Portugal

Morreu “O Ser Urbano”

Notícias de Coimbra | 1 hora atrás em 27-07-2025

Imagem: facebook José Carlos Mota

O arquiteto Nuno Portas, que morreu hoje aos 90 anos, destacou-se como pensador, investigador e impulsionador de políticas habitacionais e urbanísticas em Portugal e no estrangeiro, garantindo projeção internacional, sobretudo em Espanha e no Brasil.

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Nuno Portas demonstrou preocupação constante com os direitos dos cidadãos à habitação digna e à cidade. Foi secretário de Estado da Habitação e Urbanismo em 1974, após o 25 de Abril. Criou o Serviço de Apoio Ambulatório Local, para responder a necessidades crónicas e urgentes, criadas por anos de ditadura. Manteve, ao longo de toda a sua obra e de toda a sua vida a acérrima defesa pelo “direito à cidade”

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Nuno Rodrigo Martins Portas, uma das figuras de referência na cultura portuguesa, nasceu em 23 de setembro de 1934, em São Bartolomeu, concelho de Vila Viçosa, distrito de Évora, e dividiu-se ainda muito jovem entre as paixões pelo cinema e pela arquitetura.

Com uma carreira multifacetada, Portas conciliou atividade académica, produção teórica, intervenção cívica e prática profissional, após ter concluído o curso de arquitetura em 1959, nas Escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto.

O percurso profissional haveria de iniciar-se dois anos antes, em 1957, na Rua da Alegria, em Lisboa, no ateliê de Nuno Teotónio Pereira (1922-2016), considerado um dos mais notáveis arquitetos portugueses da sua geração, e um dos exemplos de admiração que Nuno Portas citou várias vezes, em entrevistas.

O arquiteto e investigador trabalhou “em grande sintonia” com Teotónio Pereira durante quase 20 anos, nomeadamente em projetos dos bairros dos Olivais, na capital: “Era uma pessoa com uma enorme cultura e empenho em ser verdadeiro”, descreveu Portas, em entrevista à RTP, em 2005.

A colaboração manteve-se até 1974, marcando uma fase de intensa aprendizagem e envolvimento em projetos de renovação da arquitetura nacional, com ideias consideradas na altura pioneiras, contundentes e ousadas, materializadas em contributos às cidades do Porto, Guimarães e Aveiro.

Paralelamente, Nuno Portas tornou-se figura ativa no meio cultural, associando-se à revista Arquitectura, da qual foi diretor, e onde publicou textos distinguidos, nomeadamente com o Prémio Gulbenkian de Crítica de Arte em 1963.

Foi dos primeiros a escrever sobre a obra do arquiteto Álvaro Siza, tanto em Portugal como em revistas da especialidade em Espanha e Itália.

Entre 1962 e 1974 desenvolveu investigação no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, onde coordenou o Núcleo de Arquitetura, Habitação e Urbanismo, atividade que é tida no meio como contributo decisivo para o pensamento crítico sobre o espaço urbano e a habitação em Portugal.

Com uma abordagem interdisciplinar, Nuno Portas aliou o rigor científico à preocupação social, antecipando debates sobre cidade e cidadania, sublinham os seus pares.

Desde cedo, demonstrou uma preocupação constante com os direitos dos cidadãos à habitação digna e à cidade, o que transpareceu na defesa de modelos cooperativos de habitação e na criação do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), quando foi secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, em 1974.

“Toda a minha atividade política esteve sempre ligada ao meu papel como arquiteto”, sublinhou, na mesma entrevista à RTP, na qual sublinhou a importância destes profissionais estarem atentos às desigualdades e às necessidades reais das comunidades, defendendo que aprofundassem os conhecimentos no campo da antropologia e sociologia.

Os seus escritos — tanto em arquitetura como em crítica de cinema — revelam uma personalidade atenta à cultura, ao pensamento contemporâneo e à transformação social, não se acomodando à norma, e mantendo uma postura interventiva ao longo da carreira.

A carreira docente teve início na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde lecionou a cadeira de Projeto entre 1965 e 1971. Em 1983, integrado no corpo docente da Escola de Belas Artes do Porto, participou na fundação da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde viria a tornar-se professor catedrático em 1989.

Depois, com estatuto de professor jubilado, manteve influência intelectual na academia pelo seu legado, do qual faz parte a estruturação do primeiro mestrado em Planeamento e Projeto do Ambiente Urbano.

A atividade académica de Nuno Portas estendeu-se internacionalmente, com passagens por instituições de prestígio como a Escola Técnica de Arquitetura de Barcelona, o Instituto de Urbanismo de Paris, o Politécnico de Milão, a Universidade de Ferrara, em Itália, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil.

Ainda no plano internacional, liderou o Planeamento Intermunicipal de Madrid (1980-1983), onde viveu nesses três anos, e foi consultor dos planos estratégicos municipais de Barcelona e Santiago de Compostela, também em Espanha.

Trabalhou com as Nações Unidas, a União Europeia e o arquiteto espanhol Oriol Bohigas (1925-2021) em projetos para o Rio de Janeiro, como o Plano de Frente de Mar e o Plano de Recuperação da Zona Central da cidade. Em Cabo Verde, contribuiu para o enquadramento legislativo do urbanismo.

“Hoje a arquitetura tem a obsessão das invenções e despreza a memória. Mas não há linguagem sem memória”, comentou, também em entrevista, defendendo que o “património deveria ser respeitado mas acrescentado, o que os antigos sempre fizeram”, sustentando que aquela disciplina consiste “numa arte de grandes permanências e de responsabilidade”.

