Opinião

Masoquismo cardiovascular 

Notícias de Coimbra | 3 meses atrás em 15-02-2024

Ontem celebrou-se o Dia dos Namorados. O dia em que sucumbimos à  inebriação coletiva, quando o amor é superlativo e o julgamos capaz de curar  doenças, parar guerras e acabar com todos os males do mundo.  

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Hoje, passada a bebedeira, lembramo-nos que não é assim. Somos recordados de que, ao contrário do que nos diz John Lennon, é preciso mais  do que amor para sobreviver à vida. 

Ainda que reconheça a liberdade poética da canção e aprecie o espírito  pacifista do autor, é seguro afirmar que o Beatle estava errado. Se soubesse  o que o futuro lhe reservava, talvez John Lennon cantasse “Tudo o que  precisamos é de um colete à prova de bala”. Porém, desconhecendo o seu  próprio destino, preferiu eternizar o mantra “All we need is love”. 

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Agora, à distância, sabemos que o love não é suficiente para salvar a nossa  life. O love é pujante, intenso, e até fatal, mas, à data, ainda não consegue  proteger-nos dos malefícios dos revólveres e das outras guns

Na verdade, o amor é bem mais violento do que gostamos de admitir. Por  vezes, mais violento do que as balas. Pode inspirar poemas extraordinários e  músicas melancólicas, mas o seu potencial de destruição é  incomparavelmente mais poderoso do que a felicidade passageira que  transporta. 

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Vejamos: não é ele que nos dá a conhecer o aperto no peito? O suor nas  mãos? A gaguez na voz? O terror da antecipação da perda e a amplificação  dos nossos complexos? Não é ele quem transforma o nosso sistema  nervoso — até então sereno e imperturbável — num organismo histérico e  aleatório? Não é ele que nos revela areias movediças sentimentais em que  cada passo está condicionado ao medo de ser sugado para o subsolo? 

Entretanto, cá em cima, o Dia dos Namorados não fala dos subsolos e o amor  só promete sol. Sol, luz e risos genuínos, com a pretensão de quem se julga  o elixir redentor de todas as noites e de todas as balas. 

Mas não. O amor não nos salva da noite, nem tão pouco das balas — que o  diga John Lennon. O amor é perigoso, é causa de crimes passionais e motor  de sofrimentos inimagináveis. O amor não só mata como mói.

E, mesmo sabendo-o, cá continuamos nós… a suspirar por ele, a rezar por  ele, a desejá-lo desesperadamente, mais do que desejamos dinheiro ou  sucesso. A procurá-lo com a sofreguidão de quem tenta escapar à sede,  enquanto fantasiamos com um afogamento recheado de beijos, abraços e  mimos. 

Embriagados neste delírio, evitamos as perguntas lógicas: se somos mais  magoados por quem amamos do que por quem desprezamos, não  deveríamos nós — seres racionais — deixar de amar? Ou, pelo menos, deixar  de celebrar o amor? Não seria prudente deixar os braços de quem nos ama  e beijar quem nos odeia, a gente sem engenho para magoar a sério? 

Pensando bem, talvez não fosse… Assumindo que o beijo ao inimigo é, por  si, um ato de amor — e dos grandes, aliás —, voltaríamos à estaca zero:  presos ao amor que aleija e afastados do ódio indolor. 

O melhor é deixar de tentar compreender este paradoxo, este universo injusto  e contraditório em que o amor de John Lennon gerou o ódio a Yoko Ono, em  que a paixão pelo Anel levou o Gollum à loucura, e em que dois dias de  romance tórrido ceifaram a vida do pobre Jack Dawson. Porventura, será menos doloroso entender o amor como uma espécie de  pescadinha de rabo na boca, que é saborosa, mas carrega muitas espinhas.  Aceitá-lo como um inescapável masoquismo cardiovascular que nos permite  dançar com o medo e chutar a dor para o canto da pista. Pontapeá-la com  todo o nosso amor, na esperança de que ela não se venha misturar  com aquele sentimento de que todos precisamos. Aquele das borboletas no  sistema digestivo. Aquele “bem piroso e lamechas como o amor deve ser”.

OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA

Escreve à quinta-feira

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