Saúde

Covid-19: Restrições e medo reavivaram memórias da guerra colonial

Notícias de Coimbra com Lusa | 3 anos atrás em 18-07-2021

A pandemia reavivou memórias dos combatentes na Guerra Colonial e aumentou o recurso a serviços de apoio psicológico, apesar da dificuldade em realizar sessões presenciais, quando “a solidariedade dos pares é fundamental”.

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Para Manuel Diogo, um ex-combatente da Guerra Colonial residente na Guarda, a pandemia trouxe um reavivar de memórias em situações muito específicas, como quando começou a ver as pessoas na rua de máscara, observando um ambiente de desconfiança e medo que também sentiu em Angola, na guerra.

“Em África, no tempo da guerra, íamos passear em Luanda e andávamos a olhar de um lado para o outro a vermos quem nos andava a perseguir. Aqui, agora, acontece a mesma coisa”, contou à Lusa.

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O presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), Manuel Lopes Dias, afirmou que o isolamento a que a pandemia obrigou veio reavivar memórias dos tempos de guerra, que agravaram as dificuldades já sentidas pelos deficientes militares.

“A pandemia trouxe-nos vivências da guerra, como a solidão e o afastamento das nossas famílias, da sociedade e dos amigos, que nós passámos enquanto jovens na Guerra Colonial. Muito nós estamos afetados a nível psicológico porque ninguém volta igual da guerra. Todo o ser humano que é sujeito a uma situação de guerra tem sérias consequências psicológicas, há sempre efeitos traumáticos. E isso nós vivemos outra vez”, afirmou, em entrevista à Lusa.

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De acordo com dados da ADFA cedidos à agência Lusa, em ano de pandemia registou-se um aumento dos pedidos de ajuda por parte dos deficientes militares e do apoio psicológico prestado. Em 2020, a associação apoiou 82 pessoas a nível psicológico, por via telefónica ou presencialmente, quando necessário, nos polos de Lisboa e do Porto, mais 8 do que em 2019, ano em que foram acompanhados 74 deficientes militares.

“Temos casos já referenciados pelas nossas equipas multidisciplinares, de psicólogos e psiquiatras, porque a pandemia, de facto, está a afetar bastante alguns dos nossos deficientes militares afetados pelo stress de guerra e mais tocados por problemas psicológicos. Têm recorrido e telefonado mais”, afirmou o coronel Lopes Dias.

Apesar de importante, o apoio psicológico não resolveu o problema da falta de contacto entre os deficientes militares que sofreram as marcas da Guerra Colonial e que foram obrigados a isolar-se uns dos outros, sustentou.

“A solidariedade dos pares é fundamental, para além do apoio técnico e do apoio das famílias”, explicou Manuel Lopes Dias. “E, neste momento, a pandemia veio cortar, nalguns casos quase totalmente, esta possibilidade de os deficientes das Forças Armadas participarem, colaborarem, reunirem-se. Isso tem sido uma situação grave a que estamos a assistir”.

Segundo a médica Luísa Sales, psiquiatra que integra a Comissão Científica do Centro de Recursos de Stress em Contexto Militar (CRSCM), de uma forma geral, “as populações reagiram com um aumento de expressões de stress, de processos de adaptação ou de trauma” à pandemia. Os antigos combatentes que estiveram na Guerra Colonial entre 1961 e 1974 e, em particular aqueles que desenvolveram patologias na sequência dessa experiência, não foram exceção.

Entre estas encontra-se o stress pós-traumático, mas também “depressões, quadros de ansiedade, fóbicos e de somatização, perdas de contacto com a realidade e comportamentos aditivos que são extremamente frequentes nestes contextos de rutura” e que fazem dos antigos combatentes uma população vulnerável, explica a psiquiatra, também responsável pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Coimbra e coordenadora do Observatório do Trauma/CES.

“Foi extremamente acentuada a fragilidade das pessoas com mais de 70 anos e todos os ex-combatentes da Guerra Colonial, em geral, têm mais de 70 anos, portanto, isso foi razoavelmente perturbador. E o facto de estarem mais presos – por exemplo, nos meus grupos terapêuticos tivemos de fazer períodos de paragem -, não facilita as coisas”, contou a profissional, em entrevista à Lusa.

Contactada pela Lusa, Anabela Oliveira, membro da Direção da Associação de Apoio aos Ex-combatentes Vítimas do Stress de Guerra (APOIAR) disse que a associação recebeu em 2020 mais pedidos de assistência e que os psicólogos prestaram apoio por telefone, existindo duas vezes por mês consulta de psiquiatria presencial.

De acordo com Luísa Sales, a terapia de grupo é a mais indicada no tratamento dos ex-combatentes, já que a existência de uma “rede social de suporte é muito importante na prevenção de quadros traumáticos e de desenvolvimento de doença pós-trauma”, explica.

Mas apesar de as consultas de grupo terem sido interrompidas durante o confinamento, os ex-combatentes que acompanha mantiveram o contacto telefónico entre si quase diariamente. Para a psiquiatra, foi este apoio mútuo que lhes permitiu ultrapassarem os constrangimentos colocados pela pandemia.

Luísa Sales admitiu que inicialmente esperava que a pandemia, situação que classificou como “muito violenta”, constituísse uma “espécie de ativação do trauma”. Contudo, na sua prática clínica tal não se verificou, disse.

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