Opinião

Herói do rio (e do cinismo)

OPINIÃO | PEDRO SANTOS | 1 mês atrás em 07-09-2024

Estão a ver o Padrão dos Descobrimentos? A figura imponente do Infante D. Henrique, segurando uma caravela, liderando um grupo onde se incluem navegadores, cartógrafos, guerreiros, missionários e outros homens que contribuíram para a epopeia marítima global de que Portugal tanta gosta de se orgulhar?

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Pois bem, posso ter interpretado mal, mas há alguns dias pareceu-me ver o primeiro-ministro (esse mesmo que se apressou a trocar um símbolo do seu Executivo por outro, mesmo sendo evidente que qualquer símbolo pode ser discutível) propor a substituição daquele ícone nacional por outro: do épico ao pífio, teríamos Luís Montenegro como Infante de pechisbeque, não em cima de uma caravela mas de um bote, não liderando heróis mas estorvando-os na sua missão de busca pelos militares da GNR desaparecidos após a queda de um helicóptero no rio Douro.

Fez-me recordar imagens mais antigas de outro primeiro-ministro, que, na inauguração do World of Discoveries (espécie de Disney World dos patriotazinhos criado no Porto pelo empresário do(s) regime(s) também conhecido pelo seu envolvimento num escândalo de fraude fiscal, entre outras ‘medalhas’), apelou à recuperação do «espírito dos Descobrimentos» depois de brincar aos navegadores num barquito de plástico que anda às voltas num oceano de faz-de-conta. Mas o que há 10 anos não passou de ridículo foi agora, em Peso da Régua, profundamente cínico. E, acima de tudo, tremendamente ofensivo para as vítimas do acidente, para os muitos profissionais envolvidos nas operações e para todos os cidadãos.

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Ao embarcar rio adentro, permitindo-se ser fotografado e filmado com o que certamente acreditava ser um ar triunfal, Montenegro só deu razão aos que acusam a classe política de mediocridade (e forneceu mais um argumento aos que a criticam, mesmo pertencendo-lhe).

Mas além da megalomania e da falta de noção do líder do Governo, ao considerar que a sua presença representaria algum tipo de contributo positivo, o que também resulta evidente deste episódio é que um governante ou outro político só protagoniza cena tão lamentável porque faz parte de um sistema que é alimentado por todos os eleitores que se demitem desse papel no momento a seguir a depositarem o voto.

Precisamos ser uma comunidade capaz de depender menos da representatividade e que não tenha medo de desobedecer, mas igualmente devemos ser mais exigentes com aqueles que elegemos, em todos os momentos. Isso implica uma mobilização e uma participação cidadã mais ativa, onde a passividade não seja a regra. Porque a verdadeira democracia não pode ser apenas um espetáculo de figuras públicas a passear-se no Douro ou a cortar fitas, deve ser um exercício constante de vigilância, ação e consciência coletiva.

OPINIÃO | PEDRO SANTOS – ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO

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