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Obra sobre Arthur Paredes revisita “génio misterioso” do guitarrista de Coimbra
Imagem: DR
O investigador António Manuel Mendes procurou no seu livro-CD “Pioneirismo, Genialidade, e Modernidade em Arthur Paredes” trazer “o génio misterioso [do guitarrista e compositor coimbrão] à compreensão da atualidade”.
O livro, amplamente ilustrado, com recurso a arquivos pessoais, inclui seis CD, com a integral das gravações de Arthur Paredes (1899-1980), cerca de 20 gravações inéditas e também gravações realizadas desde 1905, por diferentes intérpretes, alguns seus contemporâneos.
A obra, editada pela Tradisom Produções Culturais, é apresentada hoje às 18:00, na Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa.
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Arthur Paredes “é um grande mito, ainda hoje, sobretudo na academia de Coimbra, mas a vida dele era um enorme mistério”, disse o autor à agência Lusa. Para o investigador, é Arthur Paredes quem “acaba por dar a grande autonomia à música de Coimbra”, reconfigurando a tradição e “emprestando à guitarra uma dimensão orquestral e concertística que não estava plenamente firmada”.
Referindo-se aos seis CD que o livro inclui, num resgate do material sobrevivente, António Manuel Mendes lamentou que “muita coisa [do Arthur Paredes] não ficou gravada”.
“O meu fio condutor e orientador relativamente aos CD que vêm em anexo ao livro, no que diz respeito ao Arthur Paredes, foi remasterizar várias fontes sonoras anteriores ao jovem Arthur Paredes e coexistentes com a época em que ele se afirmou, em 1920, também para o compreender melhor; [verificar através das gravações] em que é que ele se distingue, em que é que ele converge, em que é ele que replica, no que nele é novidade”.
“Quanto ao Arthur Paredes a ideia foi resgatar tudo o que ele gravou, por um lado e, por outro, trazer ao conhecimento tudo aquilo que ele não quis fixar em gravação comercial, mas que estava em coleções privadas, bobinas de ensaio… Trazer tudo isto ao conhecimento”.
O autor reconhece que se o músico fosse vivo talvez não concordasse, “porque era um perfeccionista”, mas traz “um considerável conjunto de fontes que até esta edição não era conhecido do grande público”.
“Muitos dos ensaios [que agora vêm à luz do dia] ajudam a compreender a construção do génio que foi Arthur Paredes”, garantiu António Manuel Mendes.
Arthur Paredes é pai do também guitarrista e compositor Carlos Paredes (1925-2004), realçando António Manuel Mendes “o ADN, uma genética” que vem desde o bisavô de Carlos Paredes, António Paredes.
O investigador chamou à atenção para o contexto diferente em que Arthur e Carlos Paredes desenvolveram as suas carreiras.
“Carlos [Paredes], quando se começou a afirmar, sobretudo em Portugal, beneficiou de um conjunto de novos instrumentos mediáticos que vão desde o cinema à televisão, do documentário sonoro ao audiovisual, ao teatro. – ele passou muito pelo teatro de intervenção político-social. A era do vinil tinha um outro potencial com aqueles discos de massa, ao nível das grandes salas. O Carlos Paredes já beneficia de instrumentos sonoros de amplificação, que no tempo do pai não existiam, e ele tira um enorme proveito disso”.
António Manuel Mendes recorda as primeiras saídas “de amplitude” para o estrangeiro de Carlos Paredes: foi a Cuba, à Ópera de Sidney, na Austrália; em 1967 foi tocar ao Festival de Cannes e esteve quase um mês em cartaz no Olympia, em Paris. Apesar dos meios existentes, lamenta o autor, dessas atuações, também “nada ficou gravado ou filmado, o que é lastimável”.
Relativamente à obra “Pioneirismo, Genialidade, e Modernidade em Arthur Paredes”, António Manuel Mendes realçou a forma como contextualizou o músico coimbrão e o “universo que criou”.
O autor enumera pormenorizadamente todos os atores da música coimbrã, dos ranchos da cidade à academia, até ao teatro de revista, muito centrado em teatro improvisado e amadorístico, tradição da cidade também mantida pelos estudantes, nomeadamente os que terminavam os cursos, despedindo-se com uma revista à portuguesa, com grande componente musical, e no contexto da qual surgiram as “Baladas da Despedida”.
Contextualizar é para o investigador “uma obrigação; como compor o esqueleto com a carne e o sangue”. “Tinha de o fazer. É, no fundo, um compromisso ético que firmei nos anos 1980, com algumas pessoas que conheceram o Arthur Paredes e trabalharam com ele, tinha de haver um esforço quase pedagógico de o trazer à compreensão”.
Arthur Paredes “era um homem muito misterioso, profundamente arredio em relação à publicidade, à fotografia, e foi uma maneira de estar na vida que ele transmitiu muito ao filho”.
“O que é da vida privada fica na vida privada e o Carlos também tinha essa enorme reserva, relativamente aos seus casamentos, aos seus filhos, ao que se passou na prisão em Caxias e no Aljube [em Lisboa]. Havia de facto essa reserva à vida privada, o que me dificultou muito o acesso ao conhecimento, foi muito difícil reencontrar esta família”, afirmou.
Na realidade trata-se de uma dinastia de músicos desde o bisavô de Carlos Paredes, António Paredes, originário de uma aldeia do concelho da Mealhada, que se fixou em Coimbra a trabalhar como carpinteiro “e já era guitarrista popular”.
