Começou aquilo que já muitos acreditavam nunca vir a acontecer: o julgamento de José Sócrates por corrupção. Mas, de alguma forma, trata-se de um julgamento inútil, pois já quase todos têm a certeza da sua culpa. À exceção dos mais indefetíveis dos seus seguidores, é mesmo muito difícil para qualquer outra pessoa acreditar que possa ser inocente alguém a quem escutámos as frases que escutámos ou sobre quem ficámos a saber tudo o que soubemos – e isto, mesmo que não pareça, é uma tragédia para o País.
Não podemos ignorar toda a informação que nos foi apresentada nas televisões, nas rádios e nos jornais – e amplificada, mesmo que nem sempre de forma leal, nas redes sociais – mas verdadeiramente preocupante é que ela nos tenha sido passada de forma tão avassaladora que tornou também virtualmente impossível sermos capazes de a olhar criticamente, avaliar os interesses de quem o fez e extrair daí conclusões sobre o estado da nossa democracia. E esse foi um ‘feito’ conjunto de Ministério Público e comunicação social.
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Esta forma de agir é, aliás, uma demonstração de poder com cada vez mais exemplos – e um poder sem rosto, mesmo quando protagonizado pelo jornalista ou a jornalista da moda e enquadrado por rodapés de telejornal bombásticos ou manchetes com pontos de exclamação.
Não são apenas as fugas de informação, recorrentes e nunca castigadas. É o modo como essas fugas são coreografadas. Há uma espécie de coreografia do escândalo, delineada por um Ministério Público que se transformou, com a ajuda cúmplice ou ingénua de muitos jornalistas, num produtor de enredos cujo objetivo nem parece ser a obtenção de uma condenação transitada em julgado, mas antes a simples destruição de reputações.
De cada vez que uma investigação sensível começa, há um padrão: a imprensa sabe antes do arguido, o país forma juízos antes do juiz e os partidos (um mais do que os outros…) reagem como se cada manchete fosse uma sentença. É a presunção de culpa em horário nobre.
Podemos, claro, fingir que isto é o preço da transparência, que há um bem maior em ver os poderosos a cair. Mas não devemos esquecer que o Ministério Público não responde perante ninguém – não é eleito, não presta contas, não precisa sequer de provar o que insinua – e, por isso mesmo, ser muito mais exigentes com a sua atuação. Se lhe baste insinuar com força suficiente para que alguém perca um cargo, uma eleição ou uma carreira, isso não é uma injustiça para os visados, é um perigo para todos nós.
É por isso que o julgamento de Sócrates, fora as questões de administração de justiça em si mesmas, não é sobre gostar ou não gostar do ex-primeiro-ministro, nem sobre acreditar ou não na sua inocência. Trata-se, isso sim, de provarmos que acreditamos no princípio básico de que ninguém deveria ser julgado antes de ser julgado. Que ainda acreditamos na democracia.
OPINIÃO | PEDRO SANTOS -ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO
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