Na esfera política, foi nomeado secretário de Estado da Habitação e Urbanismo após o 25 de Abril, nos três primeiros Governos Provisórios (1974-1975). Nesta função, liderou uma profunda reforma do setor, promovendo cooperativas de habitação, o SAAL, e lançou os fundamentos dos atuais Planos Diretores Municipais. Em 1990, exerceu funções como vereador do urbanismo na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia.

Como arquiteto, trabalhou, em Portugal, além de Nuno Teotónio Pereira, com figuras destacadas no setor, como Pedro Botelho, José Luís Gomes, Camilo Cortesão e Bartolomeu Cabral.

Com uma obra centrada no pensamento urbano, coordenou planos estratégicos e de ordenamento em diversas regiões do país.

Numa entrevista à revista brasileira de arquitetura Vitruvius, em 2013, que afirmou: “Considero-me ‘arruador’ – termo usado há séculos – pela importância que tenho vindo a dar aos elementos mais duradouros do urbanismo: as redes de espaço público que se devem antecipar às construções que duram menos, como todos percebemos.”

A revista destacou a visão “profundamente humanista” de Nuno Portas, sempre preocupada “em conciliar a qualidade arquitetónica com as necessidades sociais, defendendo que o direito à habitação digna era indissociável do direito à cidade.”

Entre os projetos mais relevantes, destacam-se o plano do ‘campus’ da Universidade de Aveiro, o primeiro Plano Geral da Expo 98 e os estudos de requalificação de Chelas e do centro histórico de Guimarães.

Autor de vasta obra publicada sobre teoria, história crítica da arquitetura e urbanismo contemporâneo, manteve uma ligação constante ao mundo da crítica e cinefilia, assinando textos em diversas publicações especializadas, com um estilo reconhecido pela acuidade analítica e compromisso social.

Nuno Portas criou uma série de programas que ele próprio conduziu, intitulada “À Volta da Cidade”, centrada no urbanismo e património arquitetónico em Portugal, que a RTP transmitiu em 1978-1979, na qual cada episódio abordava diferentes temas relacionados com a evolução das cidades e a arquitetura nacional.

Neste programa falou d’”Os Problemas da Habitação”, do “Crescimento das Cidades”, da “Defesa do Património”, abordou problemas do centro das cidades e da sua transformação e crescimento, perspetivou questões de arquitetura e urbanismo, de administração local, mostrou obras como o Bairro da Bouça, de Álvaro Siza, sempre visitando os locais, mostrando exemplos concretos e mantendo um tom de diálogo com o espaço em volta – e com o público -, então raro na produção televisiva.

O documentário “A Cidade de Portas”, dedicado à complexidade do conceito de cidade do arquiteto, realizado por Humberto Kzure e Teresa Prata, estreou-se no Festival IndieLisboa em 2021.

Nuno Portas teve uma forte ligação ao movimento cineclubista em Portugal, como membro ativo do Cineclube de Lisboa, e deixou uma visão crítica sobre cinema expressa em diversos artigos e ensaios, nos quais analisou o papel desta expressão como forma de arte e como reflexo da sociedade.

No início da carreira, na década de 1950, quando foi mobilizado para a tropa, chegou mesmo a fazer uma curta-metragem sobre o serviço militar. Em entrevista ao jornal i, em 2013, falou sobre esse filme de 30 minutos, com montagem do cineasta Fernando Lopes (1935-2012): “Pegava na malta que vinha do campo e mostrava como é que as pessoas eram tratadas.”

Nuno Portas, fundamentalmente, acreditava que o cinema, tal como a arquitetura, tinham “o poder de influenciar e transformar a experiência humana no espaço e no ambiente”.

Nuno Portas é pai dos políticos Paulo e Miguel Portas (1958-2012) – do seu primeiro casamento com Helena Sacadura Cabral – e da jornalista e empresária Catarina Portas, do segundo casamento, com Margarida Sousa Lobo.

Nuno Portas recebeu, com o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, o Prémio Valmor, em 1975, pela Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa.

Entre as distinções recebidas, contam-se o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Aveiro e pelo Instituto Politécnico de Milão, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique e o Prémio Sir Patrick Abercrombie da União Internacional de Arquitetos.

Em 2012, Guimarães – Capital Europeia da Cultura dedicou-lhe a exposição retrospetiva “O Ser Urbano – Nos Caminhos de Nuno Portas”, mais tarde mostrada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. A exposição, que deu origem a um catálogo publicado pela Imprensa Nacional, demonstrava como toda a sua obra era uma afirmação do “direito à cidade”.

“A luta pela conquista dos direitos do arquiteto a arquitetar tem de ser firme, mas cautelosa e progressiva”, escreveu n’O Jornal do Arquitecto, em 2017, quando foi homenageado pela Ordem dos Arquitetos.

“O êxito dessa luta”, prosseguiu, “depende, antes de mais, de nós próprios como grupo. Depende de sabermos criar a evidência, perante um público mais largo, ainda que impreparado, de que a nossa maioria de profissionais – e não só o pequeno grupo de notáveis – pode oferecer serviços que outros só por exceção oferecerão e em condições de custo correspondentes aos benefícios que este serviço mais qualificado trará aos utentes.”

E concluiu: “Muita coisa terá de mudar se quisermos legitimar a nossa reivindicação de que o arquiteto, enquanto agente cultural, é imprescindível ao desenvolvimento social das comunidades.”

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