lourosa, Santa Maria da Feira e São João da Madeira havia muito trânsito. No percurso também havia muitas zonas de controlo de velocidade com radares e semáforos.

Disse que tudo o que mencionou no auto corresponde ao que aconteceu. Para o horário consignado considerarem os respectivos relógios, que foram sincronizados no início.

Declarou, ainda, ser instrutor de tiro na Directoria do Norte desde 1998. Perguntado se deu instrução de tiro à arguida disse achar que não. Perguntado que armas é que os formandos usam na carreira de tiro respondeu que usam as armas que lhes estão distribuídas. Perguntado se isso é verificado respondeu que há controlo disso, feito pelo instrutor de tiro: o instrutor vê a arma e regista o atirador e a arma que ele usou.

Sobre os outros procedimentos que seguem disse que a indicação que é dada é que cada pessoa se apresente com coldre, arma e os dois carregadores vazios. Perguntado como é que se apresentam disse que normalmente se apresentam segundo as normas. Perguntado se as pessoas levam as suas munições nas armas disse que não porque sabem que não as podem usar. Perguntado se é normal levarem os carregadores municiados respondeu que isso pode acontecer mas que é uma excepção: a regra é levarem os carregadores desmuniciados. Perguntado como fazem quando levam os carregadores municiados disse que desmuniciam na primeira sala e que as guardam, que não ficam por lá espalhadas: dada a sua experiência sabe que cada pessoa guarda as suas munições porque é responsável por elas.

Sobre a carreira de tiro disse que há um plano de tiro com 90 tiros, isto é, que uma sessão de tiro determina que se disparem 90 tiros. Começam a 15 metros e fazem dois carregadores a esta distância; depois faz-se um carregador a 10 metros; depois outro carregador a 5 metros e fazem um exercício final, em que respondem a uma ameaça, em que fazem tiro instintivo. Por cada estímulo fazem um duplo disparo: saque e dois disparos, saque e dois disparos, sempre.

Perguntado se há alguma situação em que fazem mais de dois disparos seguidos disse que por vezes no último exercício podem fazer três. O depoente disse que controla os disparos que cada um faz, vê quantas munições cada um ainda tem e no último estímulo diz para despejarem o carregador. Aqui pode acontecer que alguém tenha três munições e, então, fará três disparos.

Perguntado quantas munições leva um carregador disse que o padrão é de 15, embora haja alguns de 17. Disse que as Glock 19 têm carregadores de 15, 17 e mesmo de 30 munições. O padrão da P.J. é carregadores de 15, que podem ter extensão e levar mais duas.

Na carreira de tiro o tiro é dado sempre a duas mãos. Perguntado porque é que não há nenhum exercício de disparar as 15 munições de uma vez respondeu que o entendimento, que o também tem, é que em termos de eficácia de treino isso é contraproducente: enquanto instrutor de tiro entende que isto não é o melhor para aquilo que se pretende, que é treinar o saqueempunhadura, saque-empunhadura, porque este gesto perfeito é meio tiro feito em situação de stress, que é o normal quando têm que fazer tiro operacional. Quem tiver destreza neste movimento de sacar e empunhar a arma em condições é meio caminho andado. Na P.J. o que se pretende não é fazer tiro de precisão mas treinar a capacidade de reacção: o que querem é incutir a rotina de fazer aquele gesto automaticamente para o fazerem em condições quando houver necessidade de o fazer. Disse que ele próprio faz muito este treino de saqueempunhadura e que treina muito este gesto em seco.

Disse que o normal na P.J. é fazerem duas sessões de tiro por ano, que por vezes não é exequível, e que quem faz o planeamento é o colega Vitor Teixeira.

Perguntado se despejar o carregador numa só empunhadura provoca alterações na empunhadura disse que sim, que quem não tiver firmeza na empunhadura vai perdendo a empunhadura e a arma vai saltando.

Perguntado se com uma boa empunhadura é possível a arma provocar uma lesão na mão disse que é possível se a arma trepidar e que isso pode acontecer. Disse que já viu lesões na mão provocadas por uma Glock e com uma empunhadura correcta. Em tiro prático já viu isso muitas vezes. Quanto à lesão disse que é uma escoriaçãozita na mão.

Perguntado o que é o tiro prático disse que é atirar a 18 alvos, que se podem mexer. O atirador pode partir com a arma no coldre e a partir do bip/início tem que fazer a sequência o mais rápido possível, por exemplo há pistas feitas em 4 segundos.

Usam muito a frase «deixaste a arma morder a mão» precisamente quando ocorrem lesões na mão. A lesão é provocada pela corrediça: a arma vai recuando, não se vê porque passa naquela zona da mão a grande velocidade, e vai ferindo.

Mostrada à testemunha as fotografias de fls. 120 – são as fotografias da mão direita da arguida, nas quais se vê uma lesão -, disse que a lesão que se vê era compatível com as lesões que referiu.

Perguntado se o dedo se pode mover no gatilho respondeu que o dedo tem que se mover senão a arma não recupera, não arma e não se consegue fazer tiro. O dedo está sempre a controlar o gatilho, o que não é fácil de fazer.

Perguntado se os atiradores limpam as armas no final disse que as instruções são nesse sentido e que são cumpridas: as armas são limpas em sala própria e em regra protege-se sempre a roupa com uma bata, porque mexem em óleos. A regra é usar-se bata e luvas. Perguntado se usam luvas aquando dos disparos disse que nunca viu ninguém usar luvas na instrução de tiro.

 José António da Silva Faustino, inspector da P.J. na Directoria do Norte, brigada de homicídios, declarou que conhecia a arguida por se cruzar com ela nas instalações.

Disse, também, que todas as diligências que fez no processo as fez em conjunto com o colega Machial Pinto.

Sobre as buscas disse que participou em duas onde apreenderam dois kispos: um estava na entrada e o outro estava no quarto da menina. Perguntado se também havia casacos e este tipo de roupa no quarto do casal disse que a roupa do casal estava essencialmente no quarto do casal.

Perguntada sobre a arma de fogo que lhe está distribuída disse que tem uma Glock calibre 9mm, modelo 19. Quando vai à carreira de tiro é a sua arma que usa. Os planos de tiro que têm é de duas sessões por ano. Perguntado se também leva os seus carregadores para a carreira de tiro disse que leva os seus carregadores, mas vazios: faz sempre assim e disse ter instruções nesse sentido. Perguntado onde deixa as suas munições disse que as deixa na caixa de munições na sua secretária. Perguntado se os colegas levam as munições que têm e as trocam na carreira de tiro disse que todos os elementos da sua brigada, com quem faz as sessões, desmuniciam a arma antes de irem para a carreira de tiro.

Perguntado de usa roupa especial na carreira de tiro disse que usa a sua roupa, mas tira o casaco se o tiver, e que usa roupa especial e luvas para limpar a arma. Todos os elementos da sua brigada também têm este procedimento.

Perguntado se alguma vez se aleijou na carreira de tiro com a arma disse que não e que nunca viu colegas fazerem lesões. Disse que um dia viu um suicida com lesão na mão feito pela arma. Quando há lesão acha que ela é provocada por a corrediça trilhar devido à posição da arma na mão.

Sobre as medições do trajecto Maia-Coimbra e Coimbra-Maia, disse confirmar o que fizeram constar. Teve conhecimento dos factos no dia 26 e o director incumbiu-os de apoiarem a investigação.

Telefonaram para Coimbra e depois foram ter com o marido da arguida a Anadia e foi este que contou em pormenor o que se tinha passado. Recorda-se que até o alertou que para além de polícia era marido da arguida e não tinha que contar nada.

Disse que o marido da arguida contou as suspeitas que tinha e disse em que é que elas se baseavam: no facto de a arguida, na data dos factos, ter tido o telemóvel desligado desde a manhã até à noite, o que não era normal, e que só tinha ido buscar a filha por volta das 19h30, o que também não era normal; depois, segundo o marido, ele tinha enchido o depósito do carro e que no dia 19 teria ido com a mulher a uma consulta e depois, quando ocorrem os factos e estava para vir para Coimbra constatou que o combustível que tinha só dava para cerca de 300/400 km; depois, que a arguida limpou as portas do carro com toalhetes e quando a confrontou com isso ela respondeu-lhe que estava a limpar o carro porque o seu pai tinha estado no local dos factos e tinha andado no carro e que podia ter transportado resíduos para este.

A determinado momento deste depoimento a defesa afirmou que o depoimento da testemunha tinha sido encomendado pelo inspector José Cardoso.

Depois, quando se ouviu que a testemunha não podia falar sobre isto por se tratar de depoimento indirecto, o senhor juiz disse que a testemunha podia falar, que o tribunal já tinha ouvido a pessoa em causa e que valoraria cada um dos depoimentos no momento próprio.

Visto o auto da diligência de cronometragem do percurso, de fls. 404 a 406, resulta que a primeira viagem foi entre a porta do prédio onde a arguida reside e a porta do prédio onde a vítima residia, que saíram às 14h19, que a viagem foi feita pela Av. D. Manuel II, Praça Professor Doutor Vieira de Carvalho, Av. Visconde Barreiros, Via Norte, EN14, VCI-Arrábida, IC2, EN1, saída para Coimbra/centro/oeste, Rua da Figueira da Foz, Rua de Aveiro, Rua Infante D. Henrique, Rua da Saragoça, Rua António Vasconcelos e Rua doutor António José de Almeida, nº 86, onde chegaram às 16h23, tendo percorrido 130,4 km. Consta que o tempo estava bom, que havia grande intensidade de tráfego, sobretudo de pesados, em toda a IC2/EN1 e que a velocidade máxima imprimida foi de 130 km/h.

                                        Depois fizeram a viagem de regresso. Saíram às 17h, seguiram pela Rua Dr. António

José de Almeida, Travessa Moura e Sá, Rua Nicolau Chanterene, Rua António Vasconcelos,

Rua da Saragoça, Rua de Aveiro, Rua da Figueira da Foz, Circular Externa, IC2/EN1, IP1, VCIFreixo, Via Norte/EN14, Via Periférica da Maia, Av. António dos Santos Leite, Rua Dr. Augusto Martins, Rua Augusto Simões, Av. D. Manuel II, Rua dos Jacintos e terminaram na Rua dos Carvalho, nº 100, junto ao infantário, onde a arguida foi buscar a filha, onde chegaram às 19h22.

                                   Estas viagens foram feitas no dia 3-12-2012.

 No dia 4-12-2012 foi feita nova viagem Maia-Coimbra, iniciada às 14h15, feita pelas mesmas vias da primeira e terminada às 16h15.

Perante tudo isto conclui o Ministério Público que era possível à arguida, e contrariamente ao decidido, fazer o percurso referido de molde a estar em Coimbra à hora em que o crime ocorreu.

Acrescenta o Ministério Público que se este foi o tempo demorado no percurso feito pela estrada nacional, evidentemente que o percurso feito em auto-estrada demoraria muito menos tempo e que não seria detectado a menos que fosse utilizado o identificador da via verde. E o identificador associado ao veículo da arguida não foi utilizado.

E sobre isto cumpre dizer, conforme alega o Ministério Público, que as informações que constam do processo referem que as câmaras de vigilância instaladas nas auto-estradas não gravam, salvo pedido prévio, em sentido contrário, que as câmaras de vídeo do Sistema de Gestão de Tráfego do Porto não tinham sistema de gravação e que se as viaturas equipadas com aparelhos de Via Verde utilizarem as portagens de via Manuel não ficam registadas passagens nos identificadores.

Diz também o Ministério Público que a viagem por auto-estrada seria muito mais cómoda para a arguida, que tinha sido submetida a uma intervenção no dia 13-11-2012.

Ainda a propósito desta questão refere o Ministério Público que o marido da arguida começou por dizer que na noite de 21 para 22-11-2012, quando pegou no veículo para vir para Coimbra depois de saber da morte da avó, estranhou quando verificou que este apenas tinha autonomia para 330km. No entanto, em audiência, explicou todas as voltas que o carro tinha dado nessa semana justificadoras do gasto do combustível.

Pergunta o Ministério Público como é que alguém repara e valoriza um pormenor se não o achar estranho, se tem uma explicação imediata para ele? Se isso acontecer não valoriza, claro.

*

 Se seguida, e relativamente ao estado de saúde da arguida, diz o Ministério Público que a decisão recorrida concluiu que ela não poderia ter feito as viagens entre a Maia e Coimbra por a sua situação física não permitir, chamando a atenção para o facto de que o que relevava para a decisão era não saber se a arguida estava em condições ideais de saúde, mas sim saber se, fisicamente, ela poderia ter feito a viagem. E considerando as rotinas que tinha começado a encetar – com viagens frequentes de carro e permanência durante longos períodos fora de casa -, a conclusão é que estava em condições de fazer a referida viagem.

Sobre isto, e face à matéria já vista, concordamos com o Ministério Público quando diz que se a arguida se sentisse tão desconfortável como pretendeu fazer crer não teria tido os comportamentos acima referidos. E para esta conclusão basta atentar, como o Ministério Público também chamou a atenção, para a matéria dada como provada no acórdão recorrido e que enumerámos sob os nºs 40 a 59 (fls. 3679, 3680 e primeiros dois parágrafos de fls. 3681 do processo).

O que isto demonstra, continua o Ministério Público, é que o estado de saúde da arguida evoluiu favoravelmente, como o médico que a assistiu reconheceu, de tal modo que lhe permitiu fazer tudo aquilo que o acórdão refere.

Quanto aos elementos invocados a propósito a fls. 966 consta uma “declaração médica” assinada por José Vidal Pinheiro, médico, e datada de 13-12-2012, onde este diz que fez à arguida uma miectomia uterina no dia 13-11-2012 e que no dia 19-11-2012 a observou em consulta pós operatória, onde lhe deu «mais 15 dias de baixa médica, em virtude de a achar debilitada e necessitar de mais repouso para uma convalescença adequada».

A fls. 2735 consta uma outra declaração sua, onde refere que a arguida teve alta hospitalar no final do dia 13, apesar de estar prevista a alta para o dia 14.

A fls. 2673 e 2457 estão os elementos clínicos relativos à arguida enviados pelo hospital da Trofa, onde ela foi intervencionada, dos quais consta que a intervenção começou às 10h15, que terminou às 11h30, que a arguida saiu do bloco operatório às 13h50 e que teve alta no mesmo dia 13-11-2012.

José Alexandre Nunes Vidal Pinheiro, médico especialista de ginecologia e obstetrícia, perguntado se seguiu e operou a arguida disse que a arguida era sua paciente desde 2008, que depois surgiu um fibroma intra-uterino e que a operou em 13-11-2012.

Perguntado disse que a arguida levou anestesia geral e que todas as operações que visam tirar fibromas intra-uterinos são delicadas devido às perdas de sangue. Disse que no mesmo acto lhe fez uma colporrafia e que nesta levou pontos ao nível da entrada da vagina. A pessoa a movimentar-se mexe aquela zona e se não tiver cuidado na movimentação pode levar a que a cicatrização não se faça bem.

Perguntado da alta do dia 13 disse que a arguida estava bem e deu-lhe alta, que é o procedimento normal. Sobre a previsão de alta para o dia 14 explicou que previne sempre a pessoa que pode haver um dia de internamento, porque pode haver alguma situação que obrigue a pessoa ficar, e por isso normalmente escreve a alta para o dia seguinte à operação.

Sobre os cuidados que disse à arguida para ter, disse-lhe que não devia fazer esforços exercício físico, pegar na filha, arrastar móveis, não devia correr, devia controlar a amplitude dos movimentos da perna, porque até podia abrir a cicatriz. Disse que na semana seguinte viu a arguida, como faz sempre, e que ela estava bem.

Entretanto foram referidas as declarações constantes de fls. 2564 e 660. Perguntado em que dia viu a arguida disse que a viu no dia 19, 2ª feira, e que a referência ao dia 20, a fls. 2564, não estava correcta.

             Sobre isto constata-se que a declaração de fls. 660 é igual à de fls. 966, já vista.

 Quando à declaração de fls. 2564 dela consta que a arguida, no dia da consulta, se apresentava com astenia e com dores na cicatriz operatória e que foram dados mais 15 dias de baixa com recomendação para não fazer esforços, inclusive não permanecer muito tempo sentada por causa dos pontos.

O depoente disse que faz sempre uma consulta aos doentes que opera na semana seguinte à operação. Perguntado se nesta consulta teria aconselhado a arguida a conduzir nos dias seguintes disse que não a aconselharia a fazê-lo. Disse não saber se abordou a questão mas uma vez que lhe disse como devia entrar e sair do carro deve ter falado nisso. Para entrar no carro disse que recomendou à arguida que devia sentar-se primeiro e que depois rodar as duas pernas juntas para o interior.

A situação estava a evoluir normalmente e a arguida estava como ele achava que estaria.  Mais tarde, quando já estava detida, viu a arguida no hospital da Trofa.

Neste momento foi junta ao processo uma declaração datada de 20-12-2012, emitida pela testemunha sobre a consulta, onde diz ter-lhe feito um exame ginecológico, que a colporrafia tinha cicatrizado bem, que o útero estava bem e que o resto do mioma estava bem, que os pontos não tinham rebentado e os bordos não se separaram.

Perguntado se perante todo o quadro era possível a arguida ter vindo a Coimbra no dia 21-11-2012 disse que isso poderia reflexos na cicatriz, poderia rebentar os pontos, poderia provocar sangramento e mais dores. Disse que no caso usou uma sutura absorvível, por a zona ser frágil e para não ter que mexer outra vez, que os fios absorvíveis têm menos resistência do que aqueles que são de tirar e, por isso, o rebentamento é mais fácil.

Perguntado se os solavancos de um carro poderiam provocar rebentamento dos pontos disse que não.

Disse que outra das recomendações que lhe fez foi de desinfectar a zona, pelo menos de manhã e à noite.

A operação correu com normalidade e o único problema que surgiu, que acontece neste tipo de cirurgia, foi ter que parar a extracção do mioma: este tipo de cirurgia tem um tempo limite para ser feita porque há risco de a paciente fazer edema agudo do pulmão. Foi por isso teve que parar.

Nestes casos, quando não se consegue tirar tudo na mesma operação tiram o resto de uma segunda vez. No caso não fez segunda interveção porque, depois, verificou que não era necessário.

*

                                    O recurso refere, de seguida, a limpeza que a arguida fez ao seu veículo.

 Diz-se que não obstante o marido da arguida não ter reconhecido que no dia 21 esta tivesse demorado mais de 1h a ir buscar a filha ao infantário e que tivesse chegado com o carro limpo, ele reconheceu que o inspector Cardoso lhe telefonou pelas 17h15/17h30 para se deslocarem à Directoria do Norte, que estavam os dois em casa, e que chegaram atrasados ao encontro, marcado para as 19h30. Do mesmo modo não assumiu que quando chegaram à directoria que a mulher limpou os vidros da frente do carro.

Disse que o tribunal deu credibilidade a este depoimento apesar de a testemunha dizer que a mulher saiu de casa às 18h e ter chegado ao infantário apenas às 19h.

E convocou o depoimento da testemunha Raquel, que disse que no dia 21-11-2012 a arguida foi buscar a filha depois das 19h30, o documento de fls. 1501, que é o mapa de assiduidade da filha da arguida de 13 a 23-11-2012, bem como o depoimento do inspector Cardoso, que declarou que telefonou a Carlos Coelho cerca das 17h.

Sobre a limpeza do veículo no dia 22-11-2012 o Ministério Público socorre-se do depoimento da testemunha Carlos Coelho, que reconheceu que o inspector Cardoso lhe telefonou pelas 17h15/17h30 e que a hora combinada para a entrega foi as 19h30, sendo que chegaram apenas às 20h09. Aquele também reconheceu que chegaram atrasados ao encontro mas disse que o atraso foi devido, por sua vez, ao atraso da amiga Teresa, que não chegou a ser ouvida, que chegou tarde a sua casa.

O que é certo é que a arguida foi buscar a filha às 19h.

Depois, e apesar de já estarem atrasados, a arguida ainda limpou o carro quando chegaram à Directoria do Norte da P.J.

Concretamente sobre a questão a testemunha Carlos Coelho disse que nesta viagem o carro estava tão limpo como estava antes. Perguntado se que quando chegaram à P.J. a arguida sacudiu os tapetes, se usou os toalhetes, respondeu do seguinte modo: «no trajecto eu ia a conduzir e verifiquei que o vidro do lado estava cheio … das narizadas da minha cadela. Ela quando põe lá o nariz aquilo fica molhado mas depois seca. À noite o sujo nota-se muitíssimo mais por causa das luzes amarelas. Eu recordo-me antes de chegar à P.J. do Porto há um cruzamento do lado direito, nós temos que olhar para ver se vem um carro ou não, e eu lembrome de ter olhado … para o lado e de o vidro estar baço e pedi à Ana, normalmente, olha pega aí num toalhete e limpa o vidro. E foi só». Esclareceu que a janela em causa era a do pendura.

Perguntado se a arguida não falou da necessidade de limparem o carro por o pai do depoente ter lá andado disse que não, que tinham falado da questão de o seu pai ter andado no carro mas que a conversa ficou por aí. Perguntado se falaram da possibilidade de haver resíduos de disparo dentro do carro por o pai do depoente ter estado no local do crime e dentro do carro respondeu «poderemos ter abordado essa questão, agora não me recordo ao certo, eventualmente … mas se abordamos foi en passant».

Neste particular foi dado como provado que no dia 22-11-2012 a arguida e marido foram contactados pela P.J. para se deslocarem à Directoria do Norte, a arguida foi buscar a filha ao infantário e só pelas 19h é que a foi buscar, depois dirigiram-se às instalações da Directoria do Norte e aí chegados ao saírem do carro a arguida limpou os vidros das portas da frente. Só depois é que entraram nas instalações, pelas 20h09m (factos 81 a 85).

A fundamentação desta matéria foi a seguinte: «No que diz respeito à alegada limpeza do carro por parte da arguida não existe qualquer prova nos autos, nem foi produzida em sede de audiência de julgamento, donde resulte que a arguida no dia 22.11.2012 foi lavar a viatura, não podendo a não prova deste facto servir de prova do mesmo. Por outro lado, quando à limpeza do vidro do carro o marido da arguida foi peremptório quando admitiu que foi ele que pediu à esposa que limpasse com toalhetes o vidro. Sendo certo que estas declarações têm sempre que ser analisadas com especiais cuidados, a verdade é que não existe prova que contrarie tal versão dos factos».

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           II – APRECIAÇÃO DA PROVA ANALISADA

            E conhecida a prova referida cumpre, agora, apreciá-la.

A verdade que se busca no processo, mesmo no processo penal, não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível e o juiz, que não é divino, não consegue alcançar um tal patamar.

Não obstante a nossa lei processual conter espartilhos que, por vezes, impõem a verdade formal, o que se busca no processo é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática, e obtida não a todo o preço mas de forma processualmente válida [14].

E porque a verdade do processo é a verdade da vida, a verdade alcançada, que é diferente da verdade absoluta, também a demonstração da verdade no processo não equivale a uma demonstração científica: «na sua actividade de testar a correcção da hipótese de trabalho o cientista pode recorrer à reprodução do facto ou cadeia de factos objecto do seu estudo … o fenómeno reproduzido não é numericamente o mesmo uma e outra vez; mas essa pluralidade não prejudica uma unidade fundamental: pertencem todos à mesma classe, tipo ou género de fenómeno. E, sobretudo, ao cientista interessa-lhe precisamente a classe de fenómeno – não cada facto na sua singularidade irrepetível. Ou todos eles têm em comum aquela propriedade ou tendência que pretende provar, ou cada um deles passará a interessar-lhe apenas como eventual elemento de uma outra (hipotética) cadeia de sentido.

Não assim no caso do investigador-juiz. Para verificar a correcção de um enunciado factual (leia-se, para dar como provado certo facto) não pode reproduzir o comportamento objecto da sua indagação – trabalha com fenómenos irrecriáveis. E, acima de tudo, importa-lhe menos (numa primeira fase) aquilo que aquele

“retalho de vida comunitária” tem eventualmente em comum com outros, do que a correcta apreensão dos traços configuradores da situação sub judice, na sua individualidade (ou unidade numérica).

O julgador não “quer” os factos para tentar induzir uma regra geral; nem possui, à partida, uma tese que pretenda ver confirmada naqueles factos. “Quer” os factos em si mesmos, para depois poder confrontá-los com as regras de que é detentor: as normas jurídicas (que valem independentemente do “realmente acontecido” em cada caso)» [15].

Nas questões humanas não há certezas científicas. Daí que não seja esta certeza científica que se persegue.

E daí que a prova seja, mais do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é livre.

A prova visa demonstrar a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do agente e apurar a pena ou medida de segurança aplicáveis – art. 124º do C.P.P.

O nosso legislador processual penal adoptou o princípio da não taxatividade dos meios de prova ao estabelecer, no art. 125º do C.P.P., que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei». Se uma concreta prova não constar do elenco das provas proibidas significa que ela é permitida e pode, portanto, ser legalmente considerada para efeitos de formação da convicção com vista à decisão da matéria de facto.

Dentre os meios de prova realça-se a prova testemunhal, a prova pericial, já muito debatida e a prova documental.

A prova testemunhal, a chamada rainha das provas, é aquela que resulta do relato feito por terceiro – pessoa estranha ao processo -, sobre os factos relacionados com o processo de que tem conhecimento directo.

Dentre as limitações mais relevantes deste meio de prova contam-se as intrínsecas à testemunha e as inerentes ao julgador.

Quanto à testemunha temos a sua credibilidade, a consistência e a fiabilidade.

