Portugal
Famílias salvas “por Deus”
Após quatro dias a arder, Oliveira de Azeméis cobre-se hoje de névoa de cinza e ainda cheira a fumo, mas há famílias que, em segurança devido à chantagem emocional dos netos, já limpam casas que dizem salvas “por Deus”.
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Nesse concelho do distrito de Aveiro e da Área Metropolitana do Porto, o fogo chegou a ser combatido por mais de 500 bombeiros e envolveu focos simultâneos em vários pontos do concelho, implicando operações repetidas mesmo em locais onde as primeiras chamas já tinham sido extintas.
Foi isso o que aconteceu, por exemplo, em Bustelo do Caima, onde esta manhã Márcio Ferreira caminhava devagarinho junto à mata ardida, com a esposa e a sogra. Na t-shirt ainda exibe os buracos feitos pelas chamas e, quando conta à Lusa o que viveu nestes dias, o rosto esgotado completa o que as frases não dizem.
“O incêndio de 2005 foi péssimo, muito mau, e agora foi a mesma coisa”, defende. Teve o fogo a crepitar à volta de casa, andou a correr de madrugada para acordar a tia e garantir que ela se mantinha acordada a vigiar o avanço das chamas, fez com uma enxada o que podia para abafar o mato a arder e não o deixar progredir.
“Foi o momento em que tive mais medo”, confessa. E com os canos derretidos, sem acesso a água, viu o cenário ainda mais negro, até que a casa acima da sua lhe acudiu: “Um vizinho meu tinha um lá um poço de furo e foi essa a salvação”.
Mais de quatro dias depois, Márcio varre a cinza que pode, mas continua sem água e é ainda dos vizinhos que depende. “Temos que ser uns para os outros e eles fazem o que podem”, reconhece.
A uns sete quilómetros de distância, em Macinhata da Seixa, houve quem não tivesse a mesma sorte perante a força do fogo e perdesse a casa onde viveu dezenas de anos. Da rua, vêem-se bem os destroços já recolhidos para o exterior: uma cama de madeira, um fogão, micro-ondas, televisão, tapetes, cadeiras…
Os donos da agora ruína já foram realojados numa habitação da autarquia, mas, ao lado, um vizinho da família consegue imaginar-lhes o desgosto. António Fernandes sabe bem, aliás, que foi uma sorte o vento ter mudado de direção no momento certo, poupando-lhe assim não apenas a casa, mas também a horta, a ramada de kiwis, os vasos floridos.
“Pensei que o fogo também chegasse aqui”, confessa, ao portão de casa. “Andei a regar as minhas coisitas todas, mas não valia a pena. Estava muito vento – era impressionante! – e ele vergava tudo, levava as fagulhas para onde calhasse”, explica, quase com sentimento de culpa por a brisa lhe ter preservado o seu recanto e não o da vizinha.
Em Mosteiro, Graça Almeida também se sente abençoada e não tem pudor em expressar a sua alegria. Diz que foi tudo “uma aflição”, lança as mãos ao peito quando recorda o fogo que viu em volta da casa, mas, apreciando do seu terraço o edifício destruído nas traseiras, declara quase com orgulho: “Foi Deus que fez com que a minha casa não ardesse. Foi Ele que lhe deitou a mão!”.
Para avaliar a teoria, analisa: atrás, uma casa bonita, antes abandonada, agora para demolir; ao lado, arbustos e uma vinha queimada; em frente, um terreno cheio de lenha desfeita pelo fogo; e, pelo meio, oito metros de distância intocada, como se as chamas quisessem preservar o quase-oásis que existe do portão para dentro.
Há ali uma parede de hera viçosa que esconde os destroços do vivinho, há ali vasos de catos e suculentas de onde brotam flores pequeninas, há ainda mais plantas suspensas de janelas e em cada degrau das escadas para o terraço.
O jardim pode nem ter pesado muito no rol de coisas de que Graça não se queria separar quando os técnicos da Proteção Civil entraram por ali a pedir-lhe que saísse de casa para ficar em segurança. O marido, Salvador Magalhães, resistiu ainda mais que ela, mesmo ao notar a velocidade da propagação, já que, como lembra hoje, “num momento estava a arder o mato lá longe e, de repente, o fogo já estava em volta das casas” mais próximas.
“Eu disse que não saía, que não deixava a minha casa”, admite Graça. “O meu neto mais velho é que disse: ‘Ó vovó, venha-se embora, por nós’. E então eu fui”.
Durante a noite, na casa da filha, continuava agitada e insistia em regressar a casa, em acompanhar o fogo de perto, como se o pudesse demover sozinha, ainda para mais com um joelho em mau estado. Eram três da manhã, queria vir-se embora e, novamente, foi o apelo do neto que a sossegou e fez obedecer. O aviso não deixava alternativa: “Se eu acordar de manhã e você não estiver aqui, não é mais minha avó”.
Desde domingo, já sete pessoas morreram – duas das quais por doença súbita – nos incêndios que deflagraram sobretudo nas regiões Norte e Centro do país, em concreto nos distritos de Aveiro, Porto, Vila Real, Braga, Viseu e Coimbra. Houve ainda 161 feridos e dezenas de casas destruídas.
Segundo o sistema europeu de observação terrestre Copernicus, a área ardida em Portugal continental, durante o mesmo período, ultrapassa agora os 121 mil hectares. Desses, mais de 100 mil situam-se nas regiões Norte e Centro, que assim concentram 83% do território queimado a nível nacional.
