Opinião

Pão, circo, etc.

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 2 semanas atrás em 28-04-2024

Dos tenebrosos tempos da ‘troika’, guardo mentalmente uma imagem: uma fotografia com quatro pessoas, sentadas em cadeirões, num cenário sumptuoso. Tratava-se de uma das sessões de uma conferência, realizada no Palácio Foz e impulsionada pelo Governo então liderado por Pedro Passos Coelho, que tinha como objetivo debater o Estado Social.

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A recordação do momento ainda hoje me causa refluxo gástrico, a lembrança de um desfile de homens e mulheres (maioritariamente homens…) com sapatos e relógios que custaram mais do que o rendimento anual de muitos dos que seriam mais diretamente afetados pelas informadas discussões que ali decorreriam.

Pode o leitor que está já a pensar «Olha, mais um que quer acabar com os ricos» tomar uma das seguintes atitudes: ir ler algo que lhe interesse mais ou fazer-me o favor de refletir comigo sobre que capacidade podem ter pessoas que vivem toda a vida em bolhas de privilégio para tomar decisões sobre as vidas reais de quem tem de fazer contas para saber se vai ter dinheiro para o passe do autocarro. E se dou o exemplo dos transportes públicos, é porque estes pensamentos me foram despertados pelas imagens da inauguração da renovada Praça 25 de Abril, durante a qual foi ‘apresentado’ um dos veículos que será usado pelo Sistema de Mobilidade do Mondego, em que não faltaram as ‘personalidades’ devidamente disponíveis para a fotografia – com a necessária dose de povo para enfeitar, pois claro – que nunca veremos a utilizar aquele modo de transporte.

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O aproveitamento dos transportes públicos para selfies e outras ‘photo ops’ é, de resto algo bastante do agrado do poder local, não sendo Coimbra exceção.

O atual executivo municipal tem, certamente, mais fotos tiradas em autocarros do que viagens realizadas nos mesmos e lembro-me de fazer piadas entre amigos sobre poder saber-se quanto tempo faltava para as eleições a partir da frequência com que um antigo ‘inquilino’ da Praça 8 de Maio era visto nas paragens dos SMTUC.

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Há muito que defendo que devia existir uma relação direta entre certas decisões tomadas pelos políticos e a sua vida. Pessoalmente, veria com bons olhos que um autarca estivesse obrigado a usar apenas o sistema municipal de transportes para as suas deslocações, durante todo o seu mandato.

Ou, mudando de área e de escala, que um ministro da Saúde não pudesse recorrer a um médico fora do SNS (e sem ter direito àquela pulseira não oficial da Triagem Manchester que lhe permite ter prioridade só por ser governante). Não se trata de populismo – não o vejo como um castigo – mas de aproximar, não os cidadãos das decisões, mas as decisões dos cidadãos.

Sem uma transformação deste tipo, continuaremos a ver medidas sobre o acesso justo e igualitário à habitação, por exemplo, serem discutidas por pessoas que, 30 minutos antes de votarem uma lei sobre aquela área, estavam a passear numa Avenida da Liberdade pejada de lojas de marcas de luxo.

Não acredito que seja necessário ter vivido na rua para compreender a necessidade básica de uma casa, que alguém que sempre tenha frequentado ambientes favorecidos não possa ter sensibilidade para questões sociais ou, sequer, que todos os políticos são iguais, mas acredito, sinceramente, que é mais difícil tomar opções que sirvam os menos privilegiados quando, no braço que se levanta para assinalar o sentido de voto, está uma pulseira Cartier.

OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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