O desvalor da prova testemunhal tem que ver com o falso testemunho, com o esquecimento, a falsa memória (assunto pouco tratado), donde resulta a eventual desconformidade entre o relato e a realidade.

Porém, esta desconformidade nem sempre se pode apelidar de mentira e nem todas as mentiras têm a mesma motivação: há a mentira social, a mentira piedosa, a mentira forçada pelas circunstâncias e a mentira dolosa, que remete directamente para o falso testemunho.

Quanto às limitações inerentes ao julgador temos o seu quadro de referências, as crenças, opiniões.

Finalmente, temos uma outra limitação relevante, transversal a todos quantos participam no processo e podem interrogar as testemunhas: a inteligência com que fazem as perguntas, a capacidade de ir percebendo que perguntas são importantes, a forma respeitadora, mas incisiva e determinada de perguntar, a inadmissibilidade de perguntas sugestivas, impertinentes, capciosas, cujo objectivo essencial seja não a descoberta da verdade, mas levar a testemunha a dizer o que o inquiridor quer que diga ou, em última instância, a “destruir” da testemunha.

A perícia, já vimos, é o meio de prova utilizado quando a percepção ou apreciação dos factos exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

Documento é a declaração corporizada num suporte, inteligível para a generalidade das pessoas, de emitente conhecido, e que seja idónea a provar um facto juridicamente relevante. Para além disso tem que reportar-se a um acto exterior ao processo. As representações de actos do processo são autos, não documentos.

Dentre as provas que, embora não expressamente prevista, é legal e diariamente utilizável, porque não é prova proibida, avulta a prova indirecta.

A prova directa é a que se refere imediatamente aos factos probandos, aos factos a provar. A prova indirecta refere-se a factos instrumentais mas que possibilitam, com o auxílio de regras da experiência, da ciência, da técnica, extrair ilações sobre os factos a provar [16]. Da prova indirecta retira-se, por raciocínio alicerçado nessas regras, o facto probando: a prova do facto reside na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova.

Sobre o procedimento probatório relativo a esta prova, é claro que não existe porque se trata, digamos de uma prova que resulta das outras provas.

Ela parte da análise de todas as outras provas, das “respostas directas” já obtidas relativamente a certas questões e das respostas que se vão obtendo em relação àquelas que ainda estavam em aberto, respostas estas resultantes das ligações que se vão descobrindo ao longo da análise que se faça das provas. Deriva da análise das demais provas e resulta do raciocínio feito sobre estas: parte dos acontecimentos apurados e retira, através de deduções e induções, os outros factos.

«A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (v.g., a prova directa – impressão digital – colocada no objecto furtado permite presumir que o seu autor está relacionado com o furto; da mesma forma, o sémen do suspeito na vítima de violação). Aliás, é importante que se refira que a prova indiciária, ou o funcionamento da lógica e das presunções, bem como das máximas da experiência, é transversal a toda a teoria da prova, começando pela averiguação do elemento subjectivo de crime, que só deste modo pode ser alcançado, até à própria creditação da prova directa constante do testemunho (a intenção de matar infere-se da zona atingida; da arma empregada; da forma de utilização)» [17].

As chamadas regras da experiência podem ser de duas categorias: «as regras da experiência de conhecimento geral ou, dito por outra forma, as regras gerais empíricas cujo conhecimento de pressupõe existente em qualquer pessoa que tenha um determinado nível de formação geral e, por outro lado, as máximas da experiência especializada cujo conhecimento só se pode supor em sujeitos que tenham uma formação específica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte. Usando tais regras da experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras da experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.

As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu» [18].

Dito de outro modo, a prova indirecta assenta nos indícios e os «indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra» [19].

«Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir, a todo o custo, a existência deste tipo de provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente a tortura» [20].

Porém não podemos esquecer que a prova indiciária é uma prova de probabilidade, tal como as máximas da experiência, que são regras extraídas de casos semelhantes, que não pertencem ao mundo dos factos.

O valor dos indícios é muito variável. Um indício revela com tanto maior segurança o facto probando quanto menos consinta a ilação de factos diferentes. Quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa – facto indiciante – o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova directa. Quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma destas causas prováveis é também somente um indício provável ou possível e para lhe dar consistência à prova é necessário afastar os condicionamentos possíveis 22.

É a inteligência que associa o facto-indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; depois intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, a inferência assumirá maior ou menor eficácia probatória. Esta associação, inerente à prova indiciária, leva alguns a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova directa e testemunhal, pois nesta também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho 23.

 

 

Nos termos do art. 127º do C.P.P. excepto quando a lei disser o contrário «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Isto significa que na actividade de apreciação da prova o juiz está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

E aqui o juiz não só pode utilizar as regras da experiência de conhecimento geral, as regras gerais empíricas cujo conhecimento se pressupõe que uma pessoa com um nível de formação geral tem, mas também as máximas de experiência especializada cujo conhecimento será restrito, por regra, a sujeitos com determinada formação específica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte. E usando-as o juiz pode socorrer-se livremente das regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação 24.

«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência» 25. 

Sobre a prova por declarações a valoração desta prova depende, para além do conteúdo das concretas declarações prestadas, também do modo como as mesmas são assumidas pelo

                                               

22  Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, pág. 288 e segs.

23  Mittermaier, Tratado de la Prueba em Materia Criminal.

24  Acórdão do S.T.J. de 6-10-2010, proferido no processo 936/08.JAPRT, relatado pelo sr. conselheiro Henriques Gaspar, citando Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ nº 112, pág. 190.

25  Acórdão do S.T.J. de 23-2-2011, processo 241/08.2GAMTR, relatado pelo sr. conselheiro Santos Cabral.

declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade do depoente. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada – afirmada ou negada – no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, na averiguação cuidadosa da motivação e do interesse de cada um nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos estavam concertados, no sentido de alteração da verdade ou de criarem de uma realidade virtual.

Como se sabe a convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o número de afirmações feitas para cada lado, não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios, tal como não exige coincidência absoluta entre os depoimentos relevados.

Para que um qualquer facto se tenha por provado não basta que as testemunhas se pronunciem num determinado sentido, tendo o juiz que aceitar, necessariamente, esse sentido ou versão, assim como a concordância dos depoimentos não é prova da sua veracidade.

No entanto, como a liberdade de apreciação não é sinónimo de arbitrariedade, o juiz tem sempre uma margem de liberdade de apreciação mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo:

«os três primeiros são limites endógenos ao exercício da apreciação da prova, no sentido de que condicionam o próprio processo de formação de convicção e de descoberta da verdade material. O último é um limite exógeno, no sentido de que condiciona o resultado da apreciação da prova» [21].

Ou seja, o princípio da presunção de inocência é uma regra de direito probatório e o princípio in dubio pro reo é uma regra de decisão que intervém quando não se alcança a convicção para além de toda a dúvida razoável sobre os factos desfavoráveis.

Quando o julgador não alcance aquela convicção essencial sobre a prática dos factos, uma convicção objectivável e motivável, não pode condenar.

Do mesmo modo não é uma qualquer dúvida que permite a convocação do princípio do in dubio para decidir. À certeza objectivável e motivável tem que corresponder uma dúvida igualmente objectivável e motivável: a dúvida que leva o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, por outras palavras, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal [22].

Mas assim como o processo penal não procura a verdade científica, também a dúvida que se opõe à convicção não pode ser desta natureza.

Produzidas as provas cabe ao juiz apreciá-las, apreciação esta subordinada à lógica, à psicologia, às máximas da experiência, e tirar, a final, as conclusões, ou seja, formar a tal convicção de que fala a lei.

Conforme nos diz Bacon os testemunhos não se contam, pesam-se [23]. Por isso nada obsta a que um determinado facto se tenha por provado apenas com base nas declarações de um participante processual, que pode ser uma testemunha, o assistente, o arguido, tudo dependendo da credibilidade que deva ser atribuída a essas declarações, a apreciar, como diz a lei, «segundo as regras da experiência comum e a livre convicção». É a qualidade da prova, em contraponto com a quantidade, que tem o papel decisivo na formação da convicção do julgador. Do mesmo modo um qualquer depoimento poderá ser considerado todo verdadeiro ou todo falso, tal como se poderão aceitar certas partes como verdadeiras e afastar outras.

Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que mais não é do que a opção por uma das versões em conflito no processo. Não sendo opção do julgador não decidir, terá ele que fazer a sua opção de acordo com as regras enunciadas [24].

Finda a apreciação da prova há que exteriorizar o juízo feito: este juízo, esta apreciação crítica das provas, tem que ser exteriorizada para que os destinatários directos da decisão e os cidadãos em geral tenham acesso ao processo decisório.

Daí ser indispensável que o juiz cumpra o dever constitucional de fundamentação adequada, consagrado no nº 1 do art. 205º, explicitando os motivos que o levaram a decidir.

É a motivação que constitui o mecanismo de controlo do processo de formação da convicção do tribunal, é a motivação que legitima a decisão, ou seja, é a motivação que legitima o poder judicial num Estado de Direito, pois que o que se exige é que o seu destinatário e a comunidade em geral percebam a decisão proferida, isto mesmo que com ela não concordem.

Sobre a fundamentação dispõe o art. 374º, nº 2, do C.P.P., que versa sobre os requisitos da sentença, que ela consiste na enumeração dos factos provados e não provados e na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Esta norma não se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, exigindo ainda a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal. É preciso que o tribunal demonstre como chegou a determinado resultado, sem que isso signifique, porém, que tenha que responder pormenorizadamente a cada argumento.

Conforme já decidiu o Tribunal Constitucional a norma citada impõe uma obrigação de fundamentação completa, de molde a assegurar a transparência do processo e da decisão: «”a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório”» [25].

Como a motivação da decisão não é um acto de fé, nem um puro exercício de íntima convicção, ela tem que ser exposta com absoluto respeito pelas regras e princípios legais de prova e de acordo com as regras da experiência e da lógica, tem que indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto dado como provado ou não provado [26].

O tribunal tem que indicar os factos que se provam, os que não se provam e a forma como alcançou essa conclusão, explicando porque deu relevo a umas provas e o negou a outras.

Ao fim e ao cabo a fundamentação é uma questão de transparência.

*

*

 Analisada a prova alcançámos o âmago, a essência da tese da arguida, compreensivelmente encabeçada e liderada pela testemunha Carlos Coelho, que assumiu o papel principal no processo ao posicionar-se num confronto directo com José Cardoso, que liderou a investigação ao homicídio de Filomena de Jesus Gonçalves: sendo ele quem tomou conhecimento directo do esquema montado pela investigação só ele podia denunciar esse esquema.

Na tese da arguida – sempre com base no depoimento de Carlos Coelho -, José Cardoso, na qualidade de responsável pela investigação do homicídio, montou uma cabala contra si, corporizada na acusação deduzida: inventou factos, inventou indícios demonstrativos dos factos inventados, falsificou provas, tudo com vista a que ela viesse a ser condenada pela prática de um crime que ele bem sabia que ela não tinha cometido.

                                   Esta foi a tese verbalizada.

Não obstante o acórdão recorrido não ter tirado esta conclusão, não obstante não ter acolhido toda a tese exposta, acolheu-a numa parte substancial e foi com base nela que decidiu.

Apontemos alguns exemplos desta afirmação:

–  teve o depoimento de Carlos Coelho como coerente e credível;

–  teve como “inverdadeiro” o depoimento de José Cardoso quando referiu ter tido determinadas conversas com Carlos Coelho;

–  teve o comportamento de José Cardoso como uma «quase obsessiva» intenção de incriminação da arguida;

–  considerou que Liliana Vasconcelos perdeu a arma de função que lhe estava distribuída e apenas referiu o furto para escapar a uma «quase inevitável» sanção disciplinar;

–  entendeu que a investigação partiu da conclusão de que a arguida era a autora do crime e só depois foi procurar as provas e este ponto de partida condicionou toda a análise;

–  apontou à investigação um incompreensível descuido que comprometeu irremediavelmente a preservação da cadeia de custódia da prova relativamente à prova pericial, anulando o seu valor probatório;

–  teve o inquérito que correu na Directoria do Porto da P.J. a propósito do desaparecimento da arma pouco credível, porque só apontou o furto depois da investigação ao crime o dizer;

–  imputou à investigação uma omissão consciente quanto às informações transmitidas à juíza do T.I.C.;

–  de entre os elementos que intervieram, no exercício de funções, na busca à residência da arguida e de Carlos Coelho apenas considerou o depoimento de Mota Cardoso porque entendeu que era a única testemunha que, por ter intervindo na diligência por inerência, «não

tinha qualquer interesse directo ou indirecto na mesma …».

No entanto, a tese verbalizada, que assenta quase exclusivamente no comportamento de José Cardoso, é a tese aparente.

A tese verdadeira é outra.

A verdadeira tese da arguida, sempre liderada – como já vimos que tinha que ser -, pela testemunha Carlos Coelho, dirige-se a toda a investigação, no sentido de que se dirige aos elementos da P.J. que participaram na investigação e mesmo a terceiras pessoas que, numa questão ou noutra, apoiaram a tese da investigação.

Antes de tudo há uma razão óbvia para esta afirmação: uma atitude isolada, de perseguição obsessiva, perpetrada apenas por José Cardoso nunca teria conseguido alcançar uma acusação contra a arguida. Uma atitude isolada, por muito firme e batalhadora que fosse, soçobraria porque, a determinada altura, ficaria apoiada, apenas, na tal atitude isolada.

Ao invés, para se alcançar a acusação era necessária uma actuação concertada de várias pessoas num mesmo sentido, de forma a que as diligências que fossem sendo realizadas, os depoimentos, que fossem sendo prestados, as informações que fossem sendo transmitidas ao processo apoiassem a tal atitude isolada e a densificassem, em termos tais que passasse a ser credível, por passar a ter um suporte probatório credível.

Só a colaboração de um grupo alargado de elementos da P.J., e de alguns terceiros, permitiria este resultado.

O que a tese verbalizada tem é o conforto de ter um alvo unipessoal e não confrontar toda uma instituição vocacionada para a investigação criminal com aquilo que, quiçá, de mais grave se lhe pode imputar: a falsificação de uma investigação.

             Mas, como dissemos, a tese verdadeira da defesa é outra.

            Passamos a explicar.

 Remontando às primeiras conversas entre as testemunhas Carlos Coelho e José Cardoso consideremos que Carlos Coelho não disse nada a José Cardoso e que todas as informações que este referiu ter recebido daquele são falsas.

            A primeira questão fundamental que surge é porquê: porque é que José Cardoso fez isso, porque é que tomou uma tal atitude tão inqualificável?          Para esta nossa pergunta não temos resposta.

A arguida não apresenta uma razão para o comportamento atribuído a José Cardoso.

De igual modo o acórdão recorrido também não refere qualquer motivação para uma tal atitude de José Cardoso.

Na senda de uma explicação perguntamos nós: a testemunha José Cardoso é uma pessoa desequilibrada, ou tinha graves conflitos com a arguida e/ou com Carlos Coelho, ou estava a ser confrontado pela chefia com a falta de resultados, ou estava em desespero porque a investigação ia longa e estava num impasse, ou estava a ter problemas profissionais graves que o levaram a fazer qualquer coisa para os reverter?

Nenhuma destas situações se indiciou. Sobre o impasse na investigação esta tinha, literalmente, começado no dia 21-11-2012 e as primeiras informações que José Cardoso disse ter recebido de Carlos Coelho datam do dia seguinte.

Se tudo se resumisse à atitude de José Cardoso – de inventar uma história, indícios, prova, com vista à condenação da arguida por um crime que ele sabia que ela não tinha cometido -, ou começavam de imediato a aparecer elementos de apoio a José Cardoso ou a investigação mudaria o objecto de análise. Esta afirmação é ditada pela lógica.

Mas a investigação manteve-se focada na arguida precisamente porque começaram a surgir indícios resultantes de diligências feitas por outras pessoas e de depoimentos prestados por outras pessoas que tinham a arguida como alvo.

Portanto, e ainda na tese da defesa, estas outras provas tinham que ter surgido para apoiar José Cardoso. Por isso a cabala, construída para conseguir a condenação da arguida por um crime que se sabia que ela não tinha cometido, passou a contar com a colaboração de outras pessoas.

Logo à partida temos José Faustino que ao dizer que Carlos Coelho afirmou, à sua frente, que a arguida era a autora do crime, ao dizer que ele invocou razões para fundamentar essa afirmação, quereria reforçar a tese de José Cardoso. Tanto que a defesa afirmou que o depoimento de José Faustino tinha sido encomendado por José Cardoso.

E também temos que considerar Carlos Almeida e Albertina Almeida, tios de Carlos Coelho, que afirmaram que o sobrinho lhes disse, mais do que uma vez, de modo afirmativo, seguro e convincente, que a arguida era a autora do crime.

E o que levaria estes familiares de Carlos Coelho a atribuir-lhe um tal comportamento, tanto mais que ambos se disseram próximos do sobrinho, afirmação que não foi posta em causa?

Portanto, e seguindo a lógica da defesa, também estas declarações pretenderiam reforçar a tese da investigação.

E esta colaboração ainda seria mais relevante se pensarmos que no eles disseram sobre a atitude que a arguida e o marido mantinham perante as respectivas famílias, do facto de saberem a situação económica da vítima e de Albertina Almeida ter revelado o conteúdo de conversas alegadamente mantidas com o sobrinho em que este lhe relatou, para além do mais, os problemas que tinha com a esposa e lhe falou de grande discussão que tiveram no dia do funeral da vítima.

Quanto ao furto da arma temos o depoimento de Liliana Vasconcelos, ao afirmar ter a certeza de que a sua arma lhe tinha sido furtada, bem como o de António David, dizendo que acreditou no que a colega disse devido à confiança que tem nela.

Ou seja, um desaparecimento resultante do descuido da possuidora da arma foi transformado, por mero interesse censurável da investigação, num furto, para o que estes depoimentos se revelariam essenciais.

Ainda em reforço da tese do furto temos as declarações do director da Directoria do Norte da P.J., Batista Romão, que disse, por exemplo, que toda a gente, excepção feita aos directores e inspectores, era controlada quando saía das instalações. No mesmo sentido falou Rui Abreu.

Diferentemente, Miguel Sousa disse que as pessoas que iam à Directoria do Norte da P.J. circulavam mais ou menos livremente nas instalações porque não havia pessoas suficientes para as controlar e quando foi perguntado se eram controladas à saída disse não saber. Esta resposta só pode querer significar que as pessoas não eram controladas, pois não crível que um funcionário desconhecesse uma tal prática se ela existisse.

E ainda no sentido de atribuir seriedade à investigação o mesmo Batista Romão, que durante 15 dias nunca colocou a hipótese de a arma de Liliana Vasconcelos ter sido furtada, que durante 15 dias descurou o facto – atitude que o tribunal disse só ser aceitável precisamente porque a hipótese de furto nunca foi posta -, de repente, sem qualquer razão objectiva, não só passou a tratar o desaparecimento como furto, como até classificou a investigação como de nível 4, isto em 2211-2012.

Isto é, o Director da Directoria do Norte da P.J. apenas terá considerado ter havido furto e que este tinha sido perpetrado por alguém que determinasse o nível 4 atribuído depois de ter sabido do crime cometido em 21-11-2012 e das informações prestadas por José Cardoso.

Agora, e quanto à ligação feita de o autor do crime pertencer à P.J. devido ao facto de a arma e munições com que o crime foi cometido serem usados apenas pelos elementos da P.J., a defesa afirmou, repetidamente, que as munições usadas no cometimento do crime não eram exclusivas da P.J., que havia disseminação quer de armas Glock quer das referidas munições na sociedade civil.

E sempre tendo por base a versão da arguida, também aqui a tese de José Cardoso teria tido apoios relevantes.

Desde logo temos, mais uma vez, o director da Directoria do Norte quando afirma que nunca tinham desaparecido armas de fogo daquela directoria.

E também o inspector Vitor Teixeira quando disse isto mesmo e quando disse que nunca viu nem no mercado negro, nem em feiras de coleccionadores, nem em exames feitos a munições apreendidas munições iguais às usadas no cometimento do crime, munições essas que eram iguais às distribuídas na P.J..

E outro apoio teria que ser atribuído à actuação do perito Mário Goulart, quando disse que no âmbito do seu trabalho nunca tinha analisado munições iguais às usadas no crime.

Ou seja, todos estes elementos quereriam manter a tese da investigação/acusação, reforçar a ligação entre o agente do crime e o interior da P.J. e refutar a alegada banalidade das munições usadas na perpetração do crime.

E aqui também não podemos esquecer a direcção da Directoria Nacional da P.J., ao informar que desde o ano 2000 tinham desaparecido 2 Glock 26 cal. 9×19 em Setúbal, uma em Janeiro de 2005 e outra em Dezembro de 2010; e 2 Glock 19 cal. 9×19, 1 em Coimbra em Agosto de 2005 e outra no Porto em Novembro de 2012.

Temos, depois, uma relevantíssima diligência que deu um forte impulso à investigação: falamos da inquirição da testemunha Carlos Coelho em 24-11-2012 levada a cabo por José Cardoso que, sempre com base na tese da arguida, consignou no auto aquilo que quis.

Mas para que a aparência fosse de legalidade contaria com uma ajuda muito importante. Falamos do inspector Jorge Coutinho, que conseguiu obter a assinatura do auto sem que Carlos Coelho o tivesse lido.

             Segue-se a “busca” realizada à casa da arguida de 24 para 25-11-2012.

             Mais uma vez José Cardoso não esteve sozinho.

José Romano apoiou o que ele disse, ao afirmar que o veículo usado na diligência foi o veículo que aquele indicou, ao dizer, também, que o veículo levava um determinado equipamento, ao dizer que fizeram buscas, ao dizer que as fizeram com luvas, ao dizer que os bens apreendidos foram colocados num saco PEB (recordando, o veículo foi posto em causa, foi posto em causa que levasse material de investigação – Carlos Coelho disse que não levava, a arguida disse que levava material diferente do referido -, foi afirmado, várias vezes, que ninguém saiu da sala, que ninguém usou luvas, que o material foi todo colocado num mesmo saco de plástico).

Mas há uma outra pessoa que também esteve na diligência e que corroborou, no essencial, o que José Cardoso disse. Falamos de Mota Gonçalves.

E Mota Gonçalves não disse, apenas, que a arguida foi buscar o blusão apreendido a um quarto. Disse também que todas as divisões foram percorridas, que quem fez a busca mais pormenorizada foi o inspector Cardoso, que este esteve praticamente em todas as divisões, que os dois elementos usaram luvas, que o material apreendido foi colocado num saco de prova, que as sapatilhas foram colocadas num saco de plástico e só depois no saco PEB.

Recordando o depoimento da arguida e da testemunha Carlos Coelho sobre a busca e todas as considerações feitas sobre a diligência temos o depoimento de Mota Gonçalves como particularmente importante no sentido de apoiar o que José Cardoso disse, isto é, no sentido de lhe dar credibilidade. E, perante a tese da arguida, sito só pode ter-se como apoio à tese de José Cardoso.

A defesa mencionou esta testemunha no sentido de ser a única credível mas ao fazê-lo certamente se esqueceu de parte substancial do que havia dito.

Do mesmo modo o tribunal teve esta testemunha como a única credível, no episódio em causa, e por isso apenas julgou provado que em 25-11-2012, pelas 00h15m, uma equipa da PJ se deslocou à residência da arguida onde a instaram a entregar a roupa que tinha usado no dia do homicídio, que a arguida entregou o já mencionado blusão, que foi buscar a um dos quartos, e também um par de calças de ganga, azuis marca Mango, e um par de sapatilhas pretas, marca Nike e que do exame feito no LPC verificou-se que apenas o blusão tinha resíduos compatíveis com disparo de arma de fogo (factos por nós numerado de 86 a 90).

Ainda a propósito desta diligência não podemos deixar de referir que o director da Directoria do Centro da P.J. enviou ao processo uma informação dizendo que o veículo usado na diligência foi, efectivamente, aquele que José Cardoso desde logo indicou.

Já sobre a preservação da genuinidade das provas e continuando a considerar a tese da defesa, em toda a sua abrangência, teriam colaborado, para além de José Romano e Mota Gonçalves, também Alcides Rainho, que descreveu todo o circunstancialismo que rodeou a colheita de fotografias ao material apreendido na busca, bem como os peritos João Freire Fonseca e André Saraiva, ao terem redigido o parecer que foi junto ao processo.

Passando para a possibilidade de o disparo de armas Glock provocar lesões na região tabaqueira da mão – liminarmente rejeitada por Carlos Coelho, pela arguida e por Miguel Sousa, que acabou por aceitar a sua ocorrência em casos muitos pontuais -, falaram Alcides Rainho, Vitor Teixeira, Sérgio Taipa, Machial Pinto e Batista Romão, todos eles dizendo que estas lesões podia ocorrer, tendo descrito, inclusivamente, o circunstancialismo do seu aparecimento.

Para além disso Alcides Rainho, Sérgio Taipa e Machial Pinto disseram que a lesão que a fotografia tirada à mão da arguida apresentava era compatível, em sua opinião, com lesão provocada pelo disparo de arma de fogo.

Recordemos que neste elenco estão múltiplos instrutores de tiro da P.J.

Também todos estes depoimentos, todos os documentos referidos, todas as provas indicadas suportariam a apelidada tese de José Cardoso, de tal forma que todos estes elementos foram transpostos para a acusação.

Também todas estas pessoas, ao dizerem que o disparo da arma de fogo podia provocar lesões na mão do atirador, ao considerarem como compatível com este tipo de lesão a lesão que a arguida tinha na mão em 26-11-2012 pretenderiam apoiar, em última instância, a afirmação que a arguida sofrera a referida lesão quando matou a vítima.

