Coimbra
Coimbra: Cláudia Silva ganhou um processo ao BPI mas ainda luta para não perder a casa

Imagem: Giorgio Trovato / unsplash
Quando em 2017 Cláudia Silva se dirigiu ao BPI para contrair um empréstimo para comprar casa não imaginava o longo litígio que manteria com o banco até hoje para não perder a habitação.
A escassos quilómetros do seu apartamento, no centro da cidade de Coimbra, a jurista, de 37 anos, conta que o seu desencontro com o banco dura desde o dia da assinatura da escritura, em 24 de maio de 2017.
Nessa data, não calculava que, seis anos depois, em 26 de setembro de 2023, o BPI venderia o seu crédito a uma distante empresa luxemburguesa chamada XYQ LUXCO S.A.R.L. É uma entidade controlada a partir do paraíso fiscal das Ilhas Caimão e gerida por uma empresa norte-americana cuja identidade o banco conhece mas não revela.
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O empréstimo de Cláudia Silva estava em incumprimento quando o banco decidiu fazer a “cessão de crédito”, levando a que perdesse a qualidade de “cliente bancária” e visse coartado o direito de saldar a dívida em atraso e retomar o pagamento das prestações.
A batalha jurídica que tem vivido nos últimos anos já lhe deu duas vitórias em tribunal contra o BPI. No entanto, continua a lutar para não perder a sua habitação e diz-se alvo de “crimes contra o [seu] património”.
Ao recordar a sua história, o sentimento é de revolta. Cláudia Silva descreve a sua experiência com o BPI como um exemplo da desproteção legal que alguns clientes bancários podem ficar sujeitos quando entram em incumprimento de forma continuada e veem o crédito classificado como malparado (de difícil cobrança).
Tal como Cláudia Silva, um devedor em incumprimento contínuo pode, em determinadas condições, ser surpreendido pela venda do empréstimo da habitação própria e permanente a uma entidade terceira não supervisionada pelo Banco de Portugal (BdP), deixando de beneficiar das proteções legais dos contratos de crédito a partir desse momento.
O risco de perder a casa aumenta. O novo dono, pretendendo obter ganhos com o ativo financeiro adquirido, pode exigir o pagamento do empréstimo na íntegra em pouco tempo ou avançar com a penhora do imóvel.
No caso da conimbricense, o problema com o BPI que a levou a deixar de pagar as prestações nunca foi financeiro, mas um desencontro inicial sobre as condições contratadas.
A jurista afirma que, em 2017, o banco aprovou o crédito de 155.000 euros em 48 horas, mas que as condições finais eram diferentes das propostas inicialmente. De repente, a imobiliária tinha outro comprador interessado e Cláudia Silva avançou com o contrato com o BPI.
“Se não fizesse a escritura, ia perder o apartamento porque já havia outro comprador”, recorda.
Na altura, alega a cliente, o banco prometeu-lhe rever o ‘spread’ (margem de lucro do banco) ao fim de um ano. No entanto, tal não aconteceu e Cláudia Silva entendeu deixar de pagar as prestações a partir de dezembro de 2019, à espera da revisão.
“Confiei no banco. Estamos a falar de um banco de renome”, afirma, dizendo que se sentiu “enganada” e que foi isso que a levou a deixar de pagar.
Os créditos entraram em pré-contencioso, mais tarde passaram para a fase de contencioso, até que, em 02 de março de 2022, o BPI avançou com uma ação executiva no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra para cobrar o crédito, que já totalizava 176.000 euros.
Entre junho e julho de 2023, enquanto a ação decorria em tribunal, a cliente tentou chegar a um acordo com o banco para pagar o valor em atraso e retomar o empréstimo. Porém, o entendimento não se concretizou e, semanas depois, deu-se a venda do crédito à empresa luxemburguesa.
“Tínhamos um acordo aceite por ambas as partes para ser formalizado e uma advogada do banco decidiu não colaborar, porque o seu colega, que era o mandatário, tinha ido de férias. Quando o colega chegou, o acordo já não estava de pé”, situa Cláudia Silva.
A operação aconteceu em 26 de setembro de 2023, altura em que o BPI vendeu um pacote de malparado de 17 mil clientes, num valor de 123 milhões de euros, dos quais só uma parte garante ser de habitação.
Cláudia Silva só ficou a saber da operação depois de concretizada. À Lusa, fonte oficial do banco confirma que procedeu desta forma e justifica-se dizendo que uma cessão não depende da autorização dos devedores.
A transação direta ocorreu com a XYQ LUXCO S.A.R.L., empresa que, segundo a Lusa confirmou no Registo Comercial e das Sociedades (RCS) do Luxemburgo, é controlada pela XYQ Cayman Ltd, sediada nas Ilhas Caimão. Esta entidade é, por sua vez, detida por três fundos cujo beneficiário efetivo é desconhecido. os fundos são administrados por uma gestora de ativos nos Estados Unidos, cujo nome o BPI garante conhecer embora não o identifique.
