Dizem que uma das condições para uma vida perfeita é simples: ter uma rede social e acreditar que, mesmo quando o céu ameaça cair, a inteligência artificial dará conta do recado. Como se a meteorologia pudesse ser corrigida por um algoritmo. Talvez não saibamos, ou finjamos não saber, que o contacto prolongado com estes “instrumentos fantásticos”, travestidos de superpoderes, tem um efeito colateral silencioso: altera a percepção da realidade e empurra o comportamento para fora do eixo.
Aos poucos, tornamo-nos intrusos nas nossas próprias vidas. É confortável, a curto prazo, parecer aquilo que não se é. Vestir uma versão editada de nós mesmos e oferecê-la ao olhar alheio. Mas por quê esta urgência em mostrar aos outros o que não somos e o que não temos? Viver de ilusão parece empobrecedor, ainda assim, normalizámos o gesto. Se não sou eu, é um conhecido. E, no entanto, fingimos indiferença: quem se importa se alguém ostenta, ainda que virtualmente, uma vida perfeita?
Importa sempre a alguém. E é aí que a ficção começa a oferecer tragédias reais. A inveja e a comparação instalam-se, surgem os delírios, a obsessão, a perda de lucidez. Estamos todos no mesmo barco, à deriva, e ouve-se o velho refrão: salve-se quem puder. Mas quem quer, de facto, ser salvo? Quem nunca tomou um atalho para chegar primeiro, mesmo que isso implicasse deixar para trás alguma verdade?
Se o futuro tivesse escolhido outro rumo, talvez ainda passássemos o tempo em palavras cruzadas, ou a gastar conversas inúteis sem a ânsia de registo, sem a necessidade de prova. Hoje, tudo exige evidência, tudo pede imagem, tudo precisa de validação.
Preocupa-me a forma como entregámos a tecnologia ao lugar da nossa paz. Vivemos num tempo em que o conflito se tornou persistente, alimentado por rotinas automáticas e por pessoas que parecem confortáveis dentro de um mundo que não existe fora do ecrã.
Fotografamos as pirâmides do Egipto sem lá estar. Coleccionamos experiências que não vivemos. E pergunto-me porquê. Talvez porque a vida perfeita, tal como a imaginamos, não resista ao contacto directo com a realidade. Ninguém a possui, talvez os budas, talvez os eremitas. E esses, curiosamente, dispensam os artifícios tecnológicos que nos seduzem.
A História lembra-nos, com insistência, que chegámos aqui por entre invasões, guerras, perdas e insurreições. A chamada evolução trouxe-nos também uma desigualdade global sem precedentes, uma concentração obscena de riqueza. Ainda assim, não deveria ser impossível preservar a lucidez.
Que eu saiba, a vida perfeita não é um projecto em construção nem uma imagem filtrada. É apenas isto: o estado exacto de como a vida é e está. E talvez seja essa a sua perfeição ou a sua única verdade.
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