E finalmente, sobre a invocada motivação para o cometimento do crime, temos de novo os depoimentos de Carlos Almeida e de Albertina Almeida e também de Maria Flora (que recordemos, disse que a vítima lhe dissera, preocupada, que o neto já lhe tinha pedido dinheiro e que vinha aí para lhe pedir mais).

Uma última referência às palavras de Raquel Ferreira, que disse que no dia 21-11-2012 a arguida calçava umas sapatilhas claras quando foi buscar a filha já depois das 19h30.

Sendo certo que a arguida e o marido afirmaram que esta não tinha sapatilhas claras e que o Ministério Público defendeu no recurso que as sapatilhas que a arguida usou no dia 21-112012, quando matou a vítima, eram claras, e que não as entregou aquando da busca realizada à sua casa porque conteriam indícios, não podemos deixar de ter o depoimento da testemunha como coadjuvando a tese do Ministério Público, que foi a tese de José Cardoso.

Considerando que os elementos da P.J. acima identificados são inspectores do centro e do norte com diferentes tipos de funções, que integram a Direcção Nacional e as direcções do norte e centro e mesmo peritos do laboratório, a acolher-se a tese liderada por Carlos Coelho teria que se concluir que a cabala montada com vista à condenação da arguida por um crime que bem se sabia que ela não tinha cometido teria resultado da conjugação de esforços de um amplo conjunto de pessoas, que incluía chefias. Em última análise seria a instituição que estava em causa.

E a circunstância de nem todos os factos avançados pela defesa terem ficado reflectidos na matéria provada não infirma o que dissemos. No entanto, por aquilo que anteriormente afirmámos, entendemos que esta tese está, de algum modo, reflectida.

Não vemos que actuação mais grave, mais distorcida, mais violadora dos deveres funcionais e da decência se poderia imputar a uma instituição vocacionada para a investigação criminal.

Considerar-se, sequer, uma tal possibilidade seria catastrófico para todas as pessoas directamente envolvidas, e acima identificadas – porque necessariamente teriam que ser retiradas consequências de tudo isto -, mas mais catastrófico seria para a própria instituição Polícia Judiciária, que veria a sua imagem tão atingida que exigiria medidas profundas para readquirir dignidade e credibilidade.

Perante um tal quadro ninguém admitiria – nomeadamente os magistrados que diariamente se confrontam com o trabalho desta polícia -, que tudo ficasse igual.

Por isso nos parece que as palavras do tribunal recorrido, dizendo que a instituição Polícia Judiciária se rege pelos mais elevados padrões que são reconhecidos por todos, seriam dissonantes, contraditórias, com todo o quadro exposto se este correspondesse ao que aconteceu.

Por tudo o que dissemos ao longo desta extensa exposição, por todas as considerações que fomos adiantando, e também por estas últimas palavras, temos o depoimento prestado por Carlos Coelho, para além do mais, como fantasioso, ilógico e mesmo pueril.

                                    Foi demasiado pormenorizado em muitos aspectos, foi omisso em questões fundamentais

– desde logo na questão fundamental do porquê de a P.J. montar uma cabala contra a esposa -, contraditório com aquilo que ele próprio escreveu em cartas que constam do processo e que visaram esclarecer o sucedido nos dias seguintes ao crime. Parte de certezas absolutas, atribui sempre motivações inconfessáveis, ilegais, dolosas, a praticamente todos os actos da investigação, não cuidou de apresentar razões para os comportamentos que imputou a terceiros, chegando mesmo a ser pueril em certos aspectos (estamos a lembrar-nos dos pormenores dos relatos das viagens feitas pelo veículo da arguida antes de 21-11-2012, justificadores do combustível que tinha neste dia, da viagem feita para a Directoria do Norte, quando ele e a arguida foram entregar as respectivas armas, das explicações avançadas para que o dinheiro emprestado pela avó para pagamento das obras do prédio só viesse a ser depositado longos meses depois do empréstimo).

Carlos Coelho não se bastou em dizer que se tinha precipitado ao atribuir à esposa a autoria, não se bastou em invocar um mau período que estivesse a passar, não se bastou em invocar um eventual mau período do casamento, não se bastou em confessar uma atitude inqualificável, não se bastou em em negar o que se lhe atribuía, pois nenhuma destas atitudes era suficiente para o objectivo visado, que era denegrir a imagem dos investigadores a tal ponto que a investigação ficasse irremediavelmente comprometida. Por isso imputou comportamentos ilícitos e criminosos, fez insinuações, pôs em causa o rigor profissional, a objectividade na actuação de todos.

A defesa não assentou na negligência, na pressa, na incompetência dos intervenientes na investigação. A defesa assentou na actuação criminosa dos elementos que participaram na investigação.

E outra atitude não significava, como é claro, que o desfecho tivesse sido diferente.

 E por tudo isto o depoimento de Carlos Coelho não mereceu deste tribunal qualquer credibilidade.

*

*

Agora, seguindo a investigação, o facto de a casa da vítima não ter sido arrombada, de nada ter sido retirado, de nada estar desalinhado levou-a a colocar de imediato a hipótese que se tratava de um crime de proximidade, conforme foi dito pela testemunha José Cardoso.  E na realidade a casa da vítima não foi arrombada, não estava desalinhada, tudo estava nos respectivos lugares, nada de valor foi furtado.  Para além disso a porta estava fechada à chave.

Estes factos demonstram o cenário que a investigação colocou, de o agente ter entrado na residência pela porta e de ter sido a vítima a abrir-lha. E também demonstra que o móbil não foi o furto.

Sobre o facto de o crime ter sido perpetrado por pura malvadez, ser a exteriorização de um prazer assassino, nunca tal hipótese surgiu ao longo do julgamento e nada nos permite colocá-la agora.

Ainda segundo a investigação horas depois de o crime ter ocorrido logo a testemunha Carlos Coelho, marido da arguida, começou a fornecer informações primeiro a José Cardoso e, depois, a José Faustino, imputando a autoria do crime à arguida, sua esposa, e fornecendo os argumentos que o levavam a fazer essa afirmação.

Depois os dados que foram sendo recolhidos levaram a investigação a afirmar que as informações transmitidas por Carlos Coelho correspondiam à verdade e que a arguida era a autora do crime.

O depoimento prestado pela testemunha José Cardoso merece a nossa credibilidade.

Na interpretação da prova fazemos como na vida: toda a gente parte da normalidade para analisar uma situação. E é isto que está reflectido no art. 127º do C.P.P.

No entanto sabemos que muitas vezes a situação, a vida, não decorre segundo os padrões de normalidade, isto é, que o caso foge às regras da experiência.

No caso a anormalidade reside no facto de um profissional de investigação criminal inventar factos para incriminar uma pessoa, ainda por cima com quem não tem conflitos.

A anormalidade para ser acolhida tem que ficar demonstrada e para ficar demonstrada teria que se ter apurado porque é que isto tinha acontecido.

Para este tribunal aceitar um tal cenário teríamos que ter acesso às razões que levariam todo um grupo de pessoas a cooperar num tal esquema criminoso.

Não havendo qualquer certeza, suspeita, sinal, indício, de todas as referidas pessoas terem conflitos graves com Carlos Coelho e/ou com a arguida ou, por exemplo, de terem dependências de tal forma fortes, e inconfessáveis, perante José Cardoso que os levassem a participar no esquema mesmo sem o quererem fazer, então temos que nos ficar pela análise da prova produzida nos autos segundo as regras da experiência.

E se assim é então o que aconteceu no julgamento foi, simplesmente, a inversão da posição inicialmente tomada pela testemunha Carlos Coelho.

Inicialmente Carlos Coelho disse à investigação e a terceiros que a arguida era a autora do crime que vitimara a sua avó, explicando as razões que o levaram a dizê-lo. Cerca de 2 meses e meio depois ocorreu um volte face, corporizado nas cartas que escreveu à magistrada do Ministério Público e à juíza do T.I.C. Finalmente no julgamento aconteceu a alteração radical, traduzida na inversão da posição inicial e numa diferença substancial relativamente ao seu posicionamento naquelas cartas.

É que a versão das cartas e a versão do julgamento são muito diferentes, pelo que não se podem ter como uma só.

Recordando, o que a testemunha Carlos Coelho pretendeu nas cartas foi explicar as razões que o levaram a fazer as declarações do dia 24-11-2012. E então diz que o conteúdo do auto se ficou a dever ao facto de a inquirição se ter prolongado por 6 ou 7 horas, de ele ter lido o auto elaborado entre as 19h/20h, quando já estava desgastado com tudo o que ocorrera naquele dia, «o que motivou que ali não ficassem esclarecidos alguns aspetos que o signatário crê serem importantes e que em seguida exporá. Acresce que tais esclarecimentos advêm do facto de o signatário ter, entretanto, refletido sobre toda a factualidade atinente à situação em apreço, tendo chegado a determinadas conclusões».

E então clarificou os aspectos que ele entendeu não terem ficado devidamente esclarecidos no auto:

  • sobre a situação económica do casal – disse que era normal; que as despesas da esposa eram sempre realizadas para aquisição de bens para a filha de ambos e para a casa, não realizando gastos pessoais com a conta do casal; ambos sabiam que se uma situação inopinada ocorresse e que conduzisse a gastos extra a avó sempre os poderia ajudar, que sempre ajudou economicamente quando foi solicitada para o efeito;
  • conversas entre o casal sobre as contas tituladas pela avó – foram conversas pontuais e mantidas há já bastante tempo, sem qualquer actualidade; em duas ou três ocasiões falaram nas contas bancárias em causa, mas foram conversas sem qualquer relevância; o dia-a-dia do casal não era influenciado por esta questão;
  • depressão sofrida pela sua esposa – resultou de cansaço acumulado proveniente do facto de em Março de 2011 ter sido diagnosticado a uma colega um cancro em fase de grande desenvolvimento o que, devido à grande amizade que as unia, causou profundo abalo à sua esposa; a esposa envolveu-se muito, comovendo-a muito a situação de o bebé poder ficar sem a mãe, o que comparava ao drama que seria a própria filha do casal perder a mãe; passou a ser acompanhada por psiquiatra em Setembro de 2011 e verificaram-se enormes melhorias ao longo do ano de 2012; para isto também contribuiu o convite profissional que havia recebido;
  • relação entre a sua avó e a sua esposa – sempre foi absolutamente cordial, nunca houve qualquer situação de atrito ou conflitualidade entre ambas, bem pelo contrário; mantinham contactos nos almoços que o casal e a filha faziam em casa dos seus pais;
  • dia 21 de Novembro – falou com a sua esposa pela manhã e ela disse que acabara de deixar a filha no infantário; durante a tarde tentou ligar-lhe mas o telemóvel estava desligado; não tentou ligar para casa uma vez que pensou que ela estaria a descansar, por imposição do médico que a observara na antevéspera; às 17h30 saiu do trabalho e foi a uma consulta de rastreio auditivo; chegou a casa às 19h15 e passeou a cadela alguns minutos; pouco depois de ter regressado a casa a mulher e a filha chegaram e ela disse que tinha ido ao supermercado; disse à esposa que lhe tinha telefonado à tarde e que o telemóvel estada desligado e ela disse-lhe que para além da peça lateral do aparelho estar partida ele andava-se a desligar há 2 dias, desde o incidente do fim de semana anterior, quando ele entornou um copo de vinho em cima do telemóvel ao jantar; limpou o aparelho e secou-o com o secador; a esposa disse-lhe que desde então o telemóvel se desligava sozinho; disse que já lhe tinha acontecido problema semelhante com um seu telemóvel, que também passou a desligar-se sozinho ou, sem motivo, ficava sem rede de um momento para o outro; na chegada a casa a esposa apresentou uma postura normal, seguiu a rotina habitual, comportamento incompatível com a prática dos factos que lhe são imputados;
  • no que respeita aos quilómetros realizados pelo veículo do casal entre os dias 11 de novembro de 2012, data do ultimo abastecimento de gasolina, e o momento em que o signatário entrou para o carro, para se deslocar para Coimbra, depois de haver sabido da morte da sua avó altura em que verificou que o veículo tinha uma autonomia de 330 quilómetros – reconstruiu as deslocações feitas pela viatura durante aquele espaço de tempo, com as distâncias percorridas; quando o veículo é abastecido e atestado fica com uma autonomia de 660 a 800 km, sendo a autonomia apresentada variável em face do consumo médio anterior; o veículo era, normalmente, conduzido pela esposa e apresentava índices de consumo médio mais elevados, sendo normal que a autonomia pós abastecimento do dia 11 de novembro (feito pela sua esposa) fosse próxima dos 660/700 quilómetros; depois deste abastecimento no dia 11 a sua esposa foi a Perafita – Matosinhos, à loja Leroy Merlin, com um trajeto total aproximado de 30 km, ida e volta; no dia 12 de Novembro não sabe quantos quilómetros a esposa fez; a 13 a esposa foi operada e na deslocação de ida e volta ao Hospital Privado da Trofa fez cerca de 50 km; em 14, 15 e 16 utilizou o veículo do casal para ir trabalhar tendo feito, no total, cerca de 75 quilómetros; no domingo 18 o casal foi a Matosinhos, tendo feito cerca de 40 km na ida e retorno num volta que deu; no dia 19 a esposa teve uma consulta na Trofa e na viagem e numas voltas que deu percorreu no total cerca de 85 km; no dia 20 a esposa foi ao Hospital Privado da Boa Nova, em Perafita, e fez de cerca de 25 quilómetros; a totalidade destes trajetos perfaz cerca de 305 quilómetros; acrescem outras deslocações feitas pela esposa nos dias 20 e 21, para ir buscar a filha ao infantário e outras necessidades do dia-a-dia; esta totalidade de quilómetros, associada aos 330 quilómetros que o veículo apresentava de autonomia no dia 21 à noite perfazem, no mínimo, cerca de 635 quilómetros, valor aproximado aos 660/700 quilómetros que a veículo poderá ter apresentado de autonomia depois do abastecimento do dia 11 de Novembro; é seguro o veículo não se pode ter deslocado a Coimbra no dia 21, porque esta viagem implicaria uma deslocação de cerca de 260 quilómetros, ida e volta, e a ter sido efetuada o veículo apresentaria uma autonomia muitíssimo inferior aos 330 quilómetros indicados;
  • tem um matrimónio de 8 anos, tem plena convicção e certeza de que a mesma jamais mataria alguém, confia inteiramente na sua esposa, tem a certeza que não pode sido ela a autora do homicídio que vitimou a sua avó, pessoa contra quem nada a movia, que a sua esposa sabia ser muito querida do signatário e a quem, por todos os motivos e mais este, nunca faria qualquer mal.

E foram estes os aspectos que a testemunha esclareceu nas cartas.

Continuando a seguir a linha da investigação, não podemos esquecer que as informações prestadas por Carlos Coelho aconteceram quando a investigação começou: nos primeiros momentos da investigação a testemunha literalmente forneceu a identidade do homicida. Daí o foco imediato.

Só que esta indicação não bastava para a condenação.

Já com um nome a investigação foi evoluindo – com o enfoque natural na pessoa que havia sido indicada como autora -, e, na sua tese, os elementos de prova que foram sendo recolhidos conjugaram-se primeiro para um certo tipo de autor e, depois, apontando para a arguida.

E foi neste momento que a investigação passou a ter as informações prestadas pela testemunha Carlos Coelho como credíveis, porque passaram a ser coerentes com as provas, de tal forma que permitiram formular a acusação nos termos em que foi formulada: a investigação considerou a arguida a autora do homicídio não porque a testemunha Carlos Coelho lho tinha referido mas porque as provas que recolheram demonstraram que as informações prestadas por Carlos Coelho eram verdadeiras.

Sobre a atribuição do nível 4 à investigação, logo no dia 22-11-2012, não há qualquer estranheza uma vez que as primeiras informações transmitidas por Carlos Coelho sobre a autoria do crime tiveram lugar nesse dia 22.

Até aqui a coerência é total.

Entretanto surgiu o julgamento e neste o depoimento da testemunha Carlos Coelho, negando veementemente a versão apresentada pela acusação e revelando uma versão dos acontecimentos não só diferente mas incompatível com aquela.

A motivação apontada para o crime foi a rápida obtenção de dinheiro pela arguida para que pudesse manter o padrão de vida despesista a que estava habituada.

Sobre o padrão de vida do casal a testemunha Carlos Coelho referiu que ele tinha baixado, naturalmente, mas que não tinham problemas económicos de monta. Referiu que em tempos achou algumas das despesas da esposa excessivas, que depois verificou que estava errado, admitiu dificuldades pontuais, referiu o episódio das obras do prédio a realizar em 2011 e relativamente às quais concluiu, com outros condóminos, que elas importariam, para cada um, em 1.000€/1.500 €.

Apontou este valor mas não indicou qualquer elemento em que se tenham baseado para chegarem a ele.

E continuou dizendo que referiu isto à sua avó e que ela tomou a iniciativa de lhe emprestar o dinheiro necessário para pagar as obras e que acordaram que a devolução seria feita quando e como o casal pudesse, o que foi corroborada pela arguida.

Aqui há que recordar as palavras de Carlos Almeida, filho da vítima, que disse que dada a personalidade da mãe e a relação que tinha com o dinheiro – palavras nossas -, ela nunca se disponibilizaria a emprestar dinheiro sem a pessoa o pedir. E fundamentou a afirmação o que lhe tinha acontecido a si e à sua irmã quando pediram dinheiro à mãe.

E para além disso temos as palavras do assistente e da esposa, Albertina Almeida, sobre o facto de a vítima achar que o neto tinha um modo de vida muito gastador, o que a preocupava e que também não era consentâneo com a espontaneidade acima referida.

A versão da testemunha Carlos Coelho não é consentânea com a personalidade da vítima sendo certo, para além disso, que não se vê qual seria o problema de admitir ter pedido dinheiro à avó de forma directa, ao invés de o fazer de uma forma dissimulada, dizendo-lhe uma primeira vez que teria que levantar uma conta da filha para pagar as obras e, depois, que tinha retirado 500 € do dinheiro emprestado para as obras para colocar na conta da filha.

Depois, e ainda relativamente aos empréstimos da vítima a Carlos Coelho, temos todo o relato com demasiados pormenores da ida de férias para a Figueira da Foz no ano seguinte ao empréstimo, de, não obstante o tempo decorrido, as obras ainda não terem sido feitas e o dinheiro não ter sido depositado, de o ter levado consigo para férias, da ida para Barcelona, do auxílio dado pelo pai e avô da arguida e de o dinheiro do empréstimo inicial ter sido finalmente depositado em Agosto, tudo para demonstrar o dinheiro depositado em Agosto de 2012 era o mesmo dinheiro que a avó tinha emprestado em 2011.

Sendo certo que para este tribunal é irrelevante, num sentido ou no outro, concluir que houve um novo empréstimo, ou que não houve novo empréstimo, deixa-se a nota que temos todo este relato como inverosímil.

Porém, e a propósito de ter havido um só empréstimo, não podemos deixar de realçar que a testemunha Maria Flora disse que a vítima lhe falou, preocupada, que o neto já lhe tinha pedido dinheiro e vinha pedir mais.

E sobre esta partilha de preocupação com uma pessoa que não era da família lembremos que a vítima era de tal forma reservada que Carlos Almeida disse não saber que a sua mãe tinha emprestado dinheiro ao sobrinho e Albertina Almeida disse que soube disso quando o sobrinho lho disse.

Chegados às poupanças que a vítima tinha disse a testemunha Carlos Coelho que sabia que a avó tinha uma conta conjunta com a mãe e outra com o tio, mas nem ele nem a arguida faziam ideia dos montantes em causa.

E não se sabendo os montantes em causa era absurdo pensar-se, como a acusação referiu, que a arguida mataria a vítima para conseguir dinheiro que, pela lógica, seria pouco atendendo ao facto de a pensão que recebia ser inferior a 400 € mensais.

Aqui temos que retomar, de novo, as declarações de Carlos Almeida, filho da vítima, que sobre a questão disse que sabia da vida financeira da mãe porque ela lho dizia, sabia que a mãe tinha uma conta consigo e outra com a irmã, sabia da evolução de cada uma das contas e dos montantes globais, porque a mãe lhe dizia, que isto era do conhecimento da sua esposa e filhas e que o assunto era falado pela mãe perante os filhos e netos.

Então, se por um lado a esposa e filhas do assistente sabiam dos montantes que a vítima tinha no banco, embora não ao cêntimo, se por outro lado a vítima falava disso perante os filhos e os netos a filha e o neto também sabiam dos montantes das referidas contas.

Não temos como não acolher o que foi dito por Carlos Almeida, ainda para mais porque não foi afirmado e nem sequer sugerido por ninguém que a vítima tivesse maior ligação e/ou proximidade e/ou mais confiança e/ou mais respeito e/ou mais preocupação pelo filho e pela família deste do que pela filha e filho desta. Ao invés, o que resultou é que, dada a idade do marido da filha e de esta não ter ordenado nem reforma, a vítima preocupava-se muito com ela e com o seu futuro.

Além disso há um outro elemento que anula o valor que se pudesse pensar atribuir às palavras proferidas por Carlos Coelho: como ainda agora vimos nas cartas que escreveu e que estão no processo consta, e citamos, que «no que concerne às conversas entre o casal sobre as contas tituladas pela avó do signatário, de referir que se trataram de conversas absolutamente pontuais e mantidas há já bastante tempo, não tendo qualquer atualidade. De facto, em duas ou três ocasiões o signatário e a sua esposa falaram nas contas bancárias em causa, contudo foram conversas que se ficaram por ali mesmo, sem qualquer relevância. O dinheiro era da avó do signatário e a mesma geria-o como bem entendia, não sendo o dia-a-dia do casal influenciado por esta questão».

Isto é suficiente para retirar toda a credibilidade, mais uma vez se isso é possível, ao depoimento da testemunha.

Agora e sobre a situação económica do casal, foi feita uma perícia às contas tituladas pela arguida e pelo marido, Carlos Coelho.

Foram analisadas três contas bancárias e considerado o período de 1-7-2012 a 31-122012. As contas analisadas foram: a conta nº 3791501, do BPI, titulada pelos dois elementos do casal; a conta nº 45409924642, do Activobank (Millennium BCP), titulada por Carlos Coelho; a conta nº 0131000120800, da CGD, titulada pela arguida.

Dá-se notícia que outras contas havia mas que não foram analisadas uma porque o único movimento que tinha datava de 3-9-2012, em que houve um movimento de débito de 100 € que correspondeu à sua liquidação, e as outras porque não foram movimentadas neste período.  A conta mais movimentada foi a existente no BPI, onde nomeadamente são recebidos os salários e feitos os pagamentos das principais despesas. As outras duas apenas recebiam pontualmente depósitos e transferência, e funcionavam como contas residuais. Por isso foram analisadas em conjunto.

Esta teve frequentemente saldo negativo e só ficava positivo aquando do recebimento dos vencimentos. No entanto o saldo negativo não se acumulava.

Relativamente à conta da CGD regra geral o saldo era negativo e ficava positivo quando recebia depósitos/transferências.

Os saldos gerais apurados relativos às 3 contas são que constam da matéria dada como provada no ponto 8.

Conclui-se que parte dos depósitos referidos em 9 da matéria assente, no montante de € 1.670,00, teve proveniência em levantamentos efectuados nas contas sedeadas no BPI e na CGD através do cartão de crédito nº 6135772. Quanto ao restante montante depositado não conseguiu a perícia identificar levantamentos ou somas de levantamentos que estiveram na sua origem, concluindo que os depósitos e transferências de 3.117,25 € provieram de contas não pertencentes ao casal.

Depois, sobre o que se passou no dia 21-11-2012 relativamente ao facto de o telemóvel da arguida se desligar espontaneamente, começamos por chamar a atenção para o facto de que nas cartas Carlos Coelho ter referido que o episódio do derramamento do vinho aconteceu no fim de semana anterior e no julgamento disse, acompanhado pela a arguida, que ele tinha sido no dia 19.

                                   O fim de semana foi nos dias 17 e 18 e o dia 19 foi segunda feira.

Compreendemos que se esteja a pensar que se trata de uma divergência irrelevante que não pode pôr em causa um depoimento. Entendemos a crítica e concordaríamos com ela numa outra situação, mas não nesta em que a testemunha revelou ter uma memória de tal modo extraordinária que recordou uma infinidade de pormenores, passados 1 ano e meio antes, que, para um cidadão normal, seria impossível recordar. Isto por um lado. Por outro temos que se a testemunha em 23-6-2014 recordou tudo, mas mesmo tudo, o que se passou nos dias anteriores e posteriores a 21-11-2012, também o recordaria, por maioria de razão, em 11-2-2013.

Ainda sobre a existência da avaria do telemóvel da arguida realçamos, como alegou o Ministério Público, que do documento enviado pela TMN, relativo à facturação detalhada do tráfego do cartão da arguida, resulta que no período de 19-11-2012, inclusive, até às 19h14m29s do dia 7-12-2012 – 19 dias portanto -, as tentativas de contacto não concretizadas aconteceram às 13h22m00s, 15h28m37s, 15h50m40s e 19h24m21m do dia 21-11-2012 e às 14h51m19s do dia 24-11-2012, sendo que relativamente a este período constam os seguintes registos:

–  dia 19-11-2012 – 25

–  dia 20 – 14

–  dia 21 – 15

–  dia 22 – 52

–  dia 23 – 25

–  dia 24 – 16

–  dia 25 – 3

–  dia 26 – 11

–  dia 27 – 7

–  dia 28 – 1

–  dia 29 – 2

–  dia 3-12-2012 – 2

–  dia 5 – 1

–  dia 6 – 1

–  dia 7 – 5, no total de 180.

