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Opinião de Cláudia Ferreira: A arte que vem de longe e nos ajuda 

Notícias de Coimbra | 3 anos atrás em 28-02-2021

Camille Claudel deu curso a vários estudos que se detiveram nas mãos, e um deles pode admirar-se no Musée Camille Claudel, em Nogent-sur-Seine, concretamente, um que dedicou à mão esquerda e fixando-se a data de 1889, sensivelmente. Outros dispersaram-se e certamente existem pessoas, hoje, que possuem em casa uma mão que proveio das modeladoras mãos da escultora, cuja vida foi tão intensa, quanto fatal. Com efeito, numa época em que a escultura estava entregue a homens, Camille Claudel, com o apoio vigilante do pai, haveria de fazer a aprendizagem formal da disciplina, até chegar ao atelier de Auguste Rodin. Com Rodin aprimorou a técnica, foi sua modelo, e estabeleceu uma relação passional controversa e que se tornaria dilacerante.

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Camille Claudel nasceu no ano de 1864 e morreu em 1943, tendo passado os últimos 30 anos da sua vida internada num hospital psiquiátrico com a conivência do irmão, Paul Claudel, e com a estrita vigilância da mãe, que nunca permitia à filha visitas, nem a alteração da condição clínica, apesar dos médicos terem por diversas vezes sugerido que Camille poderia levar uma vida justa fora dos limites físicos do hospital. Portanto, Camille Claudel, se fizermos as contas, assistiu a duas guerras mundiais, a Primeira Grande Guerra, decorrida entre 1914 e 1918, e a Segunda Guerra Mundial, esta balizada entre os anos de 1939 e 1945, além de ter conhecido o cárcere de uma qualidade bem específica, que a impediu de dar curso à sua arte. 

Pese embora a tragédia da vida de Camille, pessoal e, como se antevê, decalcada num tempo de guerras, violência colectiva, colapso societal, falência dos valores que a Modernidade sintetizou na palavra mágica do Progresso, não me parece que possamos ter dúvidas quanto à mão que comandou toda a sua produção artística: a esquerda. Walter Benjamin diz-nos que os golpes mais certeiros, e decisivos, são desferidos pela mão esquerda; e Cristina Campo distingue as experiências proporcionadas pelas mãos direita e esquerda, através de metáforas em que inclui as imagens da morte. Assim, as relativas à mão direita equivalem a uma morte por arma branca; já as experiências da mão esquerda aferem-se pela lenta asfixia através de areias movediças e raramente restam as palavras para contá-las, e a restarem são como fogo que queima.

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Desde a Segunda Guerra Mundial, ferida aberta no Mundo pela Europa, que se tem tentado sarar e sanar a divergência e, ainda que certamente seja necessário constantemente afinar políticas, opções, vozes, a União Europeia tem sido crucial. Se lançarmos um olhar distendido à História europeia, nunca, nunca, em tempo algum, ocorreu um período de pacificação como aquele a que assistimos hoje. Podemos, sim, relembrar homens e mulheres que projectam a ideia de uma Europa alicerçada numa espiritualidade, e fraternidade inerente, que diverge dos moldes economicistas de pragmatismo operativo; mas não devemos colocar em causa uma União Europeia.

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Por outro lado, e correlacionado, não me parece lógico, e desejável, defender limites de territorialidade, de onde emana a autarcia dos países, porque a pandemia que estamos a viver planetariamente precisamente nos demonstra a interioridade do planeta Terra. Ou seja, parece-me que deverá desde já antever-se uma profunda coesão entre local-global, o que implica alterar a visão da geo-estratégia: não deverá cristalizar-se, dando sim resposta a problemas concretos das pessoas e povos, os quais, uma vez solucionados, não justificam a manutenção de estruturas autónomas, optando-se, portanto, por entidades dinâmicas. Assim, as qualidades diáfanas do neo-liberalismo, manifestas na sua capacidade de cavalgar fronteiras e deslocalizar a produção, deverão ser apropriadas por uma democracia global.

Como relaciono a situação que estamos a viver planetariamente com as mãos de Camille Claudel? Pois não tenho dúvidas de que, assim como a artista esculpiu com a mão esquerda, enfrentou a violência, e deixou a sua obra, também nós, agora, podemos pegar no seu gesto e, ao lhe prestarmos a homenagem merecida, prolongamos um desígnio: o de não deixar, individual e colectivamente, sucumbir o sopro da Humanidade. Habituámo-nos, creio, a deixar a arte acantonada, entregue a técnicos, especialistas e, mais do que nunca, aos mercados. Mas arte é, tanto indomável, quanto extraordinariamente precisa, e as obras de arte de facto resistem e dão-nos vida, assim permaneçamos desperto/as. 

Opinião de Cláudia Ferreira  

Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte. É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.

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