Opinião

O gato e a sacro-correspondência 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 5 meses atrás em 06-12-2023

Sacro /sa·cro/ n. 1. Venerável; sagrado. 

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  1. Que é relativo a ritos e ofícios religiosos. 
  2. Relativo a ou osso triangular que está no fundo da coluna vertebral. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 

A coisa cheirou logo a esturro. “Duas crianças tratadas com dignidade e rapidez no Serviço Nacional de Saúde? Aqui há gato”. Investigou-se. E há mesmo. 

“Apurou-se que o meu filho, Dr. Nuno Rebelo de Sousa, me enviou um e-mail”. Uma  declaração estranha, esta, de Marcelo Rebelo de Sousa, proferida na passada segunda feira. Estranha não só por tratar o seu próprio filho por “Dr. Nuno Rebelo de Sousa” (“o  meu Nunocas” teria soado mais sincero), mas, ainda mais estranha por Marcelo se  referir ao caso com tamanha formalidade tratando-se este de um caso de flagrante  informalidade. 

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Igualmente estranha é esta ideia de que Portugal é um país permeável à cunha e à  cultura do compadrio. Eu sei, é difícil de acreditar. Também eu fiquei em choque.  Favorecimentos? Em Portugal? Que brincadeira é esta?! 

Estranhezas à parte, a verdade é que as notícias dão conta de que esta modalidade de  cunha, instituição nunca vista, sentida ou ouvida no País — nesta altura, haverá muitos  portugueses com um dicionário na mão à procura do significado da palavra “cunha” — terá atingido o Palácio de Belém. 

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Certo é que depois da promessa de um silêncio autoimposto — fenómeno tão raro em  Marcelo como a cunha em Portugal —, o Presidente da República resolveu falar, cinco  dias depois de laconicamente ter saudado a abertura do inquérito ao caso das gémeas  tratadas no Hospital de Santa Maria. Mesmo não querendo perturbar os habituais 

mecanismos de escrutínio, Marcelo viu-se obrigado a esclarecer o País que — ponto um  — acha o favorecimento inaceitável e que — ponto dois e mais importante — trocou  correspondência com o filho. O tal doutor que trouxe o gato. 

O filho, Dr. Nuno Rebelo da Sousa, amigo dos progenitores das gémeas, cujos interesses,  aliás, representava, viu o seu pedido reencaminhado para a assessora dos Assuntos Sociais do Presidência da República, Maria João Ruela, a Mrs. Hudson de Belém Street, e para o chefe da sua Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, uma espécie de Alfred que  lê o correio, trata da lide doméstica do Palácio e estaciona o Batmobile. 

Em resumo, um cidadão anónimo moveu esforços por outro cidadão anónimo. Se  produziu efeitos, ainda bem. Talvez o mesmo esforço e dedicação possam ser replicados  pela concorrência das gémeas recordistas. Isto é, as outras crianças que precisem da  mesma disponibilidade de recursos do Serviço Nacional de Saúde. Com persistência e  algum suor, os pais dessas crianças também podem arranjar o número de telefone do  Presidente da República. 

Marcelo garante que não moveu esforços, nem um dedo. Parece que o seu filho terá  movido dois ou três. Pelo menos, enquanto escrevia os polémicos e-mails. Sabemos,  assim, que foram movidos alguns dedos e meia dúzia de esforços, com suficiente  insistência para que se tenha produzido este extraordinário paradoxo: duas gémeas  brasileiras obtiveram cidadania portuguesa em tempo recorde e, por isso, beneficiaram  de uma qualidade de cuidados de saúde que é inacessível aos cidadãos portugueses. 

Uma ironia que poderá irritar alguns progenitores da dita concorrência, mas que não  deixa de ser merecedora do nosso fascínio e curiosidade. 

Não sei se efetivamente houve algum favorecimento, mas, se tiver havido, este é o tipo  de favorecimento que facilmente se perdoa. Primeiro porque, de acordo com a CNN  Portugal, o pai das duas gémeas, Samir Assad Filho, deve 372 milhões de reais ao fisco  brasileiro — gente pobre, portanto, devedora, que claramente precisa de apoio social.  Segundo porque, de acordo com o Livro do Génesis, o favorecimento é cristão. E  Marcelo, como sabemos, ama Jesus Cristo. O homem só quis ajudar. Pois se o próprio 

Abraão favoreceu Isaac entre o séquito de descendentes que produziu, não pode Marcelo favorecer duas gémeas entre 200 milhões de brasileiros que nem conhece? 

No seu coração já cabiam Jesus Cristo e o Sporting. O de Braga. Agora, auxiliado (alegadamente) pela generosidade cristã do Governo e do Ministério da Saúde, o Presidente da República conseguiu acomodar duas pequenas gémeas no recato fraterno que mora dentro do seu peito. Talvez não seja legítimo pedir-lhe que arranje lugar para todos os portugueses que esperam por cirurgias e tratamentos ou mesmo para os muitos que têm batido com o nariz na porta das urgências fechadas. Não há sistema cardiovascular que aguente tamanha ocupação e, como o próprio lembrou ao País, Marcelo tem um coração frágil.

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