             Recorde-se que a arguida foi detida no dia 26-11-2012, às 22h40.

 Entretanto, parece que o telefone se recompôs espontaneamente, pois que não foi substituído nem careceu de qualquer reparação.

Por isso não concordamos com o acórdão recorrido quando considerou «ser perfeitamente possível o alegado problema técnico de desligar e ligar do telemóvel da arguida sem intervenção humana …».

Não percebemos, não é lógico, que durante 19 dias o telemóvel da arguida tenha estado desligado 5 vezes, 4 das quais durante a tarde do dia 21-11-2012; de ele ter tido alegadamente problemas pela primeira vez apenas neste dia 21; que tenha retomado o normal funcionamento sem que nenhuma explicação tenha sido avançada para a sua recuperação espontânea.

Agora e quanto à morte de Filomena de Jesus Gonçalves, provou-se que a vítima foi atingida por 14 projécteis que foram disparados contra si, que lhe provocaram lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e abdominais que foram causa necessária e directa da sua morte (factos 62 a 65).

Também foi dado como provado que as 14 cápsulas encontradas no local do crime eram de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), marca Sellier & Bellot, lote 09. Os projécteis e fragmentos de munições recuperados na habitação da vítima e os que foram encontrados no seu corpo eram também de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm

Luger na designação anglo-americana) – factos 77 a 80.

                                     No entanto, e a propósito destas cápsulas e munições mais factos se provaram (conforme

resultou da prova testemunhal e documental anteriormente vistas).

E uma vez que todas as cápsulas e projécteis referidos foram recolhidos no local do crime ou na vítima, concluímos – pela evidência que daí decorre -, que aquelas cápsulas e os projécteis integravam as mesmas munições e que as características detectadas em relação a algumas se estendem a todas.

                                        Do exame feito ao invólucro de uma munição verificou-se que esta tinha a seguinte

inscrição na base “9×19 S&B 09” (calibre, marca, lote).

                                   Provou-se, também, que as munições eram de 115 grains.

 Também se concluiu que todas as cápsulas recolhidas foram disparadas pela mesma arma, assim como se concluiu que os projécteis também o foram.

Provou-se, finalmente, que dada a marca feita na cápsula pelo percutor da arma – rectangular -, e dadas as estrias que essas munições apresentavam – poligonais -, a arma utilizada para o cometimento do crime foi uma Glock.

Das instalações da P.J. do Porto foi furtada uma 1 arma Glock calibre 9×19 mm, também chamado calibre 9 Luger ou 9 Parabellum, que estava distribuída à inspectora Liliana Vasconcelos.

Também lhe foi furtado um carregador, que estava no interior da arma e que estava municiado com 14 munições. Do mesmo modo pela prova feita – declarações de Vitor Teixeira, Liliana Vasconcelos -, temos por provado que o carregador que a arma tinha estava municiado com 14 munições. Aliás, as razões que levavam a inspectora Liliana a municiar a arma apenas com 14 munições eram as mesmas que levavam outras pessoas a fazer o mesmo.

                Agora, e quanto às munições, está provado que lhe tinham sido distribuídas 50 munições

Sellier & Bellot, sendo que pelo menos 36 eram do lote 09 (factos por nós enumerados sob os nº 35 e

36).

Mas estas características não descrevem com rigor as munições distribuídas à inspectora.

Como sabemos, quem procedia à distribuição deste material pelos inspectores da Directoria do Norte da P.J. era o inspector Vitor Teixeira e as munições que ele distribuiu a

Liliana Vasconcelos para uso operacional – aliás, segundo disse, são as que utilizam neste uso -, foram 50 munições da marca Sellier & Bellot, modelo JHP/jacket hollow point, 115 grains, expansivas, lote 09.

                    Recorde-se que na perícia que consta a fls. 551 e segs., feita pelo LPC, consta que as

«14 cápsulas deflagradas suspeitas … são do mesmo calibre … da mesma marca … e do mesmo lote que as munições … distribuídas à inspectora Liliana …».

             Sobre a tese do furto ou perdimento, acolhemos a tese do furto.

 Primeiro, consideramos que foram cabalmente explicadas as razões que levaram a testemunha Liliana a ter detectado a falta da arma apenas em 6-11-2012, que não esteve sem se lembrar da arma durante 1 mês, da mesma forma que foram claros os motivos que levaram o director da Directoria do Norte da P.J. a colocar a hipótese de furto apenas depois que feitas diligências para despistar outra possível causa para o desaparecimento.

E quando já era previsível um desfecho negativo – de a arma não ser encontrada e de não haver outra explicação para o seu desaparecimento -, então em 20-11-2012, dia anterior ao crime, o director decidiu que se aguardasse até ao dia seguinte pela junção das informações pedidas a Vitor Teixeira, que ainda não tinham sido fornecidas, «com vista à remessa do processo, com carácter urgente, à UDI [Unidade Disciplinar e de Inspecção] e sem prejuízo da eventual instauração de processo-crime, uma vez que poderemos estar face ao furto de arma de fogo».

Depois, e começando pelo depoimento de Liliana Vasconcelos, ela foi muito veemente nesse ponto, que tinha a certeza que não tinha tirado a arma das instalações da P.J. Atendendo ao facto de tantos outros inspectores apenas tirarem a arma das instalações quando tinham diligências é credível a certeza que ela apresentou.

Do mesmo modo os colegas e chefes que relataram conversas tidas com ela, na altura, foram unânimes em afirmar que ficaram com a convicção que a arma fora furtada.

                                   E furtada como?

 É verdade que ela guardava a arma, carregadores e munições numa das gavetas do seu módulo de gavetas e que quando saía do edifício fechava as gavetas à chave, embora se tenha demonstrado que, afinal, o sistema de fecho não era fiável.

Como consta do exame pericial de fls. 5 e segs. do inquérito 15497/12.8TDPRT, «na presença dos inspectores Liliana Vasconcelos e Duarte Vaz verificou-se que, com o módulo fechado à chave, aplicando uma pressão com as mãos nos bordos laterais externos da gaveta, esta “destrava” o mecanismo de tranca e abre».

Embora entendamos não se trata de prova pericial é uma prova que consta do processo e que nos convenceu da sua veracidade. Aliás, outras pessoas relataram episódios de abertura de módulos fechados à chave sem chave, embora com métodos complicados e barulhentos, o que não aconteceu naquela diligência, que verificou que era possível abrir o módulo de Liliana Vasconcelos, estando fechado à chave, sem chave, sem barulho e sem virar o módulo ao contrário.

Provou-se ainda que a testemunha Liliana e o seu colega de gabinete, Pedro David, partilhavam na altura dois processos complexos, já pendentes em Outubro de 2012 e que ainda decorrem, em que havia muitas escutas telefónicas e que, por isso, ambos passavam parte considerável do dia na sala das intercepções situada dois pisos acima do gabinete: ou seja, durante várias horas por dia o gabinete de Liliana Vasconcelos e Pedro David estava sem ninguém.

Para além disso, considerando que nenhum deles alguma vez fechou a porta do gabinete à chave significa isto que era fácil a entrada. E a abertura do módulo também não era difícil, mesmo que ele estivesse fechado à chave.

                                   E o furto foi perpetrado por quem?

 Fez-se crer que as pessoas que eram ouvidas na Directoria do Norte da P.J. ou que lá se deslocavam por qualquer razão entravam, circulavam e saíam, digamos, à vontade, sem qualquer controlo.

À partida uma tal prática seria bastante estranha, considerando o que aqueles edifícios albergam: armas de fogo, munições, processos, provas relativas a crimes e a processos pendentes.

E de facto provou-se que não existe uma tal liberdade de circulação já que, conforme afirmou o seu director e o inspector Rui Abreu, todas as pessoas que frequentam as instalações da Directoria do Norte da P.J., com excepção dos directores e dos inspectores, são controladas umas à entrada e à saída e todas à saída.

Então, se tais pessoas são controladas à saída e se a arma saiu do edifício sem ser detectada o que resulta é que foi uma pessoa não sujeita a controlo que a furtou.

Sobre a chegada tardia da arguida a casa disse a testemunha Carlos Coelho que quando chegou a esposa lhe disse que tinha ido ao supermercado.

A investigação atentou neste pormenor para confirmar ou infirmar as palavras da arguida, tanto assim que diligenciou para recolher provas da sua ida ao supermercado. Foram ao supermercado da Maia e a diligência foi inconclusiva. Algum tempo depois foram a outro supermercado, ao supermercado onde a arguida tinha ido, mas dado o tempo já decorrido as imagens recolhidas pelas câmaras de videovigilância no período em causa já não existiam.  Sobre este episódio o que foi dito pela investigação é que a informação inicialmente recolhida foi no sentido de a arguida ter ido ao supermercado da Maia e só mais tarde é que foram informados que, afinal, ela tinha ido a outro supermercado.

Se a investigação fez a tentativa de recolha de imagens da arguida num concreto supermercado foi porque lhe foi dito – pela lógica pela arguida -, que ela tinha ido ao supermercado naquele dia e àquela hora e que, por esse facto, não podia ter vindo a Coimbra.

Também a lógica impõe que se conclua que se a investigação foi a um concreto supermercado, e não a todos os que lhe parecessem possíveis, foi porque a informação dada não só referiu a ida ao supermercado, como identificou o supermercado em causa. E pela mesma lógica se depois foi a outro supermercado é porque a mesma fonte indicou, depois, que ela, afinal, tinha ido a outro supermercado. E neste a diligência tentada já não resultou porque tinha passado demasiado tempo e as imagens recolhidas já tinham sido destruídas.

No entanto, o que resulta seguro é que no dia 21-11-2012 a arguida foi buscar a sua filha ao infantário depois das 19h30.

Relativamente à saúde da arguida a testemunha Carlos Coelho disse que na sequência da intervenção cirúrgica a que foi submetida a esposa esteve a descansar, segundo ela lhe disse, na tarde do dia 21 porque na véspera se tinha esforçado mais e sentia dores na zona intervencionada. Disse, também, que na sequência da intervenção ela andava devagar, sentavase de lado, no carro também se sentava de lado e com o banco o mais rebatido possível e que foi assim que viajaram para a Figueira da Foz no dia 23-11-2012.

As dificuldades de locomoção e condução foram relevadas pelo tribunal recorrido que disse a propósito da eventual vinda da arguida a Coimbra no dia 21-11-2012, e para além do mais, o seguinte:

«… a arguida no dia 13.11.2012 havia sido sujeita a uma miomectomia via vaginal e uma colporrafia posterior … que a impediam de fazer esforços físicos, de andar a ritmo normal (exigindo andar com passos curtos e pausados), de estar durante longos períodos sentada. Como referido pelo marido da arguida, e confirmado pelo Dr. José Vidal Pinheiro, médico que realizou tal operação, a arguida na semana em que ocorreram os factos sentava-se de lado para evitar forçar os pontos (cerca de 100), tendo levado o médico em consulta de rotina de 19.11.2012 a prolongar a baixa médica por mais 15 dias em virtude de a achar debilitada – apresentando uma astenia (falta de forças) e ainda tinha dores na cicatriz operatória na região perineal (cf. fls. 1502) – e necessitar de mais repouso para uma convalescença adequada (cf. fls. 2461).

Este facto dificultaria seriamente a sua mobilidade numa eventual deslocação a Coimbra …».

José Pinheiro afirmou ter dito à arguida para não fazer esforços e ter cuidado com a amplitude das pernas ao andar mas nada disse sobre o que a arguida fez nos dias seguintes à intervenção porque o primeiro contacto que teve com ela foi no dia 19-11-2012. E neste dia ela apresentou-se-lhe com astenia e dores na cicatriz operatória, mas a situação estava a evoluir normalmente e a arguida estava como ele achava que estaria. E quando foi perguntado se teria aconselhado a arguida a conduzir disse que não aconselharia.

                                   Isto por um lado.

Para além disso temos, como o Ministério Público realçou, tudo aquilo que entretanto a arguida começou a fazer na retoma da sua vida normal, como referem os factos enumerados de 40 a 59, demonstra a melhoria das condições físicas que estava a ocorrer.

E neste sentido também temos o que Albertina Almeida disse sobre como estava a arguida no dia do velório: disse que esteve de pé, que a viu bem e sem qualquer dificuldade aparente de locomoção.

Para além disso, e como o Ministério Público refere, o que estava em causa não era saber se a arguida estava em perfeitas condições de saúde mas se as suas condições de saúde lhe permitiam fazer a viagem.

E a conclusão é afirmativa.

 

            E chegamos ao momento em que a testemunha Carlos Coelho refere ter tido a notícia do crime e da subsequente vinda para Coimbra.

Disse que se dirigiu a casa da avó, que depois acompanhou a testemunha José Cardoso para as instalações da Directoria do Centro, onde este ouviu os seus pais e o tio, e que pelas 4h/5h ele foi ter consigo, perguntou se os pais tinham acesso às armas do casal e que havia um problema porque o crime tinha sido cometido com uma Glock e não havia Glocks aos pontapés.

Carlos Coelho afirmou que lhe respondeu que no Porto havia muitas Glock, que em Lisboa provavelmente havia mais e que ainda há um mês tinha desaparecido uma Glock no

Porto.

Com isto o que se quis dizer é que havia muitas daquelas armas “por aí”. E se havia muitas/várias Glock disseminadas na sociedade o argumento da investigação, de que o crime teria sido perpetrado por alguém da P.J. por ter sido cometido por uma Glock, era irrelevante.

Mas a testemunha disse outra coisa importante: disse que depois de ter falado deste desaparecimento a José Cardoso ficou com a convicção que a investigação tinha acabado naquele momento: a partir daí, disse, o processo foi direccionado para si e quando, no dia seguinte, se aperceberam que ele tinha estado a trabalhar, direccionaram-no para a mulher.

Ou seja, neste momento ficou definido o resultado da investigação.

Entretanto disse que regressou a casa, que saiu de Coimbra às 8h, que foi pela estrada nacional e que chegou a casa às 11h.

Percebe-se o cuidado da testemunha de referir o tempo de viagem espontaneamente uma vez que consta do processo o resultado da diligência de cronometragem do percurso Coimbra-Maia e Maia-Coimbra levada a cabo pelas testemunhas Machial Pinto e José Faustino.

Disse o primeiro que a diligência foi feita por iniciativa própria, que fizeram 2 vezes o percurso entre a porta da residência da arguida e a porta da residência da vítima e 1 vez entre a porta da residência da vítima e a porta do infantário onde a filha da arguida anda, que as horas de início das viagens não foi aleatório, que as fizeram fora de auto-estradas, sem transgredir, que no IC2, na zona de Lourosa, Santa Maria da Feira e São João da Madeira havia muito trânsito e que o percurso tem muitas zonas de controlo de velocidade com radares e semáforos.   E no auto de cronometragem consta que a primeira viagem entre a porta do prédio onde a arguida reside e a porta do prédio onde a vítima residia começou às 14h19, terminou às 16h23, que o tempo estava bom, havia grande intensidade de tráfego, sobretudo de pesados, em toda a IC2/EN1 e que a velocidade máxima imprimida foi de 130 km/h. A viagem de regresso começou às 17h e terminou às 19h22, junto ao infantário. Na segunda viagem Maia-Coimbra saíram às 14h15 e chegaram às 16h15.

Sobre a deslocação a Coimbra por parte da arguida o tribunal recorrido disse: «se atentarmos ao facto de a arguida estar calmamente em casa por volta das 14H30 é expectável que ainda demorasse algum tempo – 10 a 20 minutos – a aprontar-se para sair. Por outro lado, se atentarmos que entre as cidades da Maia e Coimbra distam pelo menos 134 km o que implica sempre um mínimo de viagem de cerca de 01H25 (por auto-estrada) – sem contar com o facto de a arguida sair da sua casa na Maia e a casa da vítima situar-se na rua António José de Almeida, n.º 86, o que implica que àquele tempo de viagem entre as cidades se tenha de acrescentar o tempo passado no trânsito interno de cada uma das cidades nunca inferior a 20 minutos no total dos dois trajectos …».

Independentemente de reconhecermos a validade do argumento há que realçar, primeiro, que não se provou que o encontro entre a arguida e a vizinha tenha sido às 14h30, que não se provou, nem se indiciou, que naquela concreta situação uma pessoa demore entre 10 a 20 minutos a arranjar-se, tal como não se provou que no trajecto em cada uma das cidades se demore mais de 20 minutos. Quanto a este último pormenor remetemos para o que consta do auto de cronometragem do percurso.

Para além disso também não foi considerada a outra hipótese, talvez mais óbvia, de a viagem ter sido feita por auto-estrada. Já vimos que o argumento invocado pela arguida, de que a querer cometer o crime nunca faria a viagem por auto-estrada porque isso deixaria “rasto”, não é verdadeiro.

Finalmente, diga-se que não se provou a hora em que o crime ocorreu e nem a hora aproximada, apenas constando da motivação que diz que o crime teria ocorrido no máximo entre as 15H53 e as 16H19.

Agora quanto à disseminação de armas Glock e das munições usadas no crime, se havia muitas/várias armas e munições destas na sociedade civil é evidente que a tese da investigação, de que o autor do crime tinha que ser alguém da P.J. por a arma utilizada ser uma Glock e por as munições serem exclusivas desta polícia, ficava posta em causa. E cada revés somava-se ao anterior, no sentido da irrelevância de toda a investigação.

Neste mesmo sentido foi o depoimento da arguida ao afirmar que quando soube que as munições usadas no crime eram de 9 mm não fez associação nenhuma à P.J. porque todos os dias havia assaltos no Porto com aquelas munições.

E tão ou mais relevante foi o que disse a testemunha Miguel Sousa. Quando perguntado se tinha desaparecido alguma arma Glock na Directoria do Norte disse que em 2010 um colega foi vítima de carjacking e roubaram-lhe a arma, municiada, arma essa que achava ser uma Glock, que em 2009 ou 2010 foi furtada uma Glock em Braga, municiada e que em Lisboa desapareceram várias.

Disse, ainda, que o desaparecimento de armas tornou-se um problema de tal maneira preocupante que a Direcção Nacional da P.J. até solicitou a intervenção sindical para que alertassem as pessoas para terem mais cuidado na forma como transportavam e guardavam as armas.

Sendo certo que esta testemunha foi presidente da direcção regional de um sindicato dos investigadores criminais da Directoria do Norte resulta que teria conhecimento pessoal, enquanto dirigente sindical, da alegada solicitação formulada pela Direcção Nacional pela preocupação que estava a viver devido a desaparecimentos sucessivos de armas.

E se, de facto, a Direcção Nacional da P.J. tivesse pedido a um sindicato esta colaboração não há dúvida que o desaparecimento de armas de serviço distribuídas pela P.J. se tinha tornado um problema muito grave.

Como já consta da análise deste depoimento foi pedido à Direcção Nacional da P.J., nomeadamente, que indicasse, com menção das circunstâncias de tempo e lugar, as armas e munições desaparecidas desde o ano 2000 até à data (Junho de 2014) e se alguma tinha sido recuperada.

E dado que o caso respeita a armas Glock releva-se, apenas, a parte da resposta relativa a estas armas. A informação fornecida refere que do acervo da Polícia Judiciária e desde o ano 2000 houve as seguintes ocorrências relativamente ao desaparecimento de armas Glock e respectivas munições:

–  Glock 26 cal. 9×19 – em 6/1/05 em Setúbal; em 30/12/10 em Setúbal com 12 munições;

–  Glock 19 cal. 9×19 – em 17/8/05 em Coimbra, com 24 munições e recuperada; em 6/11/12 no Porto com 14 munições.

Confrontando esta informação com aqueles depoimentos há uma considerável divergência.

Para além disso também não podemos esquecer que as testemunhas Vitor Teixeira e Batista Romão disseram nunca ter desaparecido outra arma para além da da inspectora Liliana na ou da Directoria do Norte.

Continuando, a testemunha Carlos Coelho disse que passou o dia 22 com a esposa e que pelas 17h/17h30 a testemunha Cardoso lhe telefonou a dizer que estava a ir para o Porto para recolher as armas deles.

Conforme já vimos, das informações remetidas ao processo pelo director da Directoria do Norte da P.J. resulta que no dia 22-11-2012 a testemunha José Cardoso e os colegas Verónica e Coutinho entraram nessas instalações às 19h e saíram às 22h50 e que a arguida e Carlos Coelho entraram às 20h09 e saíram às 22h48.

Sobre as razões do atraso relativamente à hora combinada para o encontro já sabemos que a arguida e a testemunha Carlos Coelho disseram que ele derivou da hora a que a amiga a quem pediram para tomar conta da filha chegou a sua casa.

Este é outro contacto que não é mencionado nas cartas. Sendo certo que a entrega das armas é inequívoca tudo quanto rodeou essa entrega já não é, daí chamarmos a atenção para o silêncio das cartas quanto este aspecto.

Aliás, nas referidas cartas Carlos Coelho não se faz qualquer referência a contactos havidos com a testemunha José Cardoso anteriores a 24-11-2012, que foi o dia em que ele foi formalmente inquirido no inquérito.

Outro pormenor omitido nas cartas refere-se à limpeza do automóvel pela arguida.  Não obstante, em julgamento a testemunha Carlos Coelho relatou todos os pormenores relativos à limpeza do carro, quer sobre a limpeza mensal, quer sobre a limpeza diária.

Mas o que nos impressionou foi o pormenor da explicação no que toca à limpeza de um vidro do veículo no dia 22-11-2012, que a testemunha aceitou ter sido feita, e que em 23-6-2014 relatou da seguinte forma: «no trajecto eu ia a conduzir e verifiquei que o vidro do lado estava cheio … das narizadas da minha cadela. Ela quando põe lá o nariz aquilo fica molhado mas depois seca. À noite o sujo nota-se muitíssimo mais por causa das luzes amarelas. Eu recordo-me antes de chegar à P.J. do Porto há um cruzamento do lado direito, nós temos que olhar para ver se vem um carro ou não, e eu lembro-me de ter olhado … para o lado e de o vidro estar baço e pedi à Ana, normalmente, olha pega aí num toalhete e limpa o vidro. E foi só».

Depois, e naturalmente também para afastar o que fora dito pela testemunha José Cardoso sobre as invocadas informações prestadas por Carlos Coelho a propósito de quilómetros desconhecidos feitos pela arguida e da autonomia que o veículo apresentava, este disse que quando se preparava para vir para Coimbra, depois de ter recebido a notícia da morte da avó, olhou para os indicadores do veículo e fixou que a autonomia do carro ainda dava para 330km e que isso não lhe suscitou qualquer interrogação.

Também disse que, apesar de ainda nem sequer ter iniciado a viagem para Coimbra, decidiu não subir para ir buscar os seus produtos de higiene e, ao invés, foi às instalações da

P.J. buscar o “necessaire” que lá tinha.

Sobre isto diremos que para além de ser estranho uma pessoa, que ainda não iniciou uma viagem, tenha decidido ir buscar os produtos de higiene a um outro local, ao invés de subir e ir buscá-los a casa, para além de ser estranho a testemunha ter retido um pormenor que logo teve como irrelevante naquele momento, relativo ao combustível que o veículo teria na altura, trata-se de um outro facto que as cartas não contemplam.

Ainda sobre a referida autonomia do veículo também realçamos o detalhe do relato das viagens feitas e quilómetros percorridos pela arguida no veículo nos dias anteriores a 21-112012, tudo para demonstrar que o veículo tinha o combustível que era expectável que tivesse.

E chegou o dia do funeral da vítima funeral a que, segundo a testemunha Carlos Coelho, José Cardoso não o deixou assistir para lhe tomar declarações de imediato.

Esta questão é referida nas cartas. Sobre o assunto consta que no dia do funeral da avó, cerca das 11h, o inspector José Cardoso informou-os, a si e à esposa, que iam ser inquiridos e ambos «acederam, de imediato, a acompanhá-lo … Em face da prontidão com que se prontificou para acompanhar o sr. inspector José Cardoso, o depoente acabou por não assistir ao próprio enterro da sua avó».

E esta conversa, segundo o relato de Carlos Coelho no julgamento, começou com José Cardoso a afirmar «quem fez isto foi a tua mulher».

Carlos Coelho respondeu-lhe que isso não era possível mas José Cardoso afirmou que tinham a certeza. E elencou as razões: o lote de munições era exclusivo do Porto; tinham localizações celulares da mulher em Coimbra na tarde do dia do homicídio; tinha sido feita a comparação das munições encontradas no local e apurou-se que tinha sido a arma da inspectora Liliana a disparar. E quando Carlos Coelho objectou com a impossibilidade física de a arguida se deslocar a Coimbra para cometer o crime José Cardoso respondeu-lhe que sabia disso e que alguém a tinha que ter ajudado, ou o depoente ou «algum gajo que ela tem».

Ou seja, nas palavras de Carlos Coelho José Cardoso afirmou desta forma e num tal contexto a autoria do crime, insinuou a existência de um cúmplice, cuja possibilidade de existência nunca foi referida – nem no processo nem durante o julgamento -, e foi mais além, insinuando que a arguida manteria uma relação extraconjugal e que poderia ter sido este indivíduo que a ajudara no cometimento do crime.

Carlos Coelho referiu que lhe disse ter um casamento muito feliz e depois de insistências de José Cardoso para relatar problemas conjugais lá se recordou de 2 ou 3 episódios, em 8 anos de casamento, episódios estes que a testemunha disse ter sempre considerado totalmente irrelevantes.

E sobre o que ficou consignado nessa inquirição de 24-11-2012 respondeu que não dormia há várias noites, que estava desgastado e triste, que não conseguia encontrar qualquer explicação para o sucedido e que perante a certeza da investigação de que tinha sido a mulher a autora disse que se estatelou «ao comprido».

