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Na Lousã, fogo contornou bosque que António Carlos cuida há 24 anos

Imagem: Paulo Novais/LUSA
António Carlos chegou à Cerdeira, na Serra da Lousã, em 2001. Desde então, este habitante permanente daquela aldeia de xisto decidiu cuidar de um bosque de folhosas. Quando o fogo chegou, o trabalho parece ter dado frutos.
Na chegada à Cerdeira, é visível o verde que circunda a pequena aldeia de xisto, situada numa encosta de grande declive, quando quase tudo à volta parece ter ardido no incêndio que começou no dia 14 e que consumiu 3.500 hectares na Serra da Lousã.
Uma cortina de folhosas – sobretudo carvalhos – rodeia a aldeia, que chegou a estar desabitada e que ganhou nova vida a partir do final dos anos 1980, quando Kerstin Thomas e o seu companheiro de então, Bernard Langer, ali se radicaram.
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Uma boa parte dessas folhosas, sobretudo na zona junto à base da encosta, pertence a António Carlos Andrade, que ali se instalou e por ali vive desde 2001, depois de decidir mudar de vida e abandonar o curso de guitarra clássica no conservatório.
No dia em que o fogo chegou, António Carlos ainda se manteve na Cerdeira até perto da meia-noite, depois de preparar a casa e o terreno onde cultiva plantas aromáticas para o possível embate das chamas.
Quando saiu da aldeia de xisto, já o incêndio descia uma encosta que se vê da aldeia.
O fogo terá depois avançado com intensidade por uma zona de pinhal abandonado, mas acabou por se deter no sopé da encosta da localidade.
Nos dias que esteve fora, recebia a informação que tudo teria ardido, mas quando chegou e viu aquela cortina de folhosas quase intacta não se surpreendeu.
No sopé, junto a um ribeiro, o bosque cuidado por António Carlos Andrade ao longo de 24 anos parece ter servido de tampão. Em alguns pontos, longe das habitações e de difícil acesso para bombeiros, parece que a chama pura e simplesmente se extinguiu, numa zona de carvalhos adultos.
“Ele deveria vir com muita força, mas depois, quando entrou para aqui, foi o primeiro embate”, explica à agência Lusa o habitante.
Mas para António Carlos, o bloqueio do fogo não se resume à ação dos carvalhos, mas também à intervenção humana.
Quando chegou, apesar de muitas daquelas árvores já se encontrarem ali, os terrenos eram marcados por urzes, giestas e silvas, que tornavam os terrenos, mesmo com carvalhos, propícios ao risco de incêndio.
Ao longo de mais de duas décadas, foi comprando terrenos e fez um trabalho moroso, tanto ao sol como à chuva. Mais do que plantar, cuidou do que existia e do que ia surgindo espontaneamente por aquelas terras, tratando de tirar também o mato alto e denso – tão denso que para caminhar pelo terreno tinha de usar os trilhos dos javalis.
“Já viu giestas com sete metros? Eu nunca tinha visto. Até fui buscar a fita métrica para confirmar”, conta à Lusa o habitante da Cerdeira.
Pelo bosque, António Carlos Andrade vai apontando para diferentes pontos do terreno, a recordar-se de andar de roçadora, motosserra ou trituradora – lembra-se do suor, de dias de granizo, de chuva.
Lamenta hoje não ter tirado fotografias de como estava antes, mas o tempo era pouco – “até para comer”.
A floresta que ali se vê – gerida e feita de folhosas – é distinta dos restantes montes que circundam a aldeia, onde predomina o pinhal e eucaliptal não gerido.
“Sente-se logo a diferença de temperatura, não é?”, observa, assim que chega ao bosque e o efeito da sombra das folhosas faz-se notar.
Mesmo assim, lamenta a perda de um terreno seu, plantado há pouco tempo, com árvores que eram apadrinhadas, já no caminho em direção ao Candal, onde ficou tudo ardido.
“Aquilo parece a Lua. Foi tudo, tudo, mas tudo dizimado”, lamentou.
Questionado sobre o impacto que a cortina de folhosas terá tido no incêndio que ali chegou, António Carlos Andrade escusa-se a dar uma resposta, mas sugere apenas um exercício: “Observar”.
Apesar de, mesmo assim, ter tido alguns terrenos afetados, o habitante da Cerdeira olha para isso apenas como um percalço.
“Há muitos percalços na vida”, relativiza.
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