Opinião

Literacia em Saúde na Hospitalização Domiciliária: uma década de proximidade, conhecimento e cuidado

OPINIAO | 53 minutos atrás em 18-11-2025

A Hospitalização domiciliária (HD) representa uma modalidade assistencial que combina a complexidade técnica da hospitalização com o conforto e a personalização do cuidado no domicílio. Proporciona uma experiência de cuidados mais centrada na pessoa, reduz os riscos hospitalares e oferece um serviço de excelência, pautado pelo rigor clínico e a visão holística e mais humanizada da Medicina Interna. Esse modelo reduz a interrupção dos cuidados formais e informais existentes no domicílio, gerando maior satisfação do doente e da família.

Ao longo destes dez anos de atividade em Hospitalização Domiciliária, temos testemunhado diariamente o impacto transformador da literacia em saúde.

Cuidar em casa implica uma participação mais ativa do doente e da sua rede de apoio — cuidadores e familiares — no processo terapêutico. Promover a literacia em saúde é, por isso, valorizar o papel da família e do cuidador, prevenindo a rejeição, o abandono e a institucionalização, e reforçando a autonomia e a dignidade de quem cuidamos.

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A comunicação entre os profissionais de saúde e o doente adquire uma dimensão ainda mais delicada e atenta. A linguagem técnica, frequentemente utilizada nas instituições de saúde, precisa ser adaptada para um discurso claro e culturalmente adaptado ao doente e aos familiares presentes. Assim, os profissionais devem estar capacitados para avaliar o nível de literacia dos doentes e cuidadores e ajustar as suas estratégias de comunicação, de forma personalizada.

O recurso a tecnologias de informação e comunicação em saúde (eHealth), como o uso de aplicações móveis, plataformas de telemonitorização, vídeos e sistemas de mensagens instantâneas, podem apoiar a gestão da informação e facilitar o contacto entre a equipa de saúde e o doente.  Estas ferramentas digitais, quando bem aplicadas, reforçam a autonomia e a confiança do doente, além de promoverem uma comunicação mais eficaz e contínua entre os intervenientes.

A equipa da HD assume um papel educativo essencial. Nas visitas diárias são prestados não apenas cuidados clínicos, mas também momentos de aprendizagem, reforçando a autonomia do doente e a confiança da família.  A literacia em saúde é entendida como um processo contínuo e flexível, ajustado às necessidades e ao ritmo de aprendizagem de cada pessoa. A empatia e o respeito são tão importantes quanto a técnica.

A  literatura demonstra que a HD está associada a uma redução dos custos na ordem dos 26,5%, a uma diminuição das infeções hospitalares e da mortalidade em cerca de 38% em 6 meses. Mas mais do que números, são as histórias humanas que confirmam o valor deste modelo: famílias mais confiantes, cuidadores mais capacitados e doentes mais envolvidos no seu processo de recuperação.

É indiscutível que o sucesso dessa modalidade de internamento depende fortemente do nível de literacia em saúde dos envolvidos, ou da recetividade para adquirir conhecimento,  já que o doente e os cuidadores tornam-se corresponsáveis pela execução de procedimentos, monitorização de sinais e comunicação com a equipa de saúde.

É frequente encontrarmos famílias com baixa literacia académica, mas com enorme disponibilidade afetiva para cuidar. Ensinar, reforçar e acompanhar são atos profundamente gratificantes. À data da alta, estas famílias estão quase sempre mais fortes, mais autónomas e mais seguras. Quando necessário, prolongamos o internamento para consolidar ensinos e garantir segurança. Estes ganhos são incalculáveis, tanto no plano individual, como no social.

A literacia em saúde na HD assenta em quatro dimensões essenciais: a capacidade de aceder à informação, compreender as orientações clínicas, aplicar o conhecimento na prática quotidiana e manter a motivação para aprender. Esta última dimensão, embora menos formalmente descrita na literatura, é determinante, pois o envolvimento emocional e a vontade de aprender são motores essenciais da recuperação.

Os desafios variam com a idade, o contexto sociocultural, o nível educacional e as condições habitacionais. As equipas de médicos e enfermeiros procuram dar resposta a estas limitações de forma individualizada. Por vezes, é necessário simplificar esquemas terapêuticos com administrações únicas diárias, adaptando horários à disponibilidade da vizinha do lado, utilizar imagens representativas nos recipientes dos medicamentos, realizar ensinos de cuidados no leito ou propor adaptações nos quartos, para facilitar a prestação dos cuidados e reduzir o risco de quedas.

São muitas as histórias que refletem a criatividade e a proximidade da HD. Recordamos, por exemplo, um doente com necessidade crónica de broncodilatadores, cuja filha, cuidadora principal, era invisual. Os ensinos foram dirigidos ao neto de nove anos, que assumiu com orgulho e competência a administração do tratamento. Este caso mostra como a hospitalização domiciliária se molda à realidade de cada família e promove a literacia funcional desde cedo.

A capacitação dos cuidadores informais é um pilar essencial. Cuidadores formados e apoiados contribuem para prevenir agudizações, reduzir internamentos e aliviar a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde. A sua ação diária — gerir a medicação, apoiar na alimentação, higiene e cuidados básicos — é decisiva para a qualidade de vida do doente. Além do cuidado físico, prestam também apoio emocional e social, tornando-se parte integrante do processo terapêutico.

Promover a literacia em saúde em contexto de HD exige uma abordagem global. É necessário que a educação em saúde seja reconhecida politicamente como componente essencial do plano terapêutico e da sustentabilidade do sistema de saúde. A formação dos profissionais deve incluir competências pedagógicas e de comunicação, e as Unidades de HD devem continuar a criar materiais educativos acessíveis, programas de capacitação de cuidadores e indicadores que permitam avaliar o impacto desta aposta.

A transição de um modelo centrado no hospital para um modelo centrado no doente, na família e na comunidade é um caminho de futuro. A literacia em saúde é o alicerce desse percurso — o que transforma cuidados em conhecimento, e conhecimento em autonomia.

Em suma, ao celebrar dez anos de Hospitalização Domiciliária, celebramos também uma década de confiança, proximidade e partilha de saberes. Investir na literacia em saúde no contexto da hospitalização domiciliária é investir na sustentabilidade do SNS, na dignidade dos doentes e na construção de uma sociedade mais informada, solidária e saudável.

OPINIÃO | SOFIA RIBEIRO – Núcleo de Estudos de Hospitalização Domiciliária da SPMI

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