Traduzindo, devido à investida de José Cardoso, de todos os elementos que ele lhe indicou demonstrativos de a arguida ter matado a sua avó, aceitou tudo o que lhe foi dito acriticamente porque estava num estado de exaustão física e psíquica, aproveitada.

E aceitou ao ponto de ter validado e verbalizado, depois, esta versão.

E Carlos Coelho também explicou em que circunstâncias é que validou o teor daquele auto. Esteve muitas horas a ser ouvido e a ser confrontado com todas as informações demonstrativas de a sua esposa ser a autora do crime que vitimou a avó, ficou naturalmente muito perturbado, estava numa situação de grande cansaço físico e mental, saiu da sala, ficou mais 2 ou 3 horas à espera para assinar o auto, até que o inspector Coutinho desceu as escadas a grande velocidade, chegou junto de si, pôs-lhe o auto à frente e mandou-o assinar.

E assinou sem ler.

O que primeiro se retira daqui primeiro é que o auto que foi apresentado à testemunha Carlos Coelho não reproduz o que se passou durante a diligência de 24-11-2012. Daí as tais 2 ou 3 horas de espera.

Espera porquê, para quê?

Para que as declarações fossem ajeitadas aos interesses de José Cardoso.

Resulta, também, que Carlos Coelho assinou o auto sem ler não por qualquer relação de confiança que pudesse existir entre ambos, muito menos por concordância com o conteúdo do auto, que disse desconhecer, mas porque o inspector Coutinho compeliu a assinar sem ler quando lho pôs à frente e mandou assinar, aproveitando-se da situação de fragilidade que apresentava.

E isto para que a falsificação das declarações, referida no depoimento, não fosse detectada. E tudo isto resultado da conjugação de esforços de José Cardoso e Jorge Coutinho.

E tomadas as declarações a arguida e o marido seguiram com José Cardoso e José Romano para a Maia num veículo da P.J., uma vez que a investigação pretendia fazer uma busca à sua residência e a arguida anuiu a que ela fosse feita de seguida.

A viagem e a busca também não são referidas nas tais cartas.

De Coimbra partiram José Cardoso, José Romano, a arguida e o marido, Carlos Coelho, e todos coincidiram em que foram num mesmo veículo da P.J., porque o automóvel da arguida tinha ficado apreendido. Na tese da investigação procederam à apreensão cautelar devido à informação transmitida pelo marido da arguida que o veículo estava muito limpo quando este pegou nele, de 21 para 22, e que a arguida o tinha limpado no dia 22, quando chegaram às instalações da Directoria do Norte.

É uma coincidência curiosa a apreensão ter-se devido à necessidade de ver se o veículo estava, digamos, demasiado limpo e o facto de José Cardoso ter inventado a tal limpeza extra feita pela arguida. Se esta história era falsa não percebemos a que propósito é que a investigação cairia no logro que ela própria tinha criado: era o cúmulo pelo menos da distracção.

Se neste ponto há concordância as divergências começam logo a seguir, relativamente ao veículo utilizado e ao equipamento que este levava:

–  José Cardoso e José Romano disseram que o veículo usado foi o Citroen C4, matrícula 18DV-62, que transportava, para além de bagagem da arguida e marido, um trólei com equipamento de investigação, composto por dois compartimentos, que o acompanha sempre;

–  o director da Directoria do Centro da P.J. enviou ao processo informação dizendo que o veículo usado pelo inspector José Cardoso e segurança José Romano para realização da diligência de 24 para 25-11-2012 tem a matrícula 18-DV-62;

–  Carlos Coelho disse que o veículo apenas levava a bagagem do casal;

–  a arguida disse que o veículo usado foi um Peugeot verde, que levava uma mala de inspecção cinzenta, brilhante, pequena, e que nem o veículo nem a mala são os que constam da fotografia de fls. 2192.

E sobre o desenvolvimento da busca também já sabemos as posições.

A arguida e a testemunha Carlos Coelho disseram que não houve busca nenhuma, que ninguém saiu da sala, que ninguém esteve de luvas, que a arguida foi sozinha buscar o blusão, que estava no bengaleiro junto à entrada de casa. A arguida acrescentou que lhe foi pedido um saco para meter as coisas, que foi buscar um saco de plástico e que foi ela própria que colocou as sapatilhas, as calças e o casaco dentro deste saco, que as suas coisas não foram metidas num saco PEB e que todos os presentes viram isso.

Diferente é a versão de José Cardoso, José Romano e Mota Gonçalves, que disseram:

–  José Cardoso: retirou do trólei um saco PEB e levou-o; levou uma caixa de luvas; na busca ele e o segurança usaram luvas; percorreram todas as divisões; Carlos Coelho acompanhou-o e a arguida acompanhou José Romano; foi José Romano que foi ao quarto da arguida; no final sentou-se na sala e elaborou o auto; já com o auto elaborado pediu à arguida a roupa que ela tinha usado durante a semana; a arguida foi a um quarto, acompanhada por si, tirou um blusão que estava num cabide ao fundo da cama e entregou-lho; a arguida forneceu um saco de supermercados onde foram metidas as sapatilhas; ele colocou o saco com as sapatilhas no saco PEB, por cima colocou as calças dobradas e por cima colocou o blusão dobrado; no fim deu 2 ou 3 voltas ao saco e junto ao carro pôs-lhe fita cola; o saco PEB foi colocado na bagageira do veículo, entre as duas malas do trólei; Mota Gonçalves presidiu à diligência e acompanhou as buscas;

–  José Romano: José Cardoso levou uma caixa de luvas e um saco de papel; fez a busca aos quartos, a arguida foi consigo e ajudou-o a levantar a cama para ele ver se havia alguma coisa na caixa da cama; viu o inspector Cardoso a movimentar-se; no final este pediu à arguida a roupa, ela levantou-se, foi a um quarto, o inspector Cardoso foi com ela e regressaram com a roupa; a arguida foi buscar as sapatilhas e meteu-as dentro de um saco de plástico, que ficou atado; ele abriu o saco de papel e José Cardoso meteu o saco com as sapatilhas, depois as calças e depois o casaco; depois José Cardoso dobrou o saco; estiveram sempre de luvas e Mota Gonçalves não; deitaram as luvas no lixo e regressaram a Coimbra; quando chegaram o saco PEB estava no local em que fora colocado e nas mesmas condições;

–  Mota Gonçalves: quando subiram José Cardoso levava uma pasta; assistiu às buscas; todas as dependências da habitação foram percorridas; esteve à entrada do quarto do casal onde o segurança fez a busca; quem fez a busca mais pormenorizada foi José Cardoso e esteve praticamente em todas as dependências; eles foram acompanhados pelo casal, mas não sabe quem acompanhou quem; quando o auto estava redigido foi pedido à arguida a roupa usada no dia do homicídio; ela foi buscar as coisas a dois sítios, entregou-as e depois a roupa foi acondicionada no saco PEB; a arguida arranjou um saco de plástico para por os ténis; depois José Cardoso tirou o saco de cartão da mala que tinha levado para cima, colocou o saco de plástico dentro do saco de papel, depois as calças e por cima o blusão dobrado e dobrou a parte de cima do saco; o inspector e o segurança usaram luvas na diligência e o Cardoso desfez-se delas já no exterior.

Quando chegaram a Coimbra, depois de deixarem a arguida e o marido na Figueira da Foz, a testemunha José Cardoso levou o saco PEB para o seu gabinete e colocou-o dentro do armário onde estão guardados os processos e lá se manteve, sempre fechado, até cerca das 20h do dia 27-11-2012, quando o retirou do armário para que as peças que continha fossem fotografadas para que as fotografias fossem mostradas no dia seguinte à testemunha Raquel Ferreira, no sentido de esta dizer se aquela era roupa que a arguida usava quando foi buscar a filha ao infantário no dia 21-11-2012.

             Chamou o inspector Alcides Rainho para que colaborasse na diligência.

 Esclareceu, ainda, que todas as armas de fogo e elementos balísticos recolhidos e apreendidos são embalados no local onde são encontrados e são guardados num armário exterior, que está sempre fechado à chave e cuja chave está no gabinete do chefe.

 Uma vez que o chão do gabinete fora limpo entre cerca das 19h e como lá nunca se fizeram disparos ambos decidiram colocar o material no chão do gabinete.

Entretanto, com umas luvas calçadas, a testemunha José Cardoso retirou o saco PEB do armário, abriu o saco e verificou que tudo estava como tinha arrumado as peças e fechado o saco, na Maia. Depois tirou o blusão, depois as calças, depois o saco de plástico que tinha as sapatilhas e pousou-as no chão, conforme se vê nas fotos de fls. 377: o blusão com as costas pousadas no chão; as calças com a parte de trás pousadas no chão; e as sapatilhas com o rasto no chão.

Alcides Rainho tirou as fotografias e depois as peças foram recolocadas por José Cardoso, que continuava de luvas, no saco onde antes estavam: primeiro as sapatilhas, dentro do saco de plástico; depois as calças, dobradas; por fim o blusão, também dobrado. O saco foi fechado, como o fora aquando da busca, e ficou dentro do armário.

No dia 3-12-2012 o saco foi enviado para o laboratório a fim de ser feita perícia sobre a existência de resíduos de disparos de arma de fogo que as peças apreendidas pudessem conter.

Está dado como provado que foram detectadas partículas no blusão da arguida características/consistentes de resíduos de disparo genericamente constituídas por chumbo, antimónio e bário, sendo 5 características na amostra recolhida nas mangas e 1 na amostra recolhida na parte anterior, partículas que eram compatíveis com as detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime (facto por nós numerado como 91).

Trata-se de um elemento essencial à decisão e, por isso, vamos recordar, sumariamente, as provas que incidiram sobre o blusão.

O relatório efectuado (fls. 719 a 723) concluiu que o blusão continha partículas consistentes com resíduos de disparo de arma de fogo, genericamente constituídas por chumbo, antimónio e bário, compatíveis com disparo, manipulação ou proximidade a disparo de arma de fogo, do mesmo tipo das detectadas nos elementos municiais deflagrados das munições Sellier & Bellot calibre 9 mm Parabellum, JHP 115 grains, que maioritariamente armam os inspectores da P.J.  Na sequência de pedidos de esclarecimentos os peritos disseram mais o seguinte (fls. 778 e 779): «… Quando ocorre a deflagração de uma munição é produzida uma nuvem de resíduos do disparo com uma geometria que é essencialmente função do tipo de arma. Esta nuvem deposita-se sobre o atirador e zonas limítrofes, ficando os resíduos depositados por retenção mecânica ou por retenção termodinâmica. Após o(s) disparo(s) o padrão é perturbado por toda e qualquer actividade, dando lugar à perda de partículas em função dessa actividade … foram detectadas cinco partículas características de resíduos de disparo na amostra recolhida nas mangas e uma partícula na amostra recolhida na parte anterior do blusão …».

                                       Foram pedidos mais esclarecimentos, que obtiveram as seguintes respostas (fls. 1441 e

1442) dos quais consta mais o seguinte: «A quantidade de resíduos depositados, seja da referida composição, seja de outra, é essencialmente função do tipo de arma, tipo de munição, condições ambientais e número de disparos.

Após o(s) disparo(s) o padrão é perturbado por toda e qualquer actividade, dando lugar à perda de partículas em função dessa actividade. Assim, a possibilidade de detectar resíduos de disparos numa peça de vestuário irá depender do número de partículas depositadas e do intervalo de tempo decorrido entre o(s) disparo(s) e a recolha de vestígios (ou da altura em que a peça de vestuário deixou de ser usada e ficou ao abrigo da exposição aos elementos atmosféricos).

A maioria dos estudos sobre persistência de resíduos de disparos em peças de vestuário apontam para um intervalo de tempo de cerca de vinte e quatro horas …

  1. A composição das partículas características de resíduos de disparos de armas de fogo referida (chumbo, antimónio e bário) não é exclusiva dos elementos municiais deflagrados da marca e calibre descritos …
  2. As munições de calibre 9x19mm disponíveis nesta Polícia para uso em carreira de tiro interna, como a existente na Directoria do Norte da Polícia Judiciária, são do tipo Sintox. Por definição este tipo de munições não contém chumbo, antimónio ou bário na composição primária. Como tal, os resíduos de disparo destas munições não apresentam os elementos referidos na sua composição.

… os resíduos de disparos transferem-se para um atirador e objectos circundantes (como roupas, por exemplo) por exposição directa à nuvem de resíduos libertada aquando do disparo. Pode ainda ocorrer transferência secundária, por exemplo através do contacto com objectos que apresentem resíduos de disparos».

Conclui-se daqui que os resíduos encontrados no blusão da arguida não resultaram de disparos feitos na carreira de tiro interna da P.J. e nem de contaminação secundária de resíduos destes disparos.

E mais uma vez foi pedido para que se esclarecesse se os resíduos encontrados no blusão podem ter perdurado até ao dia da perícia e sobre a probabilidade de transferência secundária.

Sobre isto consta (fls. 1513): «Podem … dadas as características físicas dos resíduos de disparo de armas de fogo, estes hiatos temporais reportam-se ao uso contínuo da peça de vestuário, ou seja, a sua contagem é interrompida sempre que a peça deixe de ser usada».

Entretanto o consultor técnico também se pronunciou sobre a questão e disse, além do mais:

–  as partículas características de disparo de arma de fogo são as fortemente associadas a disparo de arma de fogo; a sua composição química elementar inclui as seguintes combinações: chumbo, antimónio e bário; gadolínio, titânio e zinco e gálio, cobre e estanho no caso de munições não tóxicas ou sem chumbo; a presença de partículas características numa amostra pode resultar de disparo de arma de fogo, de permanência nas proximidades aquando do disparo, do contacto com superfície/objecto contaminado ou contacto com arma/munição contaminadas;

–  as partículas consistentes com resíduos de disparo são as associadas a disparos de arma de fogo mas que podem ter origem noutras fontes ambientais: tintas, ligas metálicas, canalizações, combustíveis fósseis, fogo de artifício, airbags, discos de travão. A composição química elementar inclui as seguintes combinações: bário, cálcio e silício; antimónio e bário; chumbo e antimónio; bário e alumínio; chumbo e bário; chumbo, bário, cálcio e silício; titânio e zinco ou estrôncio, no caso de munições não tóxica ou sem chumbo. A presença destas partículas numa amostra pode resultar de disparo de arma de fogo, de permanência nas proximidades aquando do disparo, do contacto com superfície/objecto contaminado, do contacto com arma/munição contaminada ou de fontes ambientais referidas;

–  uma das metodologias mais aceites para pesquisa de resíduos reside na análise de amostras, onde são pesquisados os resíduos de disparo de natureza orgânica;

–  as partículas em questão resultaram da deflagração do fulminante que, devido à sua natureza inorgânica, têm grande durabilidade, podendo perdurar indefinidamente nas roupas se estas forem conservadas em condições ambientais normais: se depois da deflagração foram conservadas em gaveta/armário; se não foram lavadas; se não foram usadas; se não foram manipuladas; se não foram postas em contacto com superfícies que as possam contaminar, caso em que não sofrem degradação;

–  as acções da vida diária geram perda de partículas de resíduos ao longo do tempo após o disparo, normalmente as de maiores dimensões;

–  relativamente à influência do tecido na eficiência da amostragem de resíduos quanto maior for a libertação de fibras do tecido menor será a eficácia da amostragem de resíduos de disparo com fita adesiva, sendo que, por exemplo, a amostragem em cabedal permite a detecção de 3 vezes mais partículas do que em algodão e de 5 vezes mais do que em lã;

–  no caso de o blusão ter sido usado depois do evento deve considerar-se a perda de resíduos, bom como a contaminação secundária, onde se deve atender à actividade profissional;

–  também de deve considerar a possibilidade de contaminação depois da apreensão caso não tenha havido preservação da cadeia de custódia da prova até ao exame;

–  não há preservação da cadeia de custódia se todas as peças foram colocadas no mesmo saco e se o saco foi colocado na bagageira do veículo sem quaisquer cuidados;

                                   Na audiência a perita Fátima Machado referiu:

–  as peças iam no mesmo saco PEB, sendo que as sapatilhas iam dentro de um saco de plástico que estava dentro daquele;

–  as zonas das mangas, parte anterior e capuz são as zonas mas propícias a deposição directa de resíduos de disparo de arma de fogo;

–  nas calças fez a recolha na parte anterior;

–  se a peça liberta muitas fibras divide-se mais a peça e fazem mais recolhas; uma peça de material sintético, como o blusão, é um material muito liso, liberta poucas fibras e a eficiência de recolha é superior;

–  a deflagração é uma reacção química, fortemente isotérmica, isto é, expansiva, que liberta todo o material lá contido, que vai projectar o projéctil em direcção ao alvo;

–  durante esta reacção os compostos do fulminante misturam-se com os compostos da carga propulsora/pólvora e reagem quimicamente;

–  nos compostos que estão no primário há elementos ricos em determinados elementos, por exemplo chumbo, antimónio e bário, e na altura da deflagração da munição dá-se uma reacção entre esses elementos e entre todos os elementos libertados, formam-se algumas partículas com determinadas características de morfologia e composição e as partículas características têm, simultaneamente, chumbo, antimónio e bário, partículas de natureza inorgânica, metálica, consideradas altamente específicas da deflagração de munições de arma de fogo;

–  este é o método actualmente aceite pela maioria dos laboratórios forenses para a pesquisa dessas partículas;

–  no caso foram identificadas partículas com essas características.

            O consultor técnico também depôs e disse:

–  é possível transferência secundária entre peças;

–  não é possível a contaminação entre a bagageira de um veículo e as peças colocadas no interior de um saco fechado.

Sobre as condições das instalações da Directoria de Coimbra da P.J., no que à disseminação de resíduos de disparo de arma de fogo respeita, o seu director enviou ao processo as seguintes informações (fls. 3569 a 3571):

–  nunca teve conhecimento de ter ocorrido qualquer deflagração produzida por arma de fogo dentro das instalações;

–  quanto a deflagrações no exterior a última situação comunicada foi em Setembro de 2011, em Nelas;

–  a carreira de tiro utilizada pela Directoria do Centro da P.J. situa-se na Figueira da Foz;

–  em regra as armas de fogo apreendidas são recolhidas e transportadas pelos funcionários do Núcleo de Perícia Criminalística, que usam viaturas e instalações específicas. São sempre acondicionadas em sacos de prova, entram no veículo dentro desses sacos e permanecem nos sacos. Em caso de necessidade de serem examinadas ou fotografadas são retiradas, pontualmente e com os cuidados devidos, dos sacos e lá são de novo colocadas. Havendo que as remeter para o LPC ficam nas instalações pouco tempo e enquanto permanecem ficam guardadas ou no cofre transitório do piquete, ou nos cofres ou armários existentes para guardar apreendidos ou no armeiro principal/casa forte, acondicionados nos respectivos sacos e com a indicação do processo a que respeitam. Se regressarem são colocadas no Depósito dos Apreendidos, que é no armeiro principal, até que o tribunal lhes dê destino e sempre dentro do saco de prova;

–  entre 1 e 4 e no dia 8-10-2012 realizou-se instrução de tiro na carreira de tiro e o veículo 18DV-62 não foi utilizado no transporte de e para a carreira de tiro;

–  no ano de 2012 não há registo de qualquer disparo feito em serviço pelo inspector José Cardoso;

–  José Cardoso não frequentou as sessões de tiro de Outubro de 2012.

Do processo consta um outro parecer técnico, elaborado pelo LPC (fls. 3667 a 3669), que diz:

–  quando ocorre a deflagração de uma munição numa arma de fogo são produzidos vestígios dessa deflagração, que se depositam isotropicamente sobre o autor do disparo e sobre as zonas limítrofes, até uma distância de 2m, fixando-se mecanicamente pela sua dimensão e termodinamicamente pela sua temperatura: esta é a transferência primária;

–  após a transferência primária de resíduos qualquer contacto com uma superfície onde eles se encontrem depositados pode originar uma transferência secundária dos mesmos;

–  neste caso a fixação dos resíduos é apenas mecânica;

–  por isso a detecção de resíduos de disparo de armas de fogo em amostras recolhidas num sujeito ou no seu vestuário permite concluir se ele disparou ou esteve próximo a um disparo de arma de fogo enquanto envergava as peças de vestuário em causa, ou se manipulou uma arma de fogo;

–  sendo uma arma de fogo a superfície onde é mais expectável a presença de resíduos fisicamente nada obsta a que estes resíduos se encontrem depositados noutras superfícies, tais como locais onde tenham sido realizado disparos, tenham sido colocadas armas de fogo ou que sejam frequentados por quem efectue regularmente disparos;

–  academicamente é sempre necessário considerar estas hipóteses como plausíveis e, caso estas se verifiquem, realizar os necessários actos periciais ulteriores para descartar ou confirmar as hipóteses adicionais;

–  em caso de impossibilidade da realização destes actos periciais ulteriores deixa de ser inequívoca a possibilidade da correlação entre os vestígios encontrados e a ocorrência em investigação;

–  no âmbito do reforço da validade das conclusões verificou-se uma alteração de paradigma de objectivo deste tipo de perícias: da mera determinação da presença de resíduos de disparo de armas de fogo passou-se a ter como objectivo determinar a presença de um número significativo de partículas características de resíduos de disparo de armas de fogo ou seja, determinar a presença de um número de partículas cuja presença não possa ser atribuída a um acontecimento fortuito pela quantidade das mesmas;

–  no caso do LPC-PJ este número mínimo é de 5 partículas;

–  sobre a probabilidade de transferência secundária de resíduos de disparo de armas de fogo pelo contacto de peças de vestuário com superfícies existentes em instalações policiais academicamente a hipótese tem de ser colocada e concretamente avaliada;

–  a potencial presença de resíduos em instalações polícias está intrinsecamente ligada ao uso de armas de fogo por parte dos elementos dessas polícias bem como ao contacto das superfícies presentes nessas instalações com superfícies onde estejam depositados resíduos de disparo de armas de fogo tais como, passe a aparente redundância, as armas propriamente ditas;

–  a realidade do uso de armas de fogo por parte de elementos policiais em Portugal, em particular dos elementos da Polícia Judiciária, é inequivocamente distinto de outras realidades;

–  o uso operacional é consideravelmente reduzido;

–  as sessões de treino de Coimbra são apenas trianuais e em local distinto da Directoria, como referiu o seu director;

–  assim, a hipótese académica de uma transferência secundária em ambiente policial é real mas não invalida a perícia, implicando obrigatoriamente a realização de ulteriores actos periciais tais como a avaliação de amostras de controlo significativas.

–  para que a perícia em causa não seja redundante são necessários ulteriores actos periciais por forma a poder estabelecer um nexo de casualidade com uma ocorrência específica com um grau de probabilidade claramente distinto da probabilidade de uma transferência secundária;

–  no caso concreto, embora reduzida a probabilidade da presença de resíduos de disparo na sala da Directoria do Centro da PJ é real e equiprovável em relação a qualquer ponto da superfície em causa e, assim sendo, o facto de terem sido encontrados resíduos de disparo de armas de fogo no blusão e não nas calças torna esta peça de vestuário uma amostra de controlo significativa;

–  por isso é idóneo concluir que é claramente distinto o grau de probabilidade dos resíduos de disparo de armas de fogo detectados no blusão terem origem num disparo, proximidade a um disparo ou manipulação de uma arma de fogo por parte de quem o envergou do grau de probabilidade de estes resíduos terem origem numa transferência secundária;

–  esta conclusão é reforçada pelo facto de, considerando as características das partículas de resíduos, ser mais expectável encontrar resíduos de disparo de armas de fogo por transferência secundária nas calças, devido ao tipo de tecido, do que no tecido do blusão.

Ora, não só as calças não apresentavam vestígios como, tal como o blusão, foram estendidas no chão com a parte posterior para baixo. E na parte posterior do blusão não foram encontrados vestígios.

Agora, e sobre a actividade da arguida, sabemos nos dias anteriores e posteriores ao crime ela esteve de baixa, sabemos que no dia 21 usou o blusão e sabemos que no dia 25 ela foi buscar o blusão ao quarto. Para além disso no âmbito das suas funções a arguida não fez disparos operacionais pelo menos durante o ano de 2012.

De tudo resulta que no blusão da arguida, que não usou diariamente nos dias anteriores ao crime, que nem sequer era conhecido pela colega Rute e por Raquel Ferreira, que desde o dia 21 esteve em ambiente protegido, foram recolhidas cinco partículas características de resíduos de disparo de arma de fogo nas mangas e uma partícula características de resíduos de disparo de arma de fogo na parte anterior do blusão, constituídas por chumbo, antimónio e bário, do mesmo tipo das detectadas nos elementos municiais deflagrados das munições Sellier & Bellot calibre 9 mm Parabellum, JHP 115 grains, partículas estas compatíveis com as detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime e que estes resíduos resultaram de transferência primária.

Regressando ao fim da diligência de busca, terminada na madrugada de 25-11-2012, a testemunha Carlos Coelho disse que José Cardoso e José Romano os foram levar à Figueira da Foz e foi aqui que confrontou a esposa com a sua vinda a Coimbra no dia do crime e quando ela negou e perguntou porque é que ele o afirmava respondeu-lhe que não podia falar.

E não podia falar, informou o tribunal, porque José Cardoso lhe tinha dito «não falas isto com ninguém».

Perante a certeza que lhe foi transmitida por José Cardoso, que a arguida tinha estado em Coimbra no dia em que a avó foi morta, disse que quando ela negou ficou convencido da culpa da mulher, saiu de casa, veio para Coimbra, disse à sua mãe que se ia divorciar, esta perguntou-lhe porquê e mais uma vez não explicou nada porque «tinha sido terminantemente proibido de falar».