A dinastia segue pelos seus filhos, e tanto Gonçalo, pai do Arthur Paredes, como o outro filho, Manuel Rodrigues Paredes, resgatado nos CD, “foram guitarristas de grande nome”.
Nesta obra, o investigador procura caracterizar o universo musical coimbrão, apresentando-se como “o principal autor que insiste nesta distinção entre a canção e o fado de Coimbra”, desde que foi estudar para Coimbra na década de 1980 e a tem mantido nos seus estudos e ensaios.
Em 1999, publicou “No Rasto de Edmundo Bettencourt, uma Voz para a Modernidade”, no qual frisou “essa questão de Bettencourt e Arthur Paredes, seu guitarrista solista, que tinham operado um corte com o passado e tinham levado esta música para uma outra dimensão” – música que se pode chamar “mais corretamente de canção de Coimbra, abarcando nessa designação algumas músicas que tenham algum cariz de fado”.
Segundo o autor, na tradição coimbrã e da universidade, “até à década de 1990, quando se referia ‘o Paredes’, era o Arthur Paredes”, enquanto “no contexto de Lisboa, no contexto jornalístico”, Paredes era Carlos – “muito por influência da Amália Rodrigues, que conheceu Carlos Paredes em 1966, e foi ela quem o convidou a ir ao Olympia”, em Paris. “Amália começou a referir-se a Carlos como ‘o Paredes’ e a expressão pegou”.
Deste modo, segundo o investigador, “há um período de 30, 40 anos” em que coexistem “dois Paredes”: o referenciado por Coimbra, Arthur, e o referenciado pela comunicação social, Carlos Paredes.
Arthur Paredes não teve uma educação musical formal e a sua profissão foi a de funcionário do ex-Banco Nacional Ultramarino.
A escola técnica de Carlos Paredes, na guitarra, veio do pai, defende António Manuel Mendes, referindo que a “mão grande, aquela manápula do Carlos, com dedos muito compridos e unhas naturais”, era como a mão de pai: “Aquele tipo de mão, assim como a maneira de colocar a mão, de atacar as cordas vem do pai”, de quem Carlos Paredes foi o segundo guitarra.
Segundo António Manuel Mendes, há uma componente genética na genialidade que o pai passa ao filho, “e uma série de comportamentos que se observam num e no outro, por exemplo o enorme déficit de atenção, a falta de sentido prático perante as coisas da vida diária, aquela compulsão para ensaiar três, quatro horas, diariamente, a atitude de privação quando ficavam sem o instrumento, três, quatro dias sem tocar. São estigmas que estão num e no outro”, disse.
Referindo-se à composição, o autor afirmou que “Arthur se preocupava com o sentido quase matemático do ritmo – as suas composições trazem o rigor do sentido do compasso”. “Até [Arthur Paredes] aparecer, os guitarristas de Coimbra tocavam com muita lentidão, por vezes não respeitavam o compasso”.
“Arthur Paredes afasta-se desses códigos, é um homem muito matemático, muito ao metrónomo, muito preocupado em puxar pelos cantores, em fustigar a música com acordes muito rigorosos; há nele uma certa raiva que lhe vem de ter ficado órfão de mãe muito menino, e de pai, aos 15, 16 anos. Há uma revolta neste homem que se traduz na maneira como toca, como interpreta”.
Na opinião do investigador, Arthur Paredes fez um corte epistemológico na tradição musical coimbrã, “sem dúvida nenhuma”.
“Ele nasce na tradição coimbrã, mantém algumas tradições, mas depois processa completamente, reconfigura essa música emprestando à guitarra uma dimensão orquestral e concertística que não estava plenamente firmada, e acaba por dar a grande autonomia à música de Coimbra”.
Arthur Paredes aprendeu a tocar guitarra aos 10 anos, “mas já estava muito solidamente ambientado”.
“Sistematizou a afinação da guitarra que fica num tom mais grave, mais doce, mais próximo da voz de barítono, que permite às vozes de 1.º e 2.º tenores brilharem, porque se forma uma espécie de dueto entre esta massa instrumentística que está um pouco mais baixa e as vozes masculinas, que estão num registo mais alto”.
À Lusa António Manuel Mendes realçou que não é músico e que “esta não é uma obra centrada na análise musical da obra acompanhada por partituras, também não é uma obra de musicologia, é antes da área da história da cultura e das mentalidades, da antropologia cultural procurando fazer uma grande divulgação de Arthur Paredes, mas deixando a porta aberta a novas abordagens, mais técnicas e metodológicas”.
António Manuel Mendes nasceu nos Açores, em 1965. Professor e investigador, foi consultor de diversos projetos, organizador de espetáculos de homenagem e evocação no âmbito da história da Canção de Coimbra e orientador de trabalhos académicos. Iniciou as suas investigações em torno da Canção de Coimbra em 1987.
Entre os trabalhos que assinou, constam “Flávio Rodrigues da Silva, fragmentos para uma guitarra” (2002), em coautoria com José Paulo, “A Canção de Coimbra no século XIX / 1840-1900 (2002), “A viola vai na rua – memória sobre a viola toeira” (2016), ainda inédita, e “Repertório estrófico da Canção de Coimbra 1840-2015”, em coautoria com José Anjos de Carvalho (2018).
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