Cheira a fumo, entre casas e famílias salvas “por Deus” e pela chantagem de netos (C/ÁUDIO, C/VÍDEO E C/FOTOS)
*** Serviços áudio e vídeo disponíveis em www.lusa.pt ***
*** Alexandra Couto (texto), Pedro Lapinha (vídeo) e Paulo Novais (foto), da agência Lusa ***
Oliveira de Azeméis, Aveiro, 19 set 2024 (Lusa) – Após quatro dias a arder, Oliveira de Azeméis cobre-se hoje de névoa de cinza e ainda cheira a fumo, mas há famílias que, em segurança devido à chantagem emocional dos netos, já limpam casas que dizem salvas “por Deus”.
Nesse concelho do distrito de Aveiro e da Área Metropolitana do Porto, o fogo chegou a ser combatido por mais de 500 bombeiros e envolveu focos simultâneos em vários pontos do concelho, implicando operações repetidas mesmo em locais onde as primeiras chamas já tinham sido extintas.
Foi isso o que aconteceu, por exemplo, em Bustelo do Caima, onde esta manhã Márcio Ferreira caminhava devagarinho junto à mata ardida, com a esposa e a sogra. Na t-shirt ainda exibe os buracos feitos pelas chamas e, quando conta à Lusa o que viveu nestes dias, o rosto esgotado completa o que as frases não dizem.
“O incêndio de 2005 foi péssimo, muito mau, e agora foi a mesma coisa”, defende. Teve o fogo a crepitar à volta de casa, andou a correr de madrugada para acordar a tia e garantir que ela se mantinha acordada a vigiar o avanço das chamas, fez com uma enxada o que podia para abafar o mato a arder e não o deixar progredir.
“Foi o momento em que tive mais medo”, confessa. E com os canos derretidos, sem acesso a água, viu o cenário ainda mais negro, até que a casa acima da sua lhe acudiu: “Um vizinho meu tinha um lá um poço de furo e foi essa a salvação”.
Mais de quatro dias depois, Márcio varre a cinza que pode, mas continua sem água e é ainda dos vizinhos que depende. “Temos que ser uns para os outros e eles fazem o que podem”, reconhece.
A uns sete quilómetros de distância, em Macinhata da Seixa, houve quem não tivesse a mesma sorte perante a força do fogo e perdesse a casa onde viveu dezenas de anos. Da rua, vêem-se bem os destroços já recolhidos para o exterior: uma cama de madeira, um fogão, micro-ondas, televisão, tapetes, cadeiras…
Os donos da agora ruína já foram realojados numa habitação da autarquia, mas, ao lado, um vizinho da família consegue imaginar-lhes o desgosto. António Fernandes sabe bem, aliás, que foi uma sorte o vento ter mudado de direção no momento certo, poupando-lhe assim não apenas a casa, mas também a horta, a ramada de kiwis, os vasos floridos.
“Pensei que o fogo também chegasse aqui”, confessa, ao portão de casa. “Andei a regar as minhas coisitas todas, mas não valia a pena. Estava muito vento – era impressionante! – e ele vergava tudo, levava as fagulhas para onde calhasse”, explica, quase com sentimento de culpa por a brisa lhe ter preservado o seu recanto e não o da vizinha.
Em Mosteiro, Graça Almeida também se sente abençoada e não tem pudor em expressar a sua alegria. Diz que foi tudo “uma aflição”, lança as mãos ao peito quando recorda o fogo que viu em volta da casa, mas, apreciando do seu terraço o edifício destruído nas traseiras, declara quase com orgulho: “Foi Deus que fez com que a minha casa não ardesse. Foi Ele que lhe deitou a mão!”.
Para avaliar a teoria, analisa: atrás, uma casa bonita, antes abandonada, agora para demolir; ao lado, arbustos e uma vinha queimada; em frente, um terreno cheio de lenha desfeita pelo fogo; e, pelo meio, oito metros de distância intocada, como se as chamas quisessem preservar o quase-oásis que existe do portão para dentro.
Há ali uma parede de hera viçosa que esconde os destroços do vivinho, há ali vasos de catos e suculentas de onde brotam flores pequeninas, há ainda mais plantas suspensas de janelas e em cada degrau das escadas para o terraço.
O jardim pode nem ter pesado muito no rol de coisas de que Graça não se queria separar quando os técnicos da Proteção Civil entraram por ali a pedir-lhe que saísse de casa para ficar em segurança. O marido, Salvador Magalhães, resistiu ainda mais que ela, mesmo ao notar a velocidade da propagação, já que, como lembra hoje, “num momento estava a arder o mato lá longe e, de repente, o fogo já estava em volta das casas” mais próximas.
“Eu disse que não saía, que não deixava a minha casa”, admite Graça. “O meu neto mais velho é que disse: ‘Ó vovó, venha-se embora, por nós’. E então eu fui”.
Durante a noite, na casa da filha, continuava agitada e insistia em regressar a casa, em acompanhar o fogo de perto, como se o pudesse demover sozinha, ainda para mais com um joelho em mau estado. Eram três da manhã, queria vir-se embora e, novamente, foi o apelo do neto que a sossegou e fez obedecer. O aviso não deixava alternativa: “Se eu acordar de manhã e você não estiver aqui, não é mais minha avó”.
Desde domingo, já sete pessoas morreram – duas das quais por doença súbita – nos incêndios que deflagraram sobretudo nas regiões Norte e Centro do país, em concreto nos distritos de Aveiro, Porto, Vila Real, Braga, Viseu e Coimbra. Houve ainda 161 feridos e dezenas de casas destruídas.
Segundo o sistema europeu de observação terrestre Copernicus, a área ardida em Portugal continental, durante o mesmo período, ultrapassa agora os 121 mil hectares. Desses, mais de 100 mil situam-se nas regiões Norte e Centro, que assim concentram 83% do território queimado a nível nacional.
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