Nesse dia, durante a tarde, esteve com José Cardoso, este reafirmou o que já tinha dito e acrescentou que sabia que a arguida «recebeu sms em Coimbra naquela tarde». Aparentemente a intenção seria reforçar a tese do cúmplice.

E eis nova situação peculiar e estranha: um homem, com uma relação sentimental de 8 anos, que ele apelida de feliz, onde diz haver amor e confiança – que nem sempre andam de mãos dadas -, durante a qual nunca houve problemas de monta – uma relação que nem sequer sofria dos males que afectam tantos casamentos -, onde havia romantismo e namoro – recordemos o dia 19-11-

2012, o aniversário de casamento, o casal fez uma massagem romântica e bebeu espumante e comeu morangos -, pois este homem acreditou facilmente que a esposa tinha matado a avó.

As regras da vida, da normalidade, dizem-nos que até a verdade mais evidente que ponha em causa um ente querido é negada até deixar de o poder ser: a reacção é negar, negar sempre. E não estamos a pensar na imputação do homicídio de um familiar e muito menos cometido nas circunstâncias que rodearam o homicídio da vítima. E também não estamos a pensar em alguém com quem se mantenha uma relação afectiva e de confiança tão profunda como aquela que Carlos Coelho verbalizou corresponder à sua relação com a arguida.

No entanto, apesar de tudo isto Carlos Coelho teve a reacção que descreveu, totalmente contrária à experiência de todos nós.

E o facto de a imputação ter sido feita por pessoa cuja profissão é a investigação criminal que, no caso, levaria a uma eventual inversão do comportamento normal, é, no caso, indiferente: se esse facto até poderia intimidar alguns cidadãos, recordemos que a testemunha Carlos Coelho se dedica a esta mesma actividade profissional.

Explicando o inexplicável disse a testemunha Carlos Coelho, de novo, que aquele foi um período muito mau, que estava em choque, sem dormir há vários dias e, por tudo isso, reagiu assim. É claro que, não pondo nós em causa nada disto, não aceitamos a explicação para a aceitação rápida e pacífica com que ele disse ter acolhido a informação, terrível para qualquer pessoa, de um ente querido ser o autor de um tal crime.

E não se argumente que estava em choque pela morte da avó porque o choque sofrido com a notícia de ser a esposa a autora do crime superaria em muito, seguramente, o choque da notícia da morte da avó nas circunstâncias que a rodearam. Aqui também apelamos à normalidade da vida.

                                   Por tudo isto esta tese não nos convence.

 Mas se a versão apresentada por Carlos Coelho correspondesse à realidade tal significaria que estávamos perante uma pessoa muito influenciável, sem qualquer firmeza nas convicções, nem mesmo nas respeitantes às pessoas mais importantes da sua vida.

E se, aceitando o que lhe havia sido dito, depois ainda tivesse sugerido à esposa que havia problemas muito graves, tivesse sugerido que não acreditava nas respostas que ela dava às questões que ele colocou e depois, perguntado por ela sobre o que estava a acontecer, não lhe dissesse do que se tratava porque tinha sido proibido de falar então tudo isto era o cúmulo da traição e da irresponsabilidade. Traição porque protegia um colega de trabalho em desfavor da sua esposa, sem que nenhuma razão fizesse perceber a escolha, e irresponsabilidade porque estava objectivamente a prejudicá-la ao não a informar do que se estava a passar.

Mas para este tribunal não se verifica nem a referida fraqueza de convicções, nem a deslealdade porque a tese da testemunha Carlos Coelho não colheu.

A total omissão de explicações só é lógica por sido ele próprio que logo suspeitou da esposa e que comunicou essa suspeita.

Ainda na tese da testemunha Carlos Coelho ele aceitou o que foi dito e verbalizou-o, repetidamente, para a família. Disse aos familiares que a esposa era a autora do crime que vitimara a avó mas também não disse as razões pelas quais o dizia porque, repetiu de novo em tribunal, tinha sido proibido de falar.

Ou seja, para Carlos Coelho não havia qualquer problema em afirmar, perante terceiros, que era a esposa tinha matado a avó. O problema só se colocava quanto à origem da informação: para ele, o problema residia, apenas, em dizer que tinha sido o inspector que dirigia a investigação que o dizia. E como estava proibido de o dizer não o disse. E também não havia problemas em lançar no seio da família uma verdadeira bomba e não explicar nada.

Como vimos Carlos Almeida disse que o sobrinho lhe disse, por duas vezes e em momentos diferentes, que «estava convencido a 99,9%» que a arguida tinha sido a autora do crime e que só não era a 100% «porque não queria acreditar que» tivesse sido ela. Na segunda vez ele estava calmo e foi afirmativo.

E o mesmo disse Albertina Almeida. Mas disse, ainda, que quando soube da detenção da arguida telefonou ao sobrinho e que ele lhe disse que era verdade e explicou porquê. Nos dias seguintes, por telefone, e no dia da missa do 7º dia voltou a dizer o mesmo.

Recordemos, mais uma vez, que Carlos Almeida e Albertina Almeida disseram ter bom relacionamento com o sobrinho.

A segunda vez que Carlos Coelho disse à família que tinha sido a arguida quem matara a sua avó foi em Vendas Novas, em casa dos tios.

E foi nesse dia, disse, depois de regressar a Coimbra que começou a «descontruir» a história que lhe tinham contado.

Quando chegou a Coimbra foi a casa do amigo Pedro Melanda. Ao amigo contou tudo o que se estava a passar, tudo o que lhe tinham dito, e foi na conversa com o amigo que tudo se clarificou.

Ele disse-lhe que não era possível a arguida ser a autora do crime e explicou-lhe porquê:

–  disse que tinha saído na comunicação social que ela tinha sido vista por uma vizinha às 14h15/14h30 desse dia e se o homicídio tinha sido às 16h ela não tinha tido tempo para chegar a Coimbra;

–  ele perguntou se tinha falado de problemas de dinheiro, respondeu que não, e o amigo disse que isso também tinha saído na comunicação social;

–  também disse que podia ter sido o irmão da avó, com quem ela tinha conflitos.

E só perante estas palavras a testemunha Carlos Coelho começou a pensar que a mulher não tinha condições para trazer o carro até Coimbra, que não sabia vir para Coimbra por estradas secundárias, que não sabia concretamente onde a avó morava. Também pensou nas motivações para o crime e não descobriu nenhuma e, para além de tudo isso, sabia que ela nunca faria nada que pusesse em risco a sua relação com a filha.

Ou seja, num caso tão especial como aquele que a família estava a viver Carlos Coelho confiou ao amigo aquilo que não tinha confiado à família e nem sequer à esposa, seguramente a pessoa mais interessada nas informações que o marido tinha.

Para além disso parece que as informações referidas pelo amigo eram dados novos, desconhecidos até ao momento, e que por isso o levaram a ver o que não tinha visto antes.

Esta conversa decorreu já no mês de Dezembro e a primeira conversa de Carlos Coelho com José Cardoso foi em 22-11-201 e a detenção da arguida deu-se em 26-11-2012. Muito tempo já tinha passado e Carlos Coelho ainda não tinha chegado àquelas conclusões.

Para além disso só em Fevereiro seguinte deu conta que tinha esclarecimentos a prestar e só em julgamento afirmou que nada do que lhe havia sido atribuído era verdadeiro.

Confiar num amigo é normal, confiar na família para dar uma informação tão importante é normal, não confiar na esposa e não confiar na família para, naquela situação, explicar as razões que o levavam a dizer o que dizia não é anormal. Por isso a tese não convence.

                                    Segue-se a lesão que a arguida tinha na mão.

 Alcides Rainho disse ter ido à Figueira da Foz no dia 26-11-2012, à tarde, na companhia do colega Coutinho, de quem também já falámos, para mostrarem à arguida um computador que o marido entregara. Soube do caso e das informações transmitidas pelo marido, nomeadamente da lesão que ela teria na mão, nesse dia.

A arguida tinha uma camisola com as mangas muito puxadas e só se via as pontas dos dedos. A determinada altura viram-lhe um ferimento na “tabaqueira anatómica” da mão direita e o colega Coutinho disse que parecia uma lesão da carreira de tiro. A arguida respondeu que já tivera lesões dessas mas que eram diferentes.

Recordemos que esta testemunha disse que sempre se deu bem com a arguida, que até foi ao casamento, e nada disto foi contrariado. Aliás, não foi afirmada nem sugerida a existência de conflitos abertos ou latentes entre a arguida e ou o marido e qualquer das testemunhas cujos depoimentos foram analisados.

Também sabemos que a arguida disse que a lesão resultou de uma queimadura quando estava a fazer o jantar do dia 19 e também disse que no sábado anterior tinha estado todo o dia com o inspector Coutinho e que ele nada tinha dito sobre tal assunto, o que significa que o inspector Coutinho não lhe atribuiu qualquer significado, contrariamente ao afirmado por Alcides Rainho.

Agora e sobre lesões na mão provocadas por disparo de arma de fogo a arguida disse que nunca as teve e que nunca teve conhecimento de lesões ocorridas nestas circunstâncias. Carlos Coelho disse que nunca presenciou e nunca soube da existência de lesões provocadas naquelas circunstâncias e que as Glock têm uma aba de protecção que impede qualquer lesão. Também Miguel Sousa disse que nunca viu lesões na região tabaqueira das mãos provocadas por Glock e que estas armas permitem uma empunhadura mais consistente, que protege a mão.

Portanto, a arguida, Carlos Coelho e Miguel Sousa não só nunca tiveram lesões provocadas pela empunhadura da arma, como nunca viram tais lesões e nunca ouviram falar de lesões provocadas no atirador pelo disparo de arma de fogo.

Sobre a carreira de tiro a testemunha Miguel Sousa disse que mesmo não sendo os tiros que dão na carreira de tiro seguidos mantém-se a mesma empunhadura até ao final.

Diferentemente foram os depoimentos de outras testemunhas sobre lesões da mão provocadas por disparo de arma de fogo. Vejamos o que disseram:

            Alcides Rainho, instrutor de tiro desde 2000, com vários cursos de tiro feitos

–  quando viu a lesão da mão da arguida associou-a a disparos em carreira de tiro, porque a lesão era compatível com lesões decorrente de má empunhadura;

–  com armas Glock estas lesões não são frequentes mas acontecem;

–  o normal nas sessões de tiro é disparar um ou dois tiros e colocar a arma no coldre: quando empunha de novo a arma «recupera-se» a empunhadura e, por isso, não é normal haver lesões;

–  quando se aumenta o número de disparos «vai-se perdendo a empunhadura» e isso facilita as lesões;

  • Vitor Teixeira, responsável pela instrução de tiro na Directoria do Norte da P.J., que iniciou a prática de tiro em 1984, que esteve 10 anos na vida militar, onde também foi instrutor de tiro e responsável por uma carreira de tiro militar

–  qualquer instrutor conhece bem a lesão com o nome de «morder a mão», provocada pelo vaivém da corrediça que, ao vir atrás, provoca uma pequena deslocação da arma e ela roça na mão;

–  já viu estas lesões muitas vezes e elas estão muito associadas ou a inexperiência ou o tiro rápido ou a stress;

  • Sérgio Taipa, instrutor da Directoria do Norte da P.J.

–  já viu lesões na região tabaqueira da mão de atiradores provocadas pelo próprio em resultado do disparo;

–  normalmente estas lesões são devidas ao movimento da corrediça à retaguarda ou à empunhadura: se esta estiver mal efectuada surgem os ferimentos;

–  a empunhadura é como a arma vem sacada quando se saca;

–  a lesão que se vê a fls. 120 podia ser uma lesão dessas provocadas em carreira de tiro;

  • Machial Pinto, instrutor de tiro desde 1998 na Directoria do Norte e mestre atirador

–  nas sessões de tiro por cada estímulo faz-se duplo disparo: saque e dois disparos porque o que se pretende é treinar o saque-empunhadura;

–  despejar o carregador numa só empunhadura provoca alterações na empunhadura porque a arma vai saltando e mesmo com uma boa empunhadura é possível a arma provocar uma lesão na mão;

–  já viu estas lesões provocadas por Glock e com uma empunhadura correcta;

–  a lesão é uma escoriaçãozita na mão;

–  a lesão que se vê nas fotografias de fls. 120 são compatíveis com essas lesões.

Ou tribunal não deu qualquer relevo aos depoimentos destas testemunhas, com comprovada experiência profissional de muitos anos na matéria.

Ao invés, convocou para decidir o depoimento prestado por Agostinho Santos, que teve como a única pessoa ouvida em julgamento com conhecimentos médicos e balísticos suficientes para fazer uma apreciação comparativa de tal lesão com as habitualmente verificadas em virtude de disparos de armas de fogo e que afirmou que tal lesão não é típica do mau manuseamento de arma de fogo, o facto de a arma não potenciar lesões e, ainda, o facto de a arguida ser boa atiradora e ter boa empunhadura.

Considerando que a lesão era uma contusão e que a causa estava reportada ao uso de arma de fogo não vemos como é que a pronúncia sobre isto exigia conhecimentos médicocientíficos.

Mas o tribunal foi mais longe. Considerou Agostinho Santos como a única pessoa ouvida em julgamento com conhecimentos balísticos suficientes para fazer uma apreciação da lesão e compará-la com as habitualmente decorrentes de disparos de armas de fogo, isto apesar de ele ter dito, expressamente, não ter experiência nesta área.

Já sobre os demais depoimentos sobre o assunto o acórdão refere, em nota de rodapé, que «as demais testemunhas ouvidas … eram inspectores da polícia judiciária cujo conhecimento demonstrado residia apenas no facto de terem na sua profissão visto lesões nas mãos resultantes da má empunhadura de uma Glock, não tendo qualquer conhecimento médico que suportasse as suas afirmações, sendo, deste modo, meras impressões sem qualquer fundamento médico-cientifico».

Ou seja, para o tribunal a experiência profissional de muitos anos de uso de armas de fogo e de treino de armas de fogo foi irrelevante.

E perante tudo isto o tribunal decidiu que «sendo a arguida uma boa atiradora … dificilmente a mesma teria mantido naquela situação uma má empunhadura donde resultasse uma lesão na mão, tanto mais que a Glock é uma arma ergonomicamente muito segura».

O tribunal retirou do facto de a arguida ser boa atiradora que ela nunca faria uma má empunhadura e que nunca a fazendo nunca poderia ter sofrido uma lesão derivada de disparo de arma de fogo, para além de ter considerado que disparos feitos com Glock não provocam lesões na mão do atirador.

E temos uma última referência a fazer sobre o depoimento da testemunha Carlos Coelho.

Ele referiu que no dia 21-2-2013 o tio telefonou-lhe e que lhe disse que estava muito preocupado porque tinha acabado de falar com o inspector Cardoso, que este lhe dissera que ele, o sobrinho, tinha escrito uma carta para o processo a dar esclarecimentos e que eles – presumimos que se referia à instituição -, estavam muito zangados.

Perguntou ao tio como sabia disso, uma vez que o processo estava em segredo de justiça, o tio reafirmou que tinha sido o inspector Cardoso que lho dissera. O tio também lhe disse que eles estavam «piurços, doidos», que ele não podia ter escrito aquela carta e que também lhe disseram para ter cuidado com o emprego que ainda o ia perder. Respondeu ao tio que tudo o que tinha dito na carta era verdade e o tio disse-lhe para ele ter cuidado, que tinha uma filha para criar.

Portanto, José Cardoso não só mantinha a história que tinha inventado como agora, perante a possibilidade de ela se desmoronar, teria passado a fazer ameaças.

Por tudo isto, e repetindo, a testemunha Carlos Coelho teve três posições no processo:

primeiro, de informador, ao prestar informações à P.J. sobre a autoria do crime; depois, assumiu alguma precipitação no depoimento prestado em 24-11-2012 e, por isso, escreveu as cartas a esclarecer o que se tinha passado; finalmente, em julgamento assumiu-se em confronto com toda a investigação, imputando a esta a autoria dolosa de toda a história contada na acusação.

*

*

 

                                 III – ALTERAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

A alteração da decisão sobre a matéria de facto pode derivar não só do controlo da concordância entre a decisão tomada com a prova produzida, interpretada de acordo com as regras legais sobre a matéria, mas também por via da verificação de algum dos vícios descritos no nº 2 do art. 410º do C.P.P.

Nos termos desta norma pode sempre conhecer-se dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou do erro notório na apreciação da prova desde que tais vícios resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O conhecimento destes vícios é próprio do modelo de revista alargada adoptado pelo nosso código de processo, permitindo o conhecimento das contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, dos erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, das dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida.

Na medida em que estes vícios têm que resultar do texto da decisão significa que lhe são intrínsecos, que são vícios da decisão e não erros de julgamento. Daí que a sua constatação tenha que resultar da leitura, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam exteriores, mesmo se constantes do processo, com excepção das regras da experiência.

Conceptualmente, o vício do erro notório na apreciação da prova acontece quando o tribunal dá como provado um facto logicamente inaceitável, notoriamente errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro facto

Quanto ao carácter notório do erro, o que se diz é que ele deverá ser interpretado nos termos do conceito de facto notório em processo civil: haverá erro notório quando o homem médio o detecte com facilidade, quando, para a generalidade das pessoas, seja evidente que a conclusão é contrária à opção do tribunal [27].

O Ministério Público invoca várias vezes a ocorrência do vício do erro notório na apreciação da prova.

No entanto, considerando o alegado no recurso e tudo o que antes referimos, entendemos que o que sucede é que a decisão da matéria de facto está em desconformidade com a prova produzida.

*

 A prova pretende comprovar a realidade dos factos, a verdade ou a falsidade de uma proposição concreta ou fáctica, criar no juiz o convencimento da existência de certos factos.

Na perspectiva da acusação o que se pretende é criar a convicção de que os factos imputados foram praticados pela acusada e nos termos indicados.

            E produzidas as provas pode acontecer:

–  que se prova que os factos alegados na acusação ocorreram;

–  que se prova que os factos não aconteceram; – que não se prova que os factos aconteceram;

–  ou o tribunal fica confrontado com uma dúvida inultrapassável quando à participação nos factos.

No primeiro caso sobrevém a condenação e em todos os demais, embora por razões muito diversas, segue-se a absolvição.

Sendo certo que é a 1ª instância que tem o contacto directo, imediato, com as provas, que é a 1ª instância que decide o caso, no âmbito das decisões proferidas em recurso os tribunais superiores analisam a decisão que decidiu o caso e, quando esteja em causa a decisão de facto, analisam as provas convocadas, o cumprimento das regras de produção e apreciação das provas, a sindicância da conformidade entre a decisão de facto e as provas relevadas, a fundamentação da decisão recorrida e procede à alteração da decisão da 1ª instância quando ela não se apresente como uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência.

Na segunda instância, exactamente como na 1ª, a condenação tem que assentar na certeza da prática, pelo agente, do crime imputado.

Como dissemos, a absolvição pode resultar da prova da inocência do agente, de não se ter provado que cometeu os factos ou de o tribunal ficar na dúvida se os cometeu.

Neste último caso o desfecho do processo obtém-se por intervenção do princípio in dubio pro reo, que constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação, inscrito no art. 127º do C.P.P., que impõe a orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos.

Ao nosso direito processual penal preside o princípio da investigação: cabe ao tribunal investigar e esclarecer o facto submetido a julgamento não no sentido de indagar, autónoma e exaustivamente, tudo o que hipoteticamente possa ter rodeado o crime, mas investigar as circunstâncias que o possam ter rodeado quando a sua verificação seja invocada ou quando o tribunal suspeite da sua existência, sendo que na sua actividade de esclarecimento do facto não está limitado pelo material aduzido pelos demais sujeitos processuais. Isto porque o processo penal persegue a verdade material [28].

Competindo ao juiz, em ultima instância, o dever de esclarecer o facto isto significa que quando, não obstante a prova recolhida, ele não alcance esse esclarecimento então os factos desfavoráveis não esclarecidos não poderão considerar-se provados: «un non liquet na questão da prova … tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» [29].

A dúvida que determina a decisão “pro reo” é uma dúvida positiva, racional, que elide a certeza contrária, é uma dúvida que impede a convicção do tribunal: «são a face e a contra face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva … Ao ordenar que a dúvida seja resolvida a favor do réu, o princípio que analisamos funciona também como complemento irrenunciável do princípio da prova livre. O facto de existir uma orientação vinculativa para os casos duvidosos limita a liberdade de apreciação do juiz. Impede-o de decidir com o seu critério pelo menos uma parte do objecto da prova: os factos duvidosos desfavoráveis ao arguido …» [30].

A convicção que determina a condenação tem que ser ainda mais clara, objectiva e objectivável, assente numa justificação clara da certeza da perpetração do crime pelo agente.

E a esta é indispensável a fundamentação clara do decidido.

Por isso nos detivemos longamente sobre os aspectos essenciais, sobre as provas decisivas.

Mas para além dos factos provados na decisão da matéria de facto releva, ainda, a falta de prova de contra-indícios que poriam em causa as provas positivas, ou seja, aquelas que apontam no sentido de o acusado ser o autor do crime.

No caso temos que não se provou que o blusão apreendido no processo fosse de uso corrente pela arguida, porque não foi reconhecido por pessoas que com ela conviviam, não se provou que a arguida o tivesse usado depois do dia 21, não se provou que as condições de saúde impedissem a deslocação da arguida nem se provou que não tivesse tido tempo para cometer o crime.

E porque o que vale na apreciação da prova é o conteúdo da prova apreciado segundo as regras de produção da prova, as leis de proibição de prova, as regras da experiência, a lógica, entendemos que o furto da arma da inspectora Liliana foi levado a cabo pela arguida.

A arguida teve possibilidades de o fazer, dia após dia. O gabinete da inspectora Liliana era quase em frente ao gabinete da arguida, esteve, durante muito tempo, vazio durante grande parte do dia, mesmo se fechado à chave era possível abrir o módulo de gavetas onde a inspectora Liliana guardava a arma sem chave e nem sempre ele estava fechado à chave.

Depois, só os directores e inspectores da casa não eram controlados quando saíam das instalações.

A arma furtada foi uma Glock calibre 9×19 mm, também chamado calibre 9 Luger ou 9 Parabellum. Também foi furtado um carregador, que estava no interior da arma, e que estava municiado com 14 munições.

Quanto às munições, as munições que lhe haviam sido distribuídas em 2011 foram 50 munições Sellier & Bellot, modelo JHP/jacket hollow point, 115 grains, expansivas, lote 09.

A vítima morreu atingida por 14 projécteis da marca Sellier & Bellot, 115 grains, de calibre

9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger), lote 09 e foram disparados por uma arma Glock.

Estes projecteis tinham as mesmas características dos restantes 36 que tinham permanecido na gaveta onde a inspectora Liliana guardava a arma e munições.

 

 Constata-se, ainda, que a arguida tinha um ferimento na mão direita decorrente da forma como empunhou a arma e do número de disparos efectuados.

Também se provou que no blusão da arguida foram recolhidas cinco partículas características de resíduos de disparo de arma de fogo nas mangas e uma partícula características de resíduos de disparo de arma de fogo na parte anterior do blusão, constituídas por chumbo, antimónio e bário, do mesmo tipo das detectadas nos elementos municiais deflagrados das munições Sellier & Bellot calibre 9 mm Parabellum, JHP 115 grains, partículas estas compatíveis com as detectadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime e que resultaram de transferência primária.

Provou-se, para além disso, que a arguida não tinha disparado a sua arma desde há muito tempo.

Depois, e quanto à situação do gabinete onde as fotografias foram tiradas, por tudo quanto já relatámos não resulta possível que tenha havido, naquele momento, contaminação secundária, como não resulta que ela pudesse ter ocorrido na viagem da Maia para Coimbra.

 

Então, e perante todo este quadro, temos que concluir que a contaminação com resíduos de disparo de arma de fogo que o blusão da arguida revelou ocorreu quando ela disparou contra a vítima, durante a tarde do dia 21-11-2012.

Provou-se que a situação física da arguida lhe permitia fazer a viagem Maia-CoimbraMaia e que a viagem era possível ser feita desde cerca das 14h30 até ao cometimento do crime e chegar ao infantário, para buscar a filha, às 19h30.

Estes são os factos essenciais.

Tudo o mais já não é.

Já não é, por exemplo, a motivação para o crime. O Ministério Público avançou com o desejo que a arguida tinha de receber, rapidamente, o dinheiro que integrava a conta que a vítima partilhava com a sogra.

Entendemos que esta motivação não se provou. No entanto, sendo certo que entre a arguida e a vítima não havia uma relação de proximidade/intimidade que justificasse uma tal visita, que a vítima tinha avultadas quantias em dinheiro, que a arguida conhecia esse facto, que o marido já lhe tinha pedido dinheiro o que resulta é que a arguida se deslocou com um objectivo relacionado com a obtenção de dinheiro.

Depois, em concreto, já quanto ao que despoletou o crime, nada se apurou.

E de tudo quanto deixamos exposto resulta, ainda, uma outra coisa que ainda não foi referida.

O furto da arma distribuída à inspectora Liliana Vasconcelos ocorreu entre 8-10-2012 e 611-2012 e em resultado das provas, demonstrou-se que foi usada pela arguida em 21-11-2012.

Não podemos deixar de concluir que aquela arma foi furtada com a intenção de poder vir a ser usada.

*

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 Nos termos do art. 358º do C.P.P., que trata da “alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, «se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa» – nº 1.

Como sabemos a actividade de cognição do tribunal está limitada pelo objecto do processo, que coincide com o objecto da acusação. É perante o conteúdo da acusação que o arguido se tem de defender, uma vez que ele sabe que o conteúdo da acusação deduzida esgota o mundo fáctico desfavorável que pode vir a ser conhecido em julgamento.

