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Opinião

Não, não somos todos Charlie

MANUEL ROCHA | 9 anos atrás em 20-01-2015

Não, não somos todos Charlie. Como, desde logo, não foram todos Charlie aqueles que saíram às ruas de Paris. Ou, pelo menos, não foram todos Charlie da mesma maneira.

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Enquanto o povo ocupava as ruas do centro da cidade de peito descoberto em ambiente de multidão, uma mão-cheia de dirigentes políticos de dirigentes mundiais simulava uma cabeça de manifestação a que – mostraram-nos as imagens não editadas – faltava o corpo. Faltava-lhe o corpo mas sobrava-lhe a moldura de polícias e operadores de imagem, numa patética metáfora da ordem política deste tempo de capitalismo ufano, mas medroso.

Naquela rua sobreprotegida e nas artérias de Paris inteira caminharam separadas, literalmente em sentidos contrários, duas formas contraditórias de caminhar no mundo, ou, melhor dito, duas formas incompatíveis de mexer no mundo. Porque aqueles que seguiam em multidão hão-de ser sempre semelhantes aos que, ainda há dias, eram assassinados nas suas casas, nas suas ruas da Faixa de Gaza, por ordem de Netanyahu, um dos caminhantes daquela cabeça sem corpo.

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No meio da multidão, uns líbios, outros sírios, iraquianos também, parentes ou amigos de outros que estarão a morrer, hoje mesmo, nas ruas, nas casas das suas cidades, no lugar em que caíram as bombas decididas pelos dirigentes da NATO que, mostraram-nos as imagens, seguiram de braço dado os vinte minutos que durou a conveniente encenação.

Os crimes de Paris deram origem aos mais aberrantes comentários de feição securitária, desde a “Europa para os europeus” até à “revisão do acordo de Schengen”, pretendendo desligar os crimes desta natureza de uma situação internacional marcada por ingerências e agressões contra estados soberanos, através da instigação de conflitos religiosos e étnicos e de promoção de forças da extrema-direita, xenófobas e fascistas. A máquina de mistificação, entretanto posta em marcha, oculta a responsabilidade de políticas que aumentam a exploração e a exclusão social, também nos estados da União Europeia.

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Em nome da segurança – do tipo daquela, musculada, que nos foi revelada na passeata VIP de Paris – estamos já perante uma escalada de instrumentalização de genuínos sentimentos de indignação, a caminho da aceitação da agressão aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, da promoção de sentimentos racistas e xenófobos com que se vem alimentando o crescimento da extrema-direita e do fascismo na Europa.

 A memória do traço dos caricaturistas do Charlie Hebdo, da voz desesperada do polícia assassinado no Boulevard Richard-Lenoir, como a imagem da menina de Gaza procurando livros entre as ruínas da sua escola, exigem-nos a luta pela inversão de políticas, quer de âmbito económico e social, quer de relacionamento internacional entre estados; chamam-nos para a exigência do fim do apoio político, financeiro e militar dado pelos EUA e países da União Europeia a grupos que espalham o terror e a destruição, nomeadamente no Médio Oriente; convocam-nos para o envolvimento a favor do desenvolvimento de políticas de paz e cooperação respeitadoras do direito internacional, da soberania dos povos, da liberdade e da democracia.

Bem perto dali, Portugal prossegue a marcha em direção ao desastre. Aumenta o desemprego e a precariedade (diz o INE que, entre Setembro e Novembro de 2014, o número de desempregados aumentou em cerca de 30 000 e a taxa de desemprego em 0,6 pontos percentuais); abranda a evolução do PIB (como o provam os dados recolhidos no último trimestre do ano de 2014); degradam-se as condições de vida do povo à medida que se desvalorizam os salários e pensões; abatem-se os serviços públicos, de que é triste exemplo o caos nas urgências hospitalares.

É sabido que quem luta nem sempre alcança, mas quem não luta – É da História – nunca alcança. Compreende-se, por isso, que os partidos do “arco do poder” se invistam tanto na criação de um clima pré-eleitoral, desvalorizador da importância da luta contra a destruição de todos os avanços da sociedade democrática. Tal como nos cenários dos grandes conflitos, a sementeira do medo – nomeadamente o de perder os meios de subsistência – é capaz de tolher a determinação das vítimas das políticas que vimos a sofrer desde há muitos anos – uma variante muito aumentada da violência doméstica, em que a vítima demora a desfazer-se do agressor.

É certo, porém, que as grandes melhorias nas vidas dos cidadãos foram sempre resultado de lutas empenhadas e persistentes, como aquelas que vêm desencadeando em diferentes lugares de resistência à catástrofe. Trata-se, por isso, de juntar vozes em lugares como a Manifestação Nacional dos trabalhadores da Função Pública pela reposição imediata das 35 horas de trabalho, em 30 de Janeiro.

 Lá fora e cá dentro, a democracia – e o seu contrário – joga-se nos lugares todos. É que, de um lado, estão os cidadãos que vivem da sua força de trabalho enquanto, do outro lado, ficam os que vivem do trabalhos dos primeiros. Como na manifestação dividida de Paris.

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MANUEL ROCHA

Militante do PCP

Lider da bancada CDU na AMC de Coimbra

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