Coimbra

Entre ansiedade e receio, pessoas com paralisia cerebral em Coimbra estão confinadas há um ano

Notícias de Coimbra com Lusa | 3 anos atrás em 21-03-2021

Nos lares da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), os utentes não saem há um ano, salvo raras exceções. Por lá, há receio, alguns sentimentos depressivos e muita ansiedade para se voltar à liberdade.

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Paulo Maria tem 45 anos e está no Lar José Mendes de Barros, da APCC, desde que abriu, em 2014. O último ano passou-o todo fechado naquele edifício situado na zona de Celas, na cidade de Coimbra, com a exceção de duas saídas – uma para ir ao banco e outra numa ida controlada ao café.

Por vezes, admite, sentiu-se deprimido: “Creio que é compreensível, passado tanto tempo, perdemos um pouco a lucidez”, acrescenta.

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“Há sempre um receio inconsciente de voltar a sair e voltar a ter de confinar”, disse à Lusa Paulo Maria, numa resposta por ‘e-mail’, salientando que a forma como a saúde mental sai afetada é “mais pela falta do que fazia” antes – “sair, conviver, conhecer pessoas novas”.

Em 11 de março de 2020, o Lar José Mendes de Barros, com 40 utentes, encerrou devido à pandemia, tal como as restantes valências residenciais da instituição. Foram suspensas as visitas, mudaram-se rotinas internas e aumentou-se o espaço de refeitório.

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Durante um ano, os utentes não saíram daquele edifício, tirando umas pequenas exceções no final do verão, em que foram feitas visitas curtas e em grupos pequenos a espaços verdes da cidade, conta à agência Lusa a diretora técnica do lar, Margarida Pimenta, referido que, tirando esses casos, os utentes só saem para cumprimento de obrigações legais.

A conversa com as famílias passou a ser por videochamada ou a partir de uma cabine criada no rés-do-chão, uma espécie de caixa-forte em vidro, sem teto, que permite ao visitante ver e falar com o utente.

Durante este ano, o lar isolou também os mais incapacitados no segundo andar e os restantes no primeiro andar do edifício.

“Os do 1.º andar não veem os do 2.º andar há um ano e vivem na mesma casa. Fizemos apenas um interregno no Dia de Natal, em que os do 2.º piso vieram à sala e passaram ao longe pelos colegas. Houve palmas e foi um momento muito emocionante”, recordou.

Já no lar dedicado às crianças e jovens entre os seis e os 16 anos, não houve atividades no verão no exterior e as visitas dos pais sofreram alterações, dependendo da condição da criança.

“Há duas meninas que estão sem ter visitas dos pais há um ano, porque se os pais as visitassem ia ser problemático saber que não podiam tocar, agarrar, abraçar ou ir para casa, porque costumavam ir a casa no fim de semana. Foi também muito difícil para os pais, mas perceberam que era o melhor”, contou a diretora dessa residência da APCC, Sofia Manaia, salientando que nesses casos o contacto mantém-se por videochamada ou telefonemas.

Em todos os lares da APCC, procurou-se minimizar os efeitos do confinamento.

Os utentes continuaram a ter apoio da psicologia, fisioterapia e técnicos para dinamizar atividades.

Apenas no final de janeiro é que houve uma suspensão de todas as atividades no Lar José Mendes de Barros, quando o espaço registou um surto, quando se preparava para receber a primeira dose da vacina contra a covid-19.

“Felizmente, não houve nenhuma complicação”, recorda Margarida Pimenta.

Passado um ano, sublinha, os utentes “estão ansiosos para poderem sair, nem que seja para ir ao café”.

A psicóloga da APCC Marta Lopes nota que surgiram “mais sintomas relacionados com a ansiedade e sintomas depressivos”, assim como “uma maior instabilidade emocional”, constatando uma “ambivalência” de sentimentos – por um lado a vontade de sair e retomar a vida que tinham, mas por outro lado o receio face à pandemia.

Marta Lopes realça que mesmo com todas as estratégias postas em prática para menorizar os efeitos, a pandemia “teve um impacto negativo na qualidade de vida” dos utentes.

“Tentamos quebrar a rotina do isolamento, mas claro que estão um pouco mais em baixo, tirando o nosso campeão da boccia, o António Oliveira, que é a única pessoa que gosta de estar confinada, porque fica com um quarto só para ele”, afirma Margarida Pimenta.

O atleta de boccia, de 57 anos, com sete medalhas paralímpicas, confirma.

“Quando vinha do estágio, ficava em isolamento e adorei. Adoro estar sozinho, porque tenho o quarto só para mim e posso ouvir o rádio sem a porcaria dos ‘phones'”, conta.

Tirando a boccia, a rádio é o seu grande amor e vai passando os dias sintonizado quase sempre na Rádio São Miguel, a ouvir “música de baile”.

Com o confinamento, conseguiu improvisar e treinar junto do gabinete da diretora do lar. Porém, diz, quase a sussurrar, que tanto ele como os seus colegas de seleção ficaram “piores” na boccia desde que a pandemia chegou.

O que mais custou a António foi mesmo o corte no número de treinos e de competições.

“O estar fechado e não poder fazer nada sozinho [face à mobilidade reduzida], o não poder sair sozinho torna-se complicado”, nota Paulo Maria, que recorre ao cinema, à leitura, mas acima de tudo à música para mitigar esta espécie de cárcere forçada pela pandemia.

Dentro da música, Paulo Maria socorre-se do metal, de nomes como “Moonspell, Cradle of Filth e Dimmu Borgir – músicas que poucos ouvem, mas que ajudam tanto”.

Também Regina Graça vê filmes, ouve música e lê para passar o tempo.

“E dormir. Dormir é maravilhoso”, responde, por ‘e-mail’, à Lusa.

Para a utente de 57 anos, este foi um ano “com sentimentos muitas vezes contraditórios, desde um grande desespero e preocupação até a um alívio de poder estar mesmo sozinha”.

Regina admite que está mais confusa, já sente que troca letras e que tem que ir ao “dicionário ver como se escrevem certas palavras”.

“Custou-me não sair no verão. Mais do que a praia, senti uma necessidade enorme de ir para qualquer sítio que tivesse muitas árvores e um riacho a deslizar por entre as pedras”, salienta, referindo que o momento mais custoso foi mesmo quando o surto surgiu e montou-se um “cenário apocalíptico”, quando todos ficaram fechados nos quartos e os auxiliares tinham que andar “vestidos com fatos de astronautas”.

Dos funcionários, recorda uma dedicação tremenda, mesmo quando pareciam estar “sem forças nem fôlego” para ajudar os utentes.

“Sinceramente, não sei como conseguiram. Foram de uma humanidade levada ao limite”, nota.

Neste momento, Regina sonha em poder voltar a estar fisicamente com a sua família e regressar às atividades de expressão plástica da APCC para “concretizar todos os projetos agendados”.

Aquando do início da pandemia Regina escreveu uma prosa sobre a situação, intitulada “Um Olhar de Esperança”.

“Vou acordar sempre porque a humanidade é a única palavra que me resta”, escrevia Regina nesse texto.

Um ano depois, questionada sobre se manteria esse tom esperançoso, diz que sim.

“Caso contrário, nada valeria a pena”, responde.

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