            Mas o que é o “facto”, jurídico-penalmente falando?

 Depois da doutrina naturalística, para a qual o facto era a acção naturalística unificada por critérios psicológicos, surgiu o conceito de Eduardo Correia, para o qual o facto é o comportamento referenciado a um quadro de valores, os valores jurídico-penais. Então para este autor o facto será o comportamento pensado como, e enquanto, violador dos valores protegidos pelas normas jurídico penais.

Já para Figueiredo Dias o conceito processual do facto não se esgota na referência normativa. Para a sua determinação deve atender-se ao contexto em que surgiu e, assim, o facto passa a ser um pedaço da vida que se destaca da realidade e é dessa forma, como pedaço da vida social, cultural e jurídica, que se submete à apreciação judicial.

Então, o facto processual não é um facto mas uma pluralidade de factos que, como refere Frederico Isasca [31], se aglutinam em torno de certos elementos polarizadores que permitem a sua compreensão, de um ponto de vista social, como um comportamento que encerre em si um conjunto de elementos que tornam possível identificá-lo e individualizá-lo como um pedaço autónomo de vida.

E assim sendo não podemos ver como alteração qualquer alteração de palavras, qualquer adaptação dos dizeres da acusação, qualquer clarificação e/ou pormenorização do seu conteúdo, pois que «…só por mero absurdo se pode conceber a possibilidade de uma identidade literal entre o objecto da acusação e da sentença …» 37.

«Para além dos factos constantes da acusação que constituem o objecto do processo em sentido técnico, podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm “com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjectivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, etc.” Esses factos novos fazem parte do chamado «objecto do processo em sentido amplo», e não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objecto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358º, nº 1 do C.P.P. …» [32].

O C.P.P. contém norma semelhante para o caso de a alteração ocorrer aquando da prolação da decisão na relação.

Assim, nos termos do nº 3 do art. 424º do C.P.P. «sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias».

A norma é semelhante porque também contempla o conhecimento de factos não descritos na decisão recorrida e determina a notificação do arguido para se pronunciar sobre os mesmos.

No entanto esta norma contém uma diferença significativa da do art. 358º, porque o nº 3 do art. 424º só impõe a notificação da alteração relativamente aos factos não conhecidos do arguido.

A norma reporta-se à audiência mas aplica-se, por igualdade de razão, quando a decisão é proferida em conferência, sendo que neste caso a notificação da alteração não conhecida será feita por via postal.

Sobre o que seja alteração não substancial não conhecida do arguido em comentário à norma diz Paulo Pinto de Albuquerque [33] que a limitação legal «tem o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação do tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido … Se a alteração deriva da posição do próprio arguido expressa nas conclusões do recurso ou nas alegações orais, ela é obviamente conhecida do arguido … se a alteração resulta da posição do MP expressa nas conclusões do recurso ou no visto ou da posição do assistente expressa nas conclusões do seu recurso, a alteração já é conhecida do arguido, pois ele foi oportunamente notificado para responder ao recurso e, havendo-o, ao visto …».

Sobre esta mesma questão decidiu o S.T.J. [34] que «a previsão contida no n.º 3 do art. 424.º do CPP não abrange toda e qualquer alteração da matéria de facto por parte do tribunal superior, mas apenas aquela que, estando ausente da matéria discutida no recurso (motivação e contra-motivação), o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, entenda dever conhecer».

A alteração dos factos relatados no acórdão recorrido ou redundam em mera pormenorização da matéria que consta dos factos provados e não provados do acórdão recorrido ou resultam do recurso interposto, à qual a arguida respondeu pormenorizadamente e onde abordou todas as questões.

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           IV – DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

            Cumpre, agora, decidir a matéria de facto.

A – Factos provados:

– mantêm-se inalterados os factos constantes dos pontos 1 a 9 da matéria provada;

– o ponto nº 11 passa a ser o ponto nº 10;

– alteram-se os pontos 11 e 12, que passam a ter a seguinte redacção:

11   – Parte dos depósitos referidos em 9, no montante de € 1.670,00, teve proveniência em levantamentos efectuados nas contas sedeadas no BPI e na CGD através do cartão de crédito nº 6135772 e quanto ao restante montante depositado, no total de 3.117,25 €, não foram identificados os levantamentos ou somas de levantamentos que estiveram na sua origem, tento ele proveniência de contas não pertencentes ao casal.

12   – Os cartões de crédito eram utilizados para pagamento de despesas correntes no nosso país, mas também em deslocações, estadias e despesas ao estrangeiro (vd. designadamente pagamentos de 17.7.2012 – viagem de avião e 23.8.2012 – restaurante em Barcelona (cartão Carlos Coelho); 16.9.2012 à Logitravel (cartão Ana Saltão).

– mantêm-se inalterados os factos constantes dos pontos 13 a 26.

– alteram-se os factos constantes dos pontos 27, inclusive, e seguintes, nos termos que se seguem:

27   – Em 1-8-2011 a arguida passou a ser seguida pelo psiquiatra dr. Ferreira de Sousa, do Hospital de Dia da Maia, que lhe diagnosticou sintomatologia compatível com o diagnostico de síndrome depressiva.

28   – A arguida foi seguida até 18-10-2012, teve 9 consultas na totalidade, e nesta data estava medicada com Escitalopram – 20 mg/dia, Lorazepam – 1 ou 2 mg/dia, Loflazepato de etilo – < ou = 6 mg/dia.

29   – Filomena Gonçalves tinha avultados recursos económicos, que a arguida e o marido conheciam.

30   – O gabinete da arguida era no mesmo piso do gabinete da inspectora Liliana e quase em frente.

31   – Em 20-9-2011 foi distribuída à inspectora Liliana, como arma de serviço, 1 Glock calibre 9×19 mm, também chamado calibre 9 Luger ou 9 Parabellum, modelo 19, com o n.º de série

PBW136, no valor de € 316,32.

32   – Também lhe foram distribuídos dois carregadores, de 15 munições cada, e uma caixa com 50 munições da marca Sellier & Bellot, modelo JHP/jacket hollow point, 115 grains, expansivas, lote 09.

33   – Estas eram as munições distribuídas pelos inspectores da P.J. para uso operacional.

34   – A arma estava sempre guardada, com um carregador metido, o outro carregador e as munições na última gaveta do módulo de gavetas da secretária de Liliana Vasconcelos, dentro do respectivo estojo, e as gavetas estavam fechadas à chave.

35   – Ao tempo Liliana Vasconcelos municiava os carregadores com 14 munições e o carregador que estava inserido na arma estava municiado com 14 munições.

36   – A inspectora só tirava a arma quando saía para uma situação operacional ou quando ia à carreira de tiro.

37   – A última vez que Liliana Vasconcelos tirou a arma para a levar para uma diligência foi em 810-2012.

38   – Quando regressou guardou a arma no local habitual.

39   – Entre 8-10-2012 e 6-11-2012 a arguida entrou no gabinete de Liliana Vasconcelos, abriu a gaveta onde a arma, carregadores e munições estavam guardados e apoderou-se da arma e do carregador, municiado com 14 munições, que estava inserido na arma.

40   – No dia 6-11-2012 a inspectora Liliana Vasconcelos tinha sessão de treino na carreira de tiro e foi buscar a arma, para a utilizar.

41   – Abriu a gaveta com a chave e depois abriu o estojo e verificou que a arma não estava nem estava o carregador que estava inserido na arma.

42   – Durante a diligência de recolha de impressões digitais no módulo de gavetas atribuído à inspectora Liliana Vasconcelos, e onde ela guardava a arma, carregadores e munições, verificou-se que, com o módulo fechado à chave, aplicando pressão com as mãos nos bordos laterais externos da gaveta o mecanismo de tranca destrancava e as gavetas abriam.

43   – Na época Liliana Vasconcelos e o colega de gabinete, António David, partilhavam dois inquéritos com muitas escutas telefónicas e ambos passavam grande parte do dia na sala das intercepções, situada dois pisos acima do piso onde se situava o seu gabinete.

44   – As pessoas que frequentam as instalações da Directoria do Norte da P.J., são controlados à saída das instalações.

45   – A arguida foi intervencionada no Hospital Privado da Trofa no dia 13-11-2012 pela equipa cirúrgica chefiada pelo médico dr. José Vidal Pinheiro, a um mioma uterino, tendo sido submetida a uma miomectomia via vaginal (ressectoscopia) e colporrafia posterior e teve alta no mesmo dia.

46   – Até ao dia 17-11-2012 os pais da arguida estiveram em casa da filha para prestarem apoio a ela e à família.

47   – Paulatinamente a arguida foi retomando as suas rotinas diárias.

48   – No dia 19-11-2012 o marido da arguida, Carlos Coelho, não foi trabalhar.

49   – De manhã a arguida levou a filha ao infantário por volta das 9h30, às 11h41m38s encontrava-se em local servido pela célula da TMN Nogueira Porto-3 (célula dominante na zona do Centro Comercial Maia Jardim) e pelas 12h42m51s encontrava-se em local servido pela célula Trofa Centro-1.

50   – A arguida teve uma consulta no Hospital Privado da Trofa com o médico que lhe fez a cirurgia, foi acompanhada do marido e foram no automóvel da arguida, Volkswagen Golf, de cor cinzenta, matrícula 14-45-ZJ.

51   – No regresso almoçaram no Hotel Internacional do Porto e estiveram na cidade entre as 14h00m13s e as 17h06m18s.

52   – Depois, ainda no veículo da arguida, foram buscar a filha ao infantário Pimpolho, onde a menina anda, pelas 17h30m.

53   – No dia 20-11-2012 o marido da arguida foi trabalhar e deslocou-se para as instalações da Directoria do Norte no Metro do Porto, como era habitual, fazendo uso do cartão n.º 39632, dos Transportes Intermodais do Porto (TlP): entrou na estação Fórum da Maia, pelas 7h55m, mudou de linha na estação da Trindade, pelas 8h26m e saiu na estação de Salgueiros, ambas no Porto.

54   – Regressou a casa já depois das 18h, voltando a utilizar os TlP, entrando na estação de Salgueiros pelas 17h33m e na da Trindade pelas 17h45, seguindo em direcção à do Forum da Maia.

55   – Nesse dia a arguida, retomando as suas rotinas normais, como habitualmente fazia foi levar a filha ao infantário, no seu veículo Golf, pelas 9h30m.

56   – Depois dirigiu-se ao Centro Comercial Maia Jardim, sito na Maia, ao volante do veículo, onde permaneceu pelo menos entre as 10h08m55s e as 12h59m45s.

57   – Aqui a arguida efectuou compras no hipermercado Continente Maia Jardim e na loja Well’s Maia Jardim, onde utilizou o cartão de Cliente Continente nº 185 021 782 2594, relativo à conta nº 185 004 868 8789, titulado pelo seu marido, isto pelas 11h38 e 12h11 (Continente) e 12h42m (Well’s).

58   – Nas aquisições realizadas pelas 12h11 e 12h42, nos montantes de € 28,41 e € 8,27, a arguida utilizou como meio de pagamento o seu cartão Visa Electron Universo, do Banco BPI, emitido em seu nome, relativo à conta que aí possuía n.º 0-3791501.000.001, de que era titular com seu marido.

59   – Depois de sair do centro comercial dirigiu-se ao McDonald’s da Maia, ao volante do seu veículo Golf, onde pelas 13h06m, no McDrive, adquiriu produtos aí comercializados, que pagou com o seu cartão multibanco relativa à conta n.º 0131.000120.800, da CGD, de que era titular.

60   – Após abandonou o local sempre a conduzir a sua viatura

61   – Cerca das 15h30m a arguida foi buscar a filha ao infantário e depois dirigiu-se ao Hospital Privado da Boa Nova, sito em Perafita, Matosinhos, onde a filha tinha agendada uma consulta de pediatria.

62   – Em 21-11-2012 o marido da arguida foi trabalhar, deslocou-se para as instalações da Directoria do Norte da PJ no Metro do Porto, fazendo mais uma vez uso do cartão nº 39632, dos Transportes Intermodais do Porto, entrou na Estação Fórum da Maia, pelas 7h52m, mudou de linha na estação da Trindade, pelas 8h26m e saiu na estação de Salgueiros, ambas no Porto.

63   – Também como era habitual a arguida levou a sua filha ao infantário O Pimpolho no seu automóvel, entre as 9h00 e as 9h30.

64   – Depois de deixar a filha, pelas 9h30m50s, em local servido pela célula GSM Nogueira-Porto 3, a arguida ligou do seu telemóvel n.º 965737818 para o de seu marido, n.º 964149061, e a partir deste momento desligou o telemóvel para não ser localizada e assim o manteve pelo menos entre as 13h22m e as 19h24m21s.

65   – No dia 21-11-2012 Rosa Maria e o marido tinham almoçado com a vítima, como era habitual às 4ª feiras e sábados, e às 15h45 a filha já tinha ido para o ACM, onde tinha uma sessão de sauna às 16h, e o genro para sua casa, sita na rua dos Combatentes da Grande Guerra, nº 107, 1º dto., Coimbra.

66   – Neste dia, antes das 14h30, a arguida deslocou-se a Coimbra para falar com a vítima, envergando o blusão cinzento, comprido, marca In Extenso, e dirigiu-se a casa da vítima sita na rua António José de Almeida.

67   – Na deslocação a arguida trouxe consigo a arma e o carregador, municiado com 14 munições, de Liliana Vasconcelos.

68   – Estavam distribuídas à arguida e ao marido duas armas Glock, calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger), modelo 19, respectivamente com os nºs de série PBW133 e LZF467.

69   – Chegada a Coimbra a arguida dirigiu-se a casa da vítima, tocou a campainha e quando a vítima viu de quem se tratava abriu a porta.

70   – A arguida entrou na habitação e a certa altura empunhou a arma que levou com a mão direita e disparou sobre a vítima 14 tiros.

71   – Na altura arguida e vítima estavam na sala, de frente uma para a outra, próximas, e a vítima estava de costas para a porta-janela existente.

72   – Devido à forma como empunhou a arma e devido ao número de tiros a corrediça da arma provocou na mão direita da arguida ferimento na face dorsal da região do primeiro espaço interdigital da mão, oblíquo para baixo e para dentro, mais profundo a nível da sua metade distal e mais superficial na porção proximal, medindo 2 cm de comprimento por 3 mm de maior largura, ferimento na metade medial e distal da face dorsal da falange proximal do 2º dedo da mão direita, disposto transversalmente, medindo 4 mm de comprimento por 2 mm de largura e ferimento na metade proximal da face dorsal da falange intermédia do 2º dedo da mão direita, oblíquo para baixo e para dentro, medindo 6 mm de comprimento.

73   – A vítima foi atingida pelos 14 projécteis, que lhe causaram lesões traumáticas crâniomeningo-encefálicas, torácicas e abdominais, descritas no relatório de autópsia de fls. 1102 a 1115, que aqui se dá por reproduzido, que foram causa necessária e directa da sua morte.

74   – A arguida sabia que as zonas do corpo visadas com os projécteis deflagrados continham órgãos vitais que, sendo atingidos, lhe poderiam causar a morte, como causaram;

75   – Com o impacto dos projécteis a vítima foi sendo projectada para trás e ficou caída no chão, na posição de sentada, com o tronco direito, encostada à porta-janela.

76   – De seguida a arguida saiu e fechou a porta de entrada da casa à chave.

77   – Depois a arguida dirigiu-se ao seu veículo conduziu até à Maia, dirigiu-se ao infantário O Pimpolho e pegou a filha pelas 19h35/19h40.

78   – A hora normal de a arguida buscar a filha é pelas 18h.

78 – Na ocasião a arguida vestia o blusão comprido cinzento, marca ln Extenso, e calçava umas sapatilhas claras.

80      – Desde cerca das 20h30 do dia 21-11-2012 a filha da vítima tentou contactar telefonicamente a sua mãe diversas vezes, ligando para o seu telefone fixo n.º 239835821, mas nunca foi atendida e por isso ela decidiu ir a casa da mãe, com o marido, ver se alguma coisa se passava.

81      – Saíram antes das 21h30, quando chegaram a casa da vítima tocaram à campainha ela não atendeu e pediu à vizinha da mãe que também tinha uma chave da casa desta para lhes abrir a porta e quando entraram encontraram a vítima sem vida.

82      – Às 21h29m56s telefonaram para o 112, foi accionada a emergência médica e a comparência das autoridades.

83      – No decurso das investigações efectuadas pela P.J. em 21 e 22-11-2012 foram encontradas na sala onde a vítima estava 13 treze cápsulas deflagradas.

84      – Em 23-11-2012 foram apreendidos 7 projécteis na mesma sala.

85      – Em 27-11-2012, por detrás de um móvel existente na parede oposta à varanda, foi encontrada mais 1 cápsula deflagrada.

86      – No âmbito da autópsia realizada foram recolhidos mais projécteis no corpo da vítima, bem como fragmentos de munições.

87      – Em 22-11-2012 a arguida e seu marido, quando estavam em casa, foram contactados pelo inspector José Cardoso, cerca das 17h30, para se deslocarem à Directoria do Norte para entregarem as armas que lhes estavam distribuídas.

88      – Antes de seguirem para a Directoria a arguida foi buscar a filha ao infantário, tendo-a pegado pelas 19h.

89      – De 24 para 25-11-2012 a arguida e o marido foram à Maia, em veículo da P.J. e na companhia de José Cardoso e José Romano.

90      – José Cardoso pediu à arguida se ela podia entregar a roupa que tinha usado no dia 21.

91      – A arguida anuiu e dirigiu-se a um quarto, acompanhada pelo inspector Cardoso, e tirou de um cabide que estava ao fundo da cama o blusão cinzento, marca In Extenso, que entregou.

92      – Depois foi a outro local buscar umas calças de ganga azul, marca Mango, e umas sapatilhas pretas, marca Nike, que também entregou.

93      – As sapatilhas foram colocadas num saco de plástico, de supermercado, que a arguida disponibilizou, o saco foi atado e foi colocado dentro de um saco PEB, por cima do saco de plástico contendo as sapatilhas foram colocadas as calças dobradas e por cima foi colocado o blusão dobrado.

94      – Depois o inspector José Cardoso fechou o saco PEB fazendo duas dobras no saco e pôslhe fita cola.

95      – O saco foi colocado na bagageira do veículo e foi de lá retirado por José Cardoso, quando chegaram às instalações da Directoria do Centro da P.J.

96      – José Cardoso guardou o saco no armário do gabinete, onde guardam os processos da brigada, e foi retirado no dia 27-11-2012, cerca das 20h, e Alcides Rainho tirou fotografias ao material apreendido.

97      – José Cardoso retirou o saco do armário, abriu o saco e retirou o blusão, depois as calças e depois o saco de plástico que continha as sapatilhas e tirou as sapatilhas.

98      – Colocou tudo no chão do seu gabinete, tendo o blusão sido colocado com as costas apoiadas no chão, as calças com a parte de trás e as sapatilhas com as solas.

99      – Decidiram colocar o material no chão porque no local não são depositadas armas nem munições apreendidas, não são disparadas armas, e o chão é diariamente varrido, limpo com esfregona e com cera, entre as 18h e as 19h.

100    – No 27-11-2012 o chão do gabinete de José Cardoso teve esta limpeza.

101    – Depois de tirarem as fotografias José Cardoso voltou a arrumar o material, colocando as sapatilhas dentro do saco de plástico e este dentro do saco PEB, por cima as calças dobradas e por cima o blusão dobrado, fez dobras no saco, como tinha feito da primeira vez, e arrumou-o no mesmo armário.

102    – Feito exame pericial ao blusão e calças apreendidas no LPC resultou que as calças não continham vestígios de resíduos de disparos de arma de fogo e no blusão foram recolhidas cinco partículas características de resíduos de disparo de arma de fogo nas mangas e uma partícula características de resíduos de disparo de arma de fogo na parte anterior do blusão, constituídas por chumbo, antimónio e bário, do mesmo tipo das detectadas nos elementos municiais deflagrados das munições Sellier & Bellot calibre 9 mm Parabellum, JHP 115 grains.

103    – Os resíduos depositaram-se no blusão quando a arguida disparou sobre a vítima.

104    – A arguida agiu voluntária, livre e conscientemente ao disparar as 14 munições sobre o corpo da vítima Filomena Gonçalves e com o propósito de lhe tirar a vida.

105    – A arguida sabia que as zonas do corpo visadas com os disparos continham órgãos vitais que, sendo atingidos, lhe poderiam causar a morte.

106    – A arguida agiu de modo deliberado e consciente ao apoderar-se da pistola Glock distribuída a Liliana Vasconcelos, do carregador e das 14 munições que o municiavam, integrando-os no seu património.

107    – A pistola tem o valor de € 316,32 e cada uma das munições custa € 0,20.

108    – A pistola, carregador e munições eram propriedade da P.J. e estavam distribuídas a Liliana Vasconcelos por razões de serviço.

109    – A arguida agiu com intenção de fazer sua a arma e munições, ciente que o estava a fazer contra a vontade da proprietária das mesmas e da respectiva utilizadora.

110    – A pistola e carregador nunca foram recuperados.

111    – A arguida sabia que todas as condutas eram proibidas e punidas por lei.

112    – Ana Saltão é a primogénita de dois descendentes nascidos na constância do casamento dos progenitores, sendo a dinâmica da família descrita como normativa e salientada a coesão, o diálogo e as relações de afecto entre os seus elementos.

113    – O percurso académico da arguida decorreu sem problemas, tendo concluído o curso de Direito com 23 anos.

114    – Posteriormente efectuou estágio de advocacia, com a duração de 18 meses e passou então a exercer esta actividade, abrindo o seu próprio escritório, o qual manteve dois anos.

115    – Em paralelo colaborava com uma empresa de energias renováveis, onde prestava apoio jurídico, actividade que manteve após o encerramento do seu escritório.

116    – Em 2003 integrou a Polícia Judiciária, tendo frequentado o respectivo curso durante um ano.

117    – Depois passou a inspectora estagiária durante igual período, exercendo funções em Lisboa e Coimbra.

118    – Em 2005 foi colocada na directoria do Porto mas fez uma comissão de serviços nos Açores, onde permaneceu até Novembro de 2007, conjuntamente com o marido, com quem havia casado em Novembro de 2005.

119    – De volta ao continente integrou a Directoria do Norte, onde exerceu funções até à sua reclusão, ocorrida em 26-11-2012 e durou cerca de 6 meses.

120    – Depois foi suspensa de funções, advindo os proventos da família do trabalho do cônjuge, também inspector da polícia judiciária, o qual aufere € 1371.56.

121    – Quando regressou dos Açores o casal fixou residência na cidade da Maia, onde adquiriu habitação.

122    – Da união existe uma descendente.

123    – A arguida é descrita como responsável, zelosa pelo bem-estar dos que lhe são próximos, designadamente da descendente, sendo que com a família alargada da própria mantém relações de proximidade afectiva sendo frequente o contacto e convívio com os mesmos.

124    – Desde a suspensão da arguida o agregado beneficia da colaboração económica dos pais de Ana Saltão, os quais assumem o pagamento do infantário da descendente, cujo valor mensal oscila entre 300 e 350 €, assegurando o casal as despesas de habitação e subsistência, tendo encargos mais significativos com o crédito hipotecário da ordem dos

451 € mensais.

125    – Na vertente social são-lhe atribuídas características de respeito pelas regras de civilidade e prestabilidade, sendo-lhe ainda assinalado o envolvimento em causas de solidariedade, designadamente de angariação de fundos para apoio a uma amiga que sofreu de doença oncológica.

B – Factos não provados:

1)  O pedido de empréstimo à vítima feito pelo marido da arguida deveu-se às dificuldades económicas que o casal ia sentindo para equilibrar as suas contas em 2012.

2)  O marido da arguida recorreu por três vezes aos préstimos da sua avó para que lhe emprestasse dinheiro.

3)  A vítima emprestou em 17.8.2012, a quantia de € 1.000,00, em numerário.

4)  A arguida, decorrente das dificuldades económicas que ela e o cônjuge iam sentindo para fazer face a todas as despesas do seu dia-a-dia, não se conformava com a circunstância da avó de seu marido não os ajudar mais em termos financeiros, ainda por cima obrigando-os a pagar mensalmente prestações por conta do dinheiro que lhes havia emprestado.

5)  Por isso decidiu matá-la, quer para evitar terem de continuar a pagar-lhe o dinheiro emprestado, quer na expectativa que com a sua morte parte do dinheiro que aquela possuía viesse a chegar ao casal, por intermédio do marido.

6)  A arguida acreditava que assim o dinheiro que a vítima possuía seria partilhado entre os seus dois únicos filhos e que sua sogra, uma vez recebida a sua parte na herança, ao passar a dispor de recursos financeiros que antes não tinha começaria a ajudá-los economicamente, tanto que seu marido Carlos Coelho era filho único.

7)  Na sequência do propósito formulado decidiu não utilizar nem a pistola que lhe estava distribuída a si nem a que estava distribuída ao marido para não ser relacionada com o crime de homicídio que tinha resolvido cometer.

8)  Depois de ter retomado as rotinas diárias a arguida decidiu pôr em prática o seu plano já antes traçado de matar a avó de seu marido.

9)  Na sequência do desígnio criminoso já antes tomado a arguida decidiu que no dia 21-11-2012 se deslocaria a Coimbra, a fim de matar a avó de seu marido.

10)         Nesse dia, antes de ir buscar a filha ao infantário arguida levou o seu veículo a local não apurado, onde providenciou pela sua lavagem exterior e aspiração interior.

