Coimbra

Greve dos Pequenos Poderes

OPINIÃO | Angel Machado | 3 dias atrás em 25-10-2025

Numa ordem hierárquica, quem tem o poder de decidir é, normalmente, o pastor de ovelhas. Conduzi-las requer um conhecimento prévio do destino, pois o pastor sabe que não fará outra coisa enquanto houver rebanho — e este, por sua vez, há de obedecer-lhe.

Mas o que acontece quando as ovelhas decidem parar? Quando cansadas de ser conduzidas, fazem greve silenciosa e olham o pastor com aquele ar de quem já percebeu o truque? Talvez seja aí que começa a verdadeira desordem ou, quem sabe, a liberdade.

A simplicidade da função pastoral tem uma razão de ser que poucos conhecem: preservar a tradição. E as tradições, como sabemos, servem muitas vezes para manter tudo exatamente no mesmo lugar, incluindo as pessoas. A analogia mais próxima dessa realidade será, talvez, a de uma orquestra. Imaginem o maestro: elegante, concentrado, a comandar dezenas de instrumentos que, sem ele, pareceriam desorientados. Mas pensem comigo — o pastor é qualquer um de nós, e as ovelhas são as nossas escolhas, arrependimentos, problemas, soluções e sonhos. Esse é o verdadeiro acontecimento da vida: levamos tudo connosco, mesmo o que gostaríamos de deixar para trás.

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A sociedade comum, onde estamos todos inseridos, é uma imensa pastagem dividida em cercas invisíveis. Cada um com o seu rebanho, cada um com o seu poder pequeno — o chefe de secção, o coordenador, o presidente da assembleia de condomínio, o condutor que buzina como se a estrada lhe pertencesse. Todos os pastores de ocasião, estão convictos que o  seu cajado é mais reluzente que o do vizinho.

Quanto mais pequeno o poder, maior a firmeza com que se exerce. O grande poder tem cerimónia, cálculo e distância; o pequeno, esse, precisa de se afirmar todos os dias, com ordens curtas e olhares longos, vive da obediência dos outros e do eco da sua própria importância.

Por isso, às vezes, penso que o mundo precisa de uma greve dos pequenos poderes. Uma paralisação geral das vontades de mandar. Imaginem: durante um dia, ninguém se sobrepõe a ninguém; cada um decide o seu passo, a sua nota, o seu rumo. O trânsito flui, o trabalho avança, a conversa corre sem interrupções autoritárias. Seria o caos, dizem uns. Seria o paraíso, diriam outros. 

No fundo, a convivência humana é uma orquestra improvisada: há quem toque desafinado, há quem entre fora de tempo, há quem ache que o solo é eterno. E nós, entre um compasso e outro, tentamos harmonizar as notas, sem partir a batuta nem desafinar.

O bom senso, esse maestro invisível, lembra-nos que há espaço para todos, até para quem acha que manda. E, talvez, seja essa a lição mais simples e mais esquecida: o poder não está em conduzir, mas em saber quando largar o cajado e caminhar ao lado do rebanho. Porque, no fim, é sempre o caminho que nos guia.

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