Se alguma vez teve um lagarto ou uma cobra como animal de estimação, provavelmente já reparou que eles não urinam como os humanos.
Em vez de líquido, são pequenas bolinhas brancas e calcárias, parecidas com pedaços de gesso. Durante anos, os cientistas souberam que estes sólidos — chamados uratos — eram compostos por ácido úrico, mas não compreendiam como os répteis conseguiam produzi-los e eliminá-los de forma tão segura.
Agora, um estudo publicado no Journal of the American Chemical Society desvenda, literalmente, o mecanismo por trás da excreção destes resíduos cristalinos. Liderada por Jennifer Swift, da Universidade de Georgetown, a equipa analisou “cristais de urina” de mais de 20 espécies de répteis e descobriu um sistema surpreendentemente sofisticado que poderá, no futuro, inspirar tratamentos para gota e cálculos renais em humanos.
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“Esta investigação foi motivada pelo desejo de entender como os répteis conseguem excretar este material com segurança, na esperança de que isso possa inspirar novas abordagens para prevenção e tratamento de doenças”, explicou Jennifer Swift. Humanos, mamíferos e répteis enfrentam o mesmo desafio bioquímico: eliminar o excesso de nitrogénio.
O que torna estes resíduos tão únicos é a sua estrutura. A equipa de Swift descobriu que os répteis produzem os uratos como microesferas minúsculas, cada uma com alguns micrómetros de diâmetro, compostas por nanocristais ainda menores de monoidrato de ácido úrico. Estes nanocristais auto-organizam-se em pacotes esféricos estáveis o suficiente para se deslocarem pelo corpo do animal sem causar danos.
Curiosamente, nem todos os répteis têm estes cristais da mesma forma. Cobras primitivas, como pítons e jiboias, libertam-nos como microesferas sólidas, enquanto espécies mais recentes, como cascavéis, usam os mesmos nanocristais para capturar amónia, transformando-a num composto sólido e seguro denominado hidrato de urato de amónio.
“Alguns uratos secam até formar uma massa dura como pedra, e outros transformam-se num pó fino”, disse Swift. Este pó faz parte de um processo de desintoxicação que converte a amónia tóxica em partículas sólidas inofensivas, que podem até ser levadas pelo vento.
Apesar de parecer um detalhe curioso da herpetologia, o estudo tem implicações médicas. Nos répteis, os mesmos cristais são eliminados com segurança. Swift acredita que a chave está na estrutura dos nanocristais de monoidrato de ácido úrico, uma forma que os humanos quase nunca produzem.
“Os nossos resultados sugerem que o monoidrato de ácido úrico é, de facto, a forma mais comum de ácido úrico no planeta”, escreveram os investigadores. Curiosamente, apesar de raro nos cálculos renais humanos, é amplamente difundido e benéfico nos répteis. Além disso, as superfícies ionizadas dos nanocristais parecem ajudar a regular sais como potássio e sódio, desempenhando uma dupla função: gestão de resíduos e osmorregulação.
O estudo levanta ainda uma questão evolutiva provocadora: poderá o ácido úrico ter um papel protetor nos humanos? Há cerca de 13 milhões de anos, os primatas perderam a enzima uricase, responsável por decompor o ácido úrico. Esta alteração pode ter ajudado a conservar antioxidantes ou energia em períodos de escassez, mas também nos tornou vulneráveis a doenças modernas, como a gota.
Swift sugere que “níveis baixos de ácido úrico podem proteger contra a toxicidade da amónia, o que explicaria alguns benefícios evolutivos”. Contudo, alerta que se trata apenas de uma hipótese: excesso continua a ser prejudicial.
A evolução transformou, assim, o “xixi” de cobras e lagartos numa solução nanoestruturada para gerir resíduos e água — um exemplo de como a natureza cria mecanismos extraordinários que os humanos podem aprender a aproveitar. Como conclui Swift: “Milhões de anos de evolução permitiram que certas soluções prosperassem de formas que normalmente não imaginaríamos. A natureza tem processos extraordinários que ainda não compreendemos, simplesmente porque não os observámos.”
Às vezes, basta olhar para aquilo que os outros deixam sair.
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