Opinião

Cagada em três atos 

OPINIÃO | Bernardo Neto Parra | 1 mês atrás em 21-03-2024

O título não o sugere, eu sei, mas este texto pretende ser uma sincera homenagem ao meu pai. Para quem não o conhece, trata-se de uma criatura de peculiar sensibilidade e ímpar inteligência, com um sentido de humor seletivo e hábitos próprios, enraizados numa teimosia não assumida. Os seus incontáveis defeitos são atenuados pelas suas cativantes qualidades, raras e capazes de encantar mesmo quem, numa primeira impressão, não lhe reconheça particular interesse. 

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Pessoa do antigamente, o meu pai personifica a imagem do homem analógico, pouco dado ao ecossistema digital e à euforia da modernidade, sendo um dos últimos apreciadores de serões longos preenchidos com conversas sinceras. Conversas prolongadas e multitemáticas, durante as quais, inevitável e repetidamente, faz uso da expressão “cagada em três atos”. 

“Isso é uma cagada em três atos” – o meu pai nunca se cansa de reproduzir esta formulação. Desde a minha infância, e ao longo de toda a minha vida, na verdade, o dito multiplicou-se na boca do meu pai, que nunca se inibiu de assim qualificar aquilo de que não gosta. Tudo o que fosse mau, tudo o que não lhe caísse nas graças, tudo o que ele desconsiderasse, na plenitude da sua inteligência e sensibilidade, era resumido na rotunda expressão “Uma cagada em três atos”. 

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O filme é mau? – “Uma cagada em três atos”; O livro é bom? – “Uma cagada em três atos”; Como foi o jogo? – “Uma cagada em três atos”. No final da escala, lá estava ela: a cagada em três atos. Excelente, bom, razoável, medíocre, mau… e “cagada em três atos” – uma forma criativa de dizer “não vale nada”, “é uma merda” ou tão-só “não presta”. Não importa o objeto; entende-se imediatamente que se trata de cocó. Seja lá o que for, sabe-se que é coisa de valor negativo, uniformemente fraca, que normalmente cheira mal e pode até fazer arder os olhos. 

Em criança, gostava de a ouvir, mesmo não compreendendo exatamente o que a qualificação transmitia. O leve desprezo inscrito na expressão facial do meu pai

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denunciava que a tal “cagada em três atos” não era coisa boa, ainda que o tom bonacheirão e a própria fonética da formulação a tornassem agradável aos meus ouvidos. 

Gradualmente, à medida que fui convivendo com as minhas próprias cagadas, nasceu uma estranheza em mim. Dei por mim a pensar: “Isto da cagada nem é mau. O meu pai é capaz de estar errado. Mas o que é que ele terá contra o ato de cagar?! É tão agradável...”, questionava eu, inocentemente, sem realizar o que justificava tamanha aversão pela própria cagada. 

Seria o facto de estar distribuída por três atos que a desqualificava? Se fosse condensada num único ato, teria a cagada o reconhecimento do meu pai? Estas eram algumas das questões que me faziam desconfiar do discernimento do meu progenitor, que, até então, sempre fora tão sensato e assertivo nas suas considerações. 

A contradição foi-se revelando lentamente: “Espera lá, se nem ele gosta de cagadas, o que justifica tão regulares e demoradas idas à casa de banho? Afinal de contas, porquê tanto tempo na casa de banho, senão na expetativa de uma bela cagada?”. Tantas horas fechado na casa de banho começaram a intrigar-me. Aos poucos, ainda petiz, procurava perceber tal fenómeno, entender o que podia justificar tão prolongada ausência parental. “Pai, o que raio estás a fazer na casa de banho há 47 minutos?”, questionava eu, numa pergunta muda que me levou, até, a abrir inadvertidamente a porta da casa de banho. 

É sempre arriscado abrir a porta de uma casa de banho. Afinal de contas, nunca sabemos o que ali vamos encontrar. Desde momentos eróticos do nosso irmão, a depilações acrobáticas da nossa mãe, ou até mesmo o rabo desnudado de um familiar desprevenido que se esqueceu de trancar a porta durante um jantar de aniversário… As casas de banho albergam uma vasta amplitude de atividades, sendo que a maioria delas não merece ser testemunhada. 

Ainda assim, arrisquei. A curiosidade sobrepôs-se ao perigo do embaraço. E o que encontrei foi o oposto do embaraço. Foi uma imagem até bastante familiar. Era o meu pai. Só o meu pai. Feliz, descontraído, no meio de uma cagada que supostamente desprezava, curvado sobre a sanita, com as cuecas coladas aos calcanhares, ao lado de um bidé recheado de cinzas. Na boca, um cigarro; na mão, um livro; e, nos olhos, a irritação

provocada pelo fumo acumulado ao longo do serão. Mas feliz. De sorriso descontraído, alheado do cocktail de odores gerado pela fusão do fumo e do metano, refastelado num refúgio de paz e sossego, assente na razão simples de um homem complexo que encontra na sanita o interregno terapêutico da ginástica quotidiana. 

E este – percebi mais tarde – era só o segundo ato da sua cagada. No primeiro, o meu pai dedicara-se à escolha do objeto da sua leitura, entre revistas, livros ou catálogos de Natal do Continente — um daqueles velhos rituais eliminado pelos smartphones. O terceiro e último ato resumia-se, no fundo, à rigorosa limpeza do traseiro, saindo da casa de banho, sempre, com um sentimento de felicidade espelhado no rosto. Felicidade, essa, apenas perturbada pela dormência das pernas. Afinal, tantas horas acabavam por produzir um formigueiro estranho nos seus membros inferiores, provocando-lhe um riso contorcido enquanto se evadia discretamente daquela divisão que tanto estimava. 

Compunha-se assim uma imagem familiar, cómoda, caseira, e inevitavelmente paradoxal, que resumia uma das mais valiosas lições do meu pai: Uma bela cagada não é sinónimo de “uma cagada em três atos”.

OPINIÃO | BERNARDO NETO PARRA

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