Todas as quintas-feiras, há uma porta que se abre na rua de Xabregas, em Lisboa, para servir pizza confecionada por pessoas sem-abrigo que decidiram pôr as mãos na massa para mudar de vida.
O espaço assemelha-se em tudo a um restaurante aberto ao público, mas no final da refeição não é apresentada a conta. Fica ao critério de cada cliente deixar um donativo que reverte diretamente para quem preparou e serviu a pizza, utentes do Centro de Alojamento e Reinserção do Exército de Salvação, envolvidos no projeto “Pizz´and Love”, no Beato.
“Uma pessoa pode vir aqui e deixar 50 cêntimos, mas há pessoas que só por saberem o motivo do Pizz’ and Love deixam 50 euros, por uma pizza”, diz à Lusa o diretor do Centro de Alojamento e Reinserção, João Barros.
Por cada contributo deixado, três euros revertem normalmente para os custos da operação e o restante para quem está na cozinha a preparar a pizza e para quem a serve às mesas.
Na sala do antigo armazém transformado em restaurante uma vez por semana, Hélia Feijão, 52 anos, distribui as pizzas e inteira-se da satisfação dos clientes. Passou por vários albergues e por um internamento hospitalar prolongado até chegar ao Exército de Salvação.
“Eu era um sem-abrigo, estive internada três meses, por um problema no pulmão e vim diretamente do Hospital Curry Cabral para aqui. Acolheram-me aqui com muito carinho”, conta.
Está há oito meses no centro, onde frequenta um curso de padaria e pastelaria, pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP). Quando terminar, tenciona seguir o ofício e criar o próprio negócio: “Se puder vou abrir um cantinho para mim”.
Hélia trabalhou como empregada de quartos em alguns dos hotéis mais conhecidos de Lisboa. O problema no pulmão impede-a de uma carga horária e de um esforço mais intensivo.
Os sonhos passam também por ter uma casa. “Está um bocado complicado, mas hei de conseguir”, sorri, confiante no apoio que tem recebido. “Eles ajudam imenso, à procura de habitação, de emprego, de tudo um pouco”.
A sala enche-se à hora do almoço. Da cozinha, vão saindo as pizzas que Luís Cardoso, 59 anos, prepara “com muito carinho”. É por isso, diz, que a iguaria sai do forno com aquele “cheirinho” e aspeto.
Luís trabalhou como segurança, até que as “condições da vida”, como diz, o levaram a procurar ajuda.
“Nunca tinha feito isto, mas olhe que é bastante aliciante!”, exclamou, ao falar da nova experiência. Em breve, terá de deixar o centro de acolhimento temporário e ainda não tem “um segundo plano”, mas admite que o futuro pode passar pelas pizzas.
“Quem sabe um dia possa arranjar um part-time ou até mesmo a tempo inteiro, é uma coisa diferente daquilo que eu fazia, mas é bastante engraçado, gosto bastante”, confessa.
A equipa da cozinha vai rodando. Orientados por um chefe de serviços (cozinheiro), os utentes que aceitam participar no processo recebem formação. Mas a receita mais importante, segundo João Barros, é a ligação que se cria à comunidade.
“Aqui o mais importante não é só a pizza em si, porque há muitos lugares em Lisboa que têm pizzas e muito boas. Não estamos aqui num registo de fazer pizzas com concorrência”, salienta o diretor.
“Ao mesmo tempo, incluímos a comunidade toda de fora da instituição a fazer parte desse processo de mudança de vida”, acrescenta.
Para João Barros, mais importante do que a pizza é quem a fez e onde se come.
Das 75 pessoas que vivem neste centro, entre 20 a 25 participam no “Pizz´and Love” e em outras oficinas que decorrem durante a semana na Academia do centro social do Exército de Salvação, desde trabalhos com madeira até produção de velas, também vendidas no espaço.
Entre os clientes habituais do “Pizz´and Love”, encontra-se a equipa do artista Bordalo II, com atelier na zona.
“À quinta-feira é sempre o sítio onde vimos almoçar”, atesta Ricardo Almeida, que faz “de tudo um pouco” na equipa de produção do artista plástico, com o qual partilha a mesa, juntamente com os outros elementos do grupo.
Natacha Serrão, funcionária da Junta de Freguesia do Beato, situada a poucos metros de distância, marca também “presença obrigatória” à quinta-feira, com as colegas de trabalho.
“Estou aqui há pouco tempo, elas recomendaram vir aqui um dia almoçar, experimentei e adorei o conceito, a comida, o próprio espaço”, refere.
O centro social do Exército de Salvação, uma IPSS, funciona em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, a Segurança Social e o IEFP, numa zona que concentra 80% da população sem-abrigo de Lisboa, recorda João Barros.
O centro de alojamento abriu em 1997, no âmbito dos preparativos para a Expo 98, na zona oriental de Lisboa, onde existem outras estruturas de acolhimento.
O Beato, salienta, é uma freguesia de contrastes, onde existe “muita pobreza”, mas também grandes empresas e um polo tecnológico. “Às vezes entra um milionário para comer uma pizza feita por um sem-abrigo”, testemunha.
“O que faz a diferença deste projeto é abrir as portas do centro à comunidade, do nosso espaço aqui em Xabregas. Pessoas que passam na rua pensam que este espaço é um restaurante e perguntam, entram”, acrescenta Santiago Carreño, capelão do Exército de Salvação.
“O que queremos é que isto não seja um lugar fechado, que constrange as pessoas. Temos de mudar a maneira de pensar, estamos a trabalhar para voltar a integrar estas pessoas na sociedade”, conclui.
O Exército de Salvação foi criado em Londres em 1865 e está presente em Portugal desde 1971.
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