*

*

                                 V – ENQUADRAMENTO LEGAL DOS FACTOS PROVADOS

A arguida está acusada da prática de um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. c), e), h) e j), e de um crime de peculato, do art. 375º, nº 1, ambos do Código

                       Penal.

 O homicídio é a morte de um ser humano por outro, através de acção ou omissão cujo objectivo seja esse resultado.

Nos termos do art. 131º «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos». É o chamado crime de homicídio simples, que constitui o tipo de ilícito que, depois, é agravado ou atenuado em função da verificação de uma culpa agravada ou de circunstâncias que a diminuam sensivelmente.

A norma exige um nexo de imputação objectiva e subjectiva do resultado à conduta: a morte tem que resultar da acção do agente, isto é, tem que haver um nexo de causalidade entre a conduta do agente e a morte; a morte tem que ser querida, ou seja, exige-se o dolo na actuação, em qualquer das modalidades contempladas no art. 14º do Código Penal.

No caso estão preenchidos os elementos do tipo: a arguida Ana Saltão, quando estava a curta distância de Filomena de Jesus Gonçalves e de frente para ela, empunhou a arma Glock que tinha consigo, apontou-a na direcção da vítima e disparou 14 tiros para o tronco. Todos os tiros atingiram a vítima causando-lhe lesões crânio-meningo-encefálicas, torácicas e abdominais que foram a causa directa da sua morte. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de matar Filomena Gonçalves, bem sabendo que tal conduta era proibida pela lei penal.

O art. 132º trata de crime de homicídio qualificado – o chamado homicídio simples agravado , cujo traço distintivo radica na culpa agravada do agente derivada da especial censurabilidade ou perversidade da conduta, uma censurabilidade ou perversidade que transcenda a que sempre se verifica no homicídio e que a verificação de um dos exemplos-padrão do nº 2 indicia existir.

             E quando tal ocorra a pena aplicável será de prisão de 12 a 25 anos de prisão.

 No caso a qualificação do crime imputado à arguida radica na alegada verificação das circunstâncias das alíneas c), e), h) e j).

Nos termos da al. c) do nº 2 do art. 132º é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

Este exemplo-padrão reporta-se à situação de desamparo da vítima por via da verificação de uma qualquer daquelas situações.

No caso estará em causa a idade da vítima e o Ministério Público invocou esta circunstância pelo facto de a vítima ter, à data, 80 anos de idade.

Considerando a estrutura da norma o que resulta é que a idade, deficiência, doença, gravidez não determinam, sem mais, a qualificação: para qualificarem o crime, por revelarem a especial censurabilidade ou perversidade da acção, têm que tornar a vítima particularmente indefesa. Só em tal caso poderemos por a hipótese da al. c) [35].

Ora, atendendo às circunstâncias em que o crime se deu – a arguida estava em frente à vítima, a curta distância, e disparou sobre ela 14 tiros -, não se pode concluir que a vítima se apercebeu do que ia acontecer e que não se defendeu por a sua idade o não ter permitido. No caso se a vítima tivesse 40 anos tudo se teria passado do mesmo modo.

Portanto, a circunstância da idade da vítima é irrelevante para a qualificação.

Quanto à al. e) do nº 2, diz ela que pode revelar especial censurabilidade ou perversidade o crime «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil».

Diz-se no Comentário, a pág. 62, que «ser determinado a matar por avidez significa a pulsão para satisfazer um desejo ilimitado de lucro (em último termo económico) à custa de uma desconsideração brutal da vida de outrem».

Portanto, um homicídio cometido por avidez significa que o motivo do crime foi a ganância, a cobiça, ou seja, sentimentos muito fortes de obtenção a todo o custo de proventos.

Dada a configuração da acusação o que se imputa à arguida é a avidez na actuação, porque com o crime ela pretendia receber o dinheiro que a vítima tinha numa conta conjunta com a sua sogra.

Entendemos que a análise objectiva dos factos não permitem concluir pela verificação desta circunstância. É certo que em causa estava o dinheiro da vítima mas não ficou demonstrada esta pulsão.

Nos termos da al. h) o homicídio também poderá ser “agravado” se cometido juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou com utilização de meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum, se reveladores de especial censurabilidade ou perversidade.

É evidente que não se verifica a circunstância de o crime ter sido cometido por uma pluralidade de agentes nem se traduziu na prática de um crime de perigo comum, que são aqueles que integram o Título III do Capítulo IV do Código Penal que trata, precisamente, “dos crimes de perigo comum” e que estão elencados nos art. 272º a 286º do Código Penal.

Quanto ao meio particularmente perigoso, podemos estar a falar no instrumento/objecto utilizado como no método seguido pelo agente.

Apesar de também não estar especificamente invocado o concreto segmento da norma, entendemos que quando o Ministério Público enquadra a acção na al. h) do nº 2 do art. 132º está a pensar no facto de o crime ter sido cometido com uma arma de fogo.

E a utilização de arma de fogo no cometimento de um homicídio integra o conceito de meio particularmente perigoso que, se reveladora de particular censurabilidade ou perversidade, qualificará o crime de homicídio?

Na obra que temos vindo a seguir – Comentário Conimbricense do Código Penal -, a pág. 68 defende o comentador que exigindo a lei que o meio para o cometimento do crime seja particularmente perigoso resulta que é «necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem, seguramente, no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares meios contundentes) …».

Ou seja, considerando que por regra um homicídio é cometido com um instrumento perigoso, o que se defende é que a perigosidade aqui prevista tem que ser muito superior à perigosidade dos meios normalmente usados para matar.

E um dos meios normalmente usados para matar é a arma de fogo, seja pistola, revolver, espingarda.

             É neste sentido que vai a esmagadora maioria da jurisprudência que encontrámos.

            A título de mero exemplo indica-se a seguinte:  do Supremo Tribunal de Justiça

–              processo 123/11.0JAAVR, de 23-2-2012, relatado pelo sr. conselheiro Rodrigues da Costa: «O exemplo-padrão consistente na utilização de meio particularmente perigoso implica o uso de um instrumento que, pelas suas características, traduz um perigo acentuado, qualitativamente superior ao perigo inerente a qualquer meio usado para causar a morte de outrem, sendo considerado como tal, pela jurisprudência, aquele meio que acarreta dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitui perigo para outros bens jurídicos pessoais …»;

–              processo 05P1833, de 12-7-2005, relatado pelo sr. conselheiro Rodrigues da Costa: «O uso de meio particularmente perigoso qualifica o crime de homicídio quando e apenas quando o meio usado tenha uma gravidade acentuada em relação ao comum dos meios usados para matar, o que não é o caso de uma arma de fogo de defesa, de que o arguido tinha licença de uso e porte»;

–              processo 05P224, de 10-3-2005, relatado pelo sr. conselheiro Santos Carvalho: «O facto da arma ter sido usada “à queima-roupa” é uma circunstância que não pertence à natureza da arma e que, portanto, não a torna particularmente perigosa»;

–              processo 03P2024, de 15-10-2003, relatado pelo sr. conselheiro Henriques Gaspar: «Um meio particularmente perigoso há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente. Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão»; – processo 02P2703, de 6-12-2002, relatado pelo sr. conselheiro Flores Ribeiro: «O uso de uma arma caçadeira para matar outrém não constitui “meio particularmente perigoso” para efeitos de agravante do crime de homicídio»;

–              processo 00P2753, de 13-12-2000, relatado pelo sr. conselheiro Mariano Pereira: «Uma pistola de calibre 6,35 mm, o usual nas pistolas de defesa, não constitui, em si mesma, um meio particularmente perigoso …»;

–              processo 99P946, de 15-12-1999, relatado pelo sr. conselheiro Armando Leandro: «A utilização de arma caçadeira para causar a morte de outrem, não constitui “meio particularmente perigoso”, para efeitos de inclusão no exemplo-padrão da alínea g) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, pois não basta a perigosidade do meio, mas antes se exige que o seja de forma particular, no sentido de uma perigosidade acentuadamente superior à normal nos instrumentos utilizados para matar»; da Relação do Porto

–              processo 0846290, de 19-17-2008, relatado pela sra. desembargadora Isabel Pais Martins: «uma arma de fogo utilizada para cometer um crime de homicídio não constitui um instrumento particularmente perigoso para o efeito previsto no artº 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal …»;

–              processo 0712674, de 26-9-2007, relatado pelo sr. desembargador Manuel Braz: o uso de uma pistola de calibre 6,35 mm não integra o conceito de meio particularmente perigoso, por não se tratar de instrumento com perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar;

–              processo 0712078, de 20-6-2007, relatado pelo sr. desembargador André Silva: «A prática de um crime de homicídio com projécteis disparados por uma pistola de calibre 6,35 milímetros não representa a utilização de meio particularmente perigoso»; da Relação de Évora

–              processo 159/10.9GDCTX, de 20-12-2011, relatado pelo sr. desembargador Carlos Berguete Coelho: o uso da caçadeira, por si só, não configura um meio particularmente perigoso, porque não excede a normalidade da perigosidade dos idóneos à produção homicídio.

Concordamos, inteiramente, com esta leitura da norma, que é bastante incisiva quando exige que a qualificação do crime derivada na natureza do meio utilizado só ocorrerá quando este meio for particularmente perigoso. E para ser particularmente perigoso não pode ter a perigosidade normal dos meios normalmente usados.

Se não nos ativermos a uma interpretação rigorosa do conceito corremos o risco de partirmos da qualificação de todos os homicídios apenas por termos o meio utilizado como particularmente perigoso pelo facto de ele ter provocado a morte.

Finalmente, nos termos da al. j) qualifica o crime a acção cometida com frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados ou cuja intenção de matar tenha persistido por mais de vinte e quatro horas, se reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade do agente.

A jurisprudência tem caracterizado a frieza de ânimo como a acção praticada com evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, revelando insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana. Reporta-se, portanto, ao processo de formação da vontade de praticar o crime. Quanto à reflexão sobre os meios empregados e a persistência na intenção de matar revelam que a acção do agente foi pensada, ponderada, tendo-se mantido tenacidade no propósito, maturação da decisão.

No caso, provou-se que o furto da arma deu-se entre os dias 8-10-2012 e 6-11-2012 e a arguida usou-a em 21-11-2012.

Antes do crime não há indícios de a arguida ter utilizado a arma.

Daqui entendemos que é legítimo concluir que a arguida furtou a arma por ter colocado a hipótese de a poder usar quando visitasse a vítima. E de facto usou-a em 21-11-2012 para matar a vítima, donde resulta que aquele furto está intimamente relacionado com este homicídio.

E por isso o caso revela reflexão sobre os meios empregados sobre a sua possível utilização num eventual confronto com a vítima e do qual poderia resultar a morte. E daqui também deriva a frieza de ânimo e a persistência na intenção de matar. Se assim não fosse a arguida não iria a casa da vítima munida com a arma.

Como dissemos, a verificação de um dos exemplos padrão é indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade.

Mas como a lei exige a certeza então o juiz para concluir pela verificação do homicídio qualificado terá que indagar se o exemplo padrão corresponde, efectivamente, à especial censurabiliade ou perversidade.

Conforme se diz no Comentário Conimbricense do Código Penal  [36] «a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos relativamente indeterminados: a especial censurabilidade ou perversidade do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor … Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação …».

Repetindo, a verificação de qualquer uma das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º constitui um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade do agente. No entanto, como se trata apenas de um indício o tribunal, perante a verificação de uma qualquer das situações, tem sempre que fazer uma ponderação global do facto e do autor antes de concluir pela existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente [37].

Entendemos que as circunstâncias revelam a especial censurabilidade e perversidade na actuação.

A intenção de cometer o crime foi de tal maneira poderosa que determinou o cometimento de um outro crime com vista à perpetração deste. A arguida antecipou a situação e, por isso, começou por se apropriar da arma de Liliana Vasconcelos.

Entretanto surgiu a intervenção cirúrgica, da qual teve que se restabelecer, mas que não fez desaparecer a intenção e até lhe deu maior liberdade de acção, uma vez que ficou de baixa médica enquanto o marido continuou a ir trabalhar.

Assim, a “janela de oportunidade” que procurava, digamos, apareceu neste lapso temporal.

Não podemos esquecer, por outro lado, a pessoa da vítima: a vítima era mãe da sua sogra e avó do seu marido e, independentemente de não serem próximas não tinham nenhum conflito. Todos estes pormenores são muito relevantes.

Assim, concluimos que a arguida Ana Saltão cometeu um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. h), do Código Penal.

*

A arguida também está acusada da prática de um crime de peculato, do art. 375º, nº 1, do

Código Penal, que diz que «o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».

Este crime integra dois elementos: um crime patrimonial e o abuso de função pública ou equiparada, que terão que estar relacionados entre si. O crime de peculato pune o abuso de função do funcionário que, em razão das funções que exerce, se apropria ilegitimamente de dinheiro, coisa móvel ou imóvel que lhe seja acessível.

É o que sucede no caso, com a apropriação da arguida da arma distribuída à inspectora Liliana.

Verifica-se o facto objectivo e, ainda, que a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a conduta era proibida.

Portanto, tem razão a acusação quando imputa à arguida o crime de peculato.

*

VI – DETERMINAÇÃO DAS PENAS A APLICAR

A arguida Ana Saltão praticou um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. j), do Código Penal, punível com pena de prisão de 12 a 25 anos, e um crime de peculato, do art. 375º, nº 1, do mesmo diploma, punível com prisão de 1 a 8 anos.

Cumpre, de seguida, proceder à fixação da pena concreta a aplicar a cada um dos crimes em presença.

Nos termos do art. 40º, nº 1 e 2, do Código Penal as finalidades das sanções penais são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

À defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, reporta-se a prevenção geral positiva ou de integração, e esta é a finalidade primeira da pena, no quadro da moldura penal abstracta. Depois, a sua fixação estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

Partindo destas considerações gerais os art. 70º e segs. do Código Penal estabelecem as regras da escolha e medida da pena.

Dispõe o art. 71º, nº 1, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Acrescenta o nº 2:

«2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c)  Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d)  As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e)  A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f)   A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

Percorridos estes itens a medida da pena é-nos dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, ou seja, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente surge a culpa, que indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas [38].

Começando pelas exigências de prevenção, dos factos não resultam quaisquer exigências de prevenção especial, sendo que as exigências de prevenção geral quanto ao crime de homicídio são elevadas, pela frequência que temos vindo a assistir no cometimento destes crimes.

Quanto ao mais, temos a considerar a idade da vítima e o facto de a arguida ter aproveitado o relacionamento familiar que mantinham, isto é, o facto de ser conhecida e, por isso, saber que ela lhe abriria a porta da habitação.

E se isto indica um aproveitamente das circunstâncias, o facto de a arguida ter disparado 14 tiros sobre o peito da vítima, a curta distância, independentemente de se saber qual foi o tiro mortal – que até pode ter sido o primeiro -, demonstra uma tenacidade no desfecho mortal da sua actuação, que leva a concluir que existia uma raiva latente que explodiu naquele momento.

Quanto à atitude posterior ao facto é certo que a arguida não confessou mas o que mais relevamos, neste aspecto, e em relação à personalidade que resultou da discussão da causa é a tese que apresentou para demonstrar que não cometeu o crime e que todo o processo foi fruto de uma maquinação.

Quanto ao crime de peculato o que há a realçar é o objectivo com que ele foi cometido, demonstrando uma culpa particularmente elevada.

Tudo ponderado aplicamos à arguida a pena de 16 anos de prisão pelo crime de homicídio e de 4 anos de prisão pelo crime de peculato.

*

 Nos termos do nº 1 do Código Penal «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Acrescenta o nº 2 que «a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

No caso a moldura penal oscila entre os 16 anos de prisão e os 20 anos de prisão sendo a pena única encontrada considerando, como diz a lei, conjuntamente os factos e a personalidade do agente.

Tudo se passa, diz Figueiredo Dias [39], «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade» sendo que «só no primeiro caso … será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

Portanto, os critérios legais de determinação da pena conjunta são diferentes dos que determinam as penas parcelares por cada crime: há que olhar para os factos, para a sua conexão, e para a relação dos mesmos com a personalidade do seu agente, abandonando a visão compartimentada que esteve na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. Fundamental, agora é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade [40].

A visão conjunta deste pedaço de vida expõe uma particular ilicitude, com um crime meio cometido antecipadamente com vista ao cometimento do crime final, que teve lugar entre cerca de 1 mês e meio e 15 dias depois.

                                   No entanto não podemos afirmar que se revele uma tendência criminosa.

                                   Daí fixarmos a pena única em 17 anos de prisão.

*

                                    O art. 66º do Código Penal trata da proibição do exercício de funções e dispõe que:

«1 – O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:

a)  For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;

b)  Revelar indignidade no exercício do cargo; ou

c)  Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.

2              – O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.

3              – Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

4              – Cessa o disposto nos nº 1 e 2 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de medida de segurança de interdição de actividade, nos termos do artigo 100º.

5              – Sempre que o titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, for condenado pela prática de crime, o tribunal comunica a condenação à autoridade de que aquele depender».

O pressuposto da proibição do exercício de funções consta do nº 1 e depende de o crime ter sido cometido com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes, revelar indignidade no exercício do cargo ou implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.

O que há de óbvio a afirmar é que nenhuma relação de serviço prescinde da relação de confiança. E quando a função do agente é de investigação criminal, a confiança no agente que se apropriou de uma arma de serviço de uma colega para cometer um homicídio fica moribunda.

E é quanto basta para a aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções, pois que a lei não exige para a sua aplicação a verificação cumulativa de todas as condições enumeradas.

Atendendo aos crimes cometidos – à ilicitude e culpa que demonstram -, fixa-se em 5 anos o período de proibição – nº 1 e 3.

*

           VII – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO

            O Ministério Público deduziu pedido de indemnização contra a arguida com vista a que a instituição lesada seja ressarcida dos prejuízos sofridos com o crime de peculato cometido, pois que com este foi desapropriada da arma Glock distribuída à inspectora Liliana, que valia 316,32

€, e de 14 munições distribuídas à mesma inspectora, que valiam 0,20 €, no total 2,80 €.

Dado que a arma nunca foi encontrada e que as munições foram destruídas este é o prejuízo patrimonial provocado.

Nos termos do art. 129º do Código Penal «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».

A lei civil regula a indemnização decorrente da prática de facto ilícito no art. 483º, nº 1, do

Código Civil dizendo que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

São, pois, pressupostos da obrigação de indemnizar:

–  o facto voluntário do agente;

–  a ilicitude do facto;

–  a imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa;

–  a ocorrência de dano;

–  a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A obrigação de indemnizar está prevista e disciplinada no Código Civil e o princípio geral consta do art. 562º, que dispõe que «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação».

A regra em termos de ressarcimento dos danos causados com um acto ilícito é a da reposição da situação tal como existia antes da sua produção. Quando isso não seja possível então a indemnização é fixada em dinheiro e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida, e a que teria nessa data se não existissem os danos – art. 566º, nº 1 e 2.

No caso a indemnização cifra-se em 319,12 € (trezentos e dezanove euros e doze cêntimos), correspondente ao valor dos bens, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação do pedido de indemnização e até pagamento – art. 805º, nº 3, do Código Civil.

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VIII – DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e no provimento do recurso, decide este tribunal:

1º – Alterar a decisão da matéria de facto, nos termos que constam do ponto «IV – Decisão da matéria de facto, A – Factos provados/B – factos não provados» deste acórdão, que aqui se dão por reproduzidos.

2º – Condenar a arguida Ana Alexandra de Andrade Tudela Saltão pela prática de um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. h), e pela prática de um crime de peculato, do art. 375º, nº 1, todos do Código Penal e aplicar-lhe as seguintes penas: a) de 16 anos de prisão pela prática do crime de homicídio;

b)  de 4 anos de prisão pela prática do crime de peculato;

c)  de 17 anos de prisão, correspondente à pena única pela prática dos dois crimes;

d)  a pena acessória de proibição do exercício de funções por 5 anos.

3º – Condenar a arguido a pagar ao Estado a quantia de 319,12 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação do pedido de indemnização e até pagamento

4º – Determina-se a entrega à arguida do blusão, calças e sapatilhas apreendidos no processo.

5º – Fixa-se em 6 UC´s a taxa de justiça devida, a cargo da arguida.

6º – Notifique.

*

Comunique a decisão à Directoria Nacional da Polícia Judiciária – art. 66º, nº 5, do Código Penal.

*

Nos termos dos art. 1º, nº 1, e 8º da Lei nº 5/2008, de 12/2, determina-se que se proceda oportunamente à recolha do perfil de ADN da arguida para inclusão na base de dados respectiva, com prévia informação nos termos do seu art. 9º.

*

                                  Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2015-05-27

 

 

 


[1] Dado o enorme relevo atribuído pelo novo código a esta prova o legislador português optou pelo modelo de perícia pública, oficial. Por isso, conforme determina o nº 1 do art. 152º do C.P.P., a perícia deve ser realizada, por regra, em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial.

[2] Acórdão do S.T.J. de 1-10-2008, processo 08P2035, relatado pelo sr. conselheiro Raul Borges.

[3] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 208 e 209.

[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, 1981, pág. 171.

 

 

[5] Obra e local citados.

[6] Vide o acórdão do S.T.J. de 5-5-1993, processo 044111, relatado pelo sr. conselheiro Ferreira Dias, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 198.

[7] In Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed., pág. 445.

[8] Ao Ministério Público cabe exercer a acção penal – art. 1º e 3º do respectivo Estatuto.

[9] Veja-se o despacho de fls. 2118, que determinou a correcção de um erro de numeração.

[10] O projéctil referenciado como Vest. 3 era de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), do tipo “hollow-point” (expansivo), não indiciava perda de massa, estava indeformado e apresentava 6 estrias impressas, do tipo poligonal, de sentido dextrogiro, não sendo tecnicamente possível determinar com segurança a marca ou origem da munição de onde era proveniente; o projéctil referenciado como Vest. 15 era de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), do tipo “hollow-point” (expansivo), não indiciava perda de massa, estava indeformado e apresentava 6 estrias impressas, do tipo poligonal, de sentido dextrogiro, não sendo tecnicamente possível determinar seguramente a marca ou origem da munição de onde proveio; o projéctil referenciado como Vest. 20 era de calibre 9 mm Parabellum (9×19 mm ou 9 mm Luger na designação anglo-americana), indiciava alguma perda de massa, estava deformado e danificado e apresentava visíveis estrias impressas, do tipo poligonal, de sentido dextrogiro, não sendo tecnicamente possível determinar seguramente a marca ou origem da munição de onde proveio.

 

[11] De Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, 2014, pág. 1169.

[12] Vide, nomeadamente, a anotação feita ao art. 129º, a pág. 486, no Código de Processo Penal Comentado, á referido, e o acórdão da Relação de Guimarães de 11-2-2008, proferido no processo 2181/07. 13 Vide Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 363.

[13] In Curso de Processo Penal, II, 2002, pág. 161 a 163.

[14] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.

[15] Cristina Libano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, Studia Iuridica, 24, pág. 13 e 14.

[16] Recordemos que nas avisadas palavras de Malatesta, in A lógica das provas em matéria criminal, 2ª. ed., pág. 168, para a prova do crime na sua totalidade não há prova directa que não se apresente com um misto de prova indirecta.

[17] Henriques Cabral, Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, Revista Julgar, nº 17, pág. 13 e 14.

[18] Henriques Cabral, estudo citado, pág. 23, citando Jaime Torres.

[19] Acórdão do S.T.J. de 11-7-2007, processo 07P1416, relatado pelo sr. conselheiro Armindo Monteiro.

[20] Asencio Mellado citado por Euclides Dâmaso in Prova Indiciária, revista Julgar, nº 2, pág. 205.

[21] Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 2ª ed., pág.345 e segs.

[22] Cristina Líbano Monteiro, obra citada, pág. 43.

[23] Psicologia do Testemunho, Scientia Iuridica, pág. 337.

[24] O nº 2 do art. 3º do Estatuto dos Magistrados Judiciais determina que «os magistrados judiciais não podem absterse de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado».

[25] Acórdão do T.C. nº 504/94.

[26] Acórdão da Relação do Porto de 27-1-2010, proferido no processo 42/05.0GAVF

[27] Simas Santos-Leal Henriques, C.P.P. anotado, II, 2ª ed., pág. 737 e acórdãos do S.T.J. 6-4-1994, processo 046002, e de 20-4-2006, processo 06P363,

[28] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 191 a 193.

[29] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 211 a 213

[30] Cristina Líbano Monteiro, obra citada, pág. 24, 53 e 54.

[31] A Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, pág. 96. 37 Acórdão do S.T.J. de 5-12-2007, processo 07P3396.

[32] Acórdão do T.R.G. de 5-6-2006, processo 659/06, relatado pelo sr. desembargador Tomé Branco.

[33] Obra citada, pág. 1169. No mesmo sentido vai o acórdão do S.T.J. de fixação de jurisprudência nº 7/2008.

[34] Processo 1423/08.2JDLSB, de 15-4-2010, relatado pelo sr. conselheiro Maia Costa.

[35] Por exemplo, a idade avançada da vítima de crime de burla, do art. 218º, nº 2, al. c), do Código Penal, também não determina, por si só, a qualificação do crime de burla.

 

[36] Anotação ao art. 132º, feita por Figueiredo Dias/Nuno Brandão, tomo I, pág. 49.

[37] Acórdão do S.T.J. de 3-7-2014, processo 417/12.8TAPTL, relatado pela sra. conselheira Isabel Pais Martins.

 

 

[38] Anabela Rodrigues, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, pág. 147 e segs.

[39] Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág. 291.

[40] Acórdão do S.T.J. de 10-12-2009, proferido no processo 496/08.2GTABF, relatado pelo sr. conselheiro Henriques Gaspar.

 

 

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