Quando a operação se concretizou, a ação em tribunal levantada pelo BPI continuava de pé e, por isso, a venda ganhou relevância processual: os tribunais tiveram de apreciar se a cessão do crédito foi, ou não, legal.
Cláudia Silva perdeu na primeira instância, mas ganhou nas duas seguintes, quer no Tribunal da Relação de Coimbra, quer no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), conseguindo que a venda do crédito à XYQ LUXCO S.A.R.L. fosse anulada e que o empréstimo regressasse ao BPI.
Em maio deste ano, o STJ considerou que o banco, ao alienar o empréstimo a uma empresa não supervisionada pelo BdP, praticou uma “fraude à lei”, porque, com a cessão, o interlocutor deixou de ser uma instituição financeira.
A partir desse momento, Cláudia Silva deixou de ser abrangida pelas condições legais aplicadas aos créditos à habitação, ficando excluída do chamado “direito de retorno”, uma regra que permite aos devedores retomarem o pagamento do crédito, pagando o valor em falta, os juros e voltando a poder saldar o empréstimo a prestações.
Quando o crédito saiu da esfera do BPI, o interlocutor direto nunca foi a XYQ LUXCO S.A.R.L., entidade que a jurista diz não ter qualquer contacto em Portugal disponível para falar com os clientes. Quem a representou foi uma outra empresa especializada em recuperação de créditos sediada em Lisboa, chamada Finsolutia – cujo presidente do Conselho de Administração é Nuno Espírito Santo Silva, ex quadro da ES Capital (do GES, Grupo Espírito Santo) – , e entidade com quem o BPI, por sua vez, tem relações comerciais, segundo o banco confirmou à Lusa.
Fonte oficial do BPI afirma que, mesmo quando um crédito deixa de lhe pertencer, dá a possibilidade aos devedores de exercerem o direito de retoma, garantindo que o contrato de cessão de Cláudia Silva “previu expressamente” que se a cliente o pretendesse, o BPI readquiria “o crédito ao cessionário”.
No entanto, essa afirmação é contraditória com o que se passou no caso concreto desta cliente. Em Janeiro de 2025, quando o empréstimo ainda se encontrava do lado da XYQ Luxco S.A.R.L., a direção jurídica do BPI respondeu a Cláudia Silva que, como o banco já não detinha qualquer crédito seu, “não [estava] em condições de poder proporcionar qualquer eventual solução para o mesmo”, segundo uma mensagem de ‘email’ a que a Lusa teve acesso.
Com a decisão do STJ de 27 de maio de 2025, o crédito voltou ao BPI este verão.
Neste momento, Cláudia Silva tenta chegar a um acordo com o banco, defendendo que tem direito a receber uma indemnização pelos danos que diz estar a sofrer nos últimos anos com o litígio e com os contornos de uma venda declarada ilegal pelo STJ. Considera que o BPI agiu “dolosamente contra o [seu] património”.
A cliente afirma que o seu problema não é financeiro, mas de princípio, e diz quer tornar público o caso para mostrar como outros cidadãos ficaram desprotegidos nos últimos anos em casos semelhantes.
Falando do seu processo, considera que o Supremo Tribunal de Justiça notou “muito bem” que os tribunais inferiores “não podem continuar a ignorar aquilo que se anda a passar no património das pessoas”.
A jurista entende que, havendo decisões dos tribunais da Relação e do STJ a declarar ilegais as cessões de crédito à habitação, os bancos deviam abster-se de realizar estas operações. Por isso, não compreende que, em junho deste ano, já posteriormente à decisão do STJ, o BPI tenha anunciado que voltou vender uma carteira de créditos de 82 milhões de euros, referentes a 22.900 contratos de cerca de 5.600 clientes, dos quais o numero referente a empréstimos à habitação é desconhecido.
Cláudia Silva sublinha que a sua operação, como outras, aconteceu já posteriormente à data em que deveria ter entrado em vigor o novo regime jurídico que transpõe uma diretiva europeia de 2021 que impede que os clientes fiquem numa situação jurídica pior do que antes da cessão do crédito. Se a diretiva estivesse sido transposta dentro do prazo, até dezembro de 2023, Cláudia Silva acredita que muitos clientes teriam ficado mais protegidos.
No meio deste processo, apresentou queixas a diversas entidades, por diferentes razões. Uma delas seguiu para a Ordem dos Advogados, pelo facto de a advogada que defendeu o BPI na ação judicial ser a mesma que representou a Finsolutia.
Além da queixa à Ordem dos Advogados, Cláudia Silva escreveu à Comissão Nacional de Proteção de Dados para se averiguar a forma como as suas informações pessoais chegaram à Finsolutia, escreveu à Comissão Europeia para dar conta do seu caso, dirigiu-se ao Banco de Portugal – que à Lusa diz não comentar o caso concreto -, denunciou o tema ao Tribunal de Contas para dar conta das implicações das operações e escreveu ao Ministério Público, por considerar haver contornos criminais a apurar.
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