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Bombardeamentos incessantes impedem Kherson de cicatrizar após um ano de guerra na Ucrânia

Notícias de Coimbra com Lusa | 1 ano atrás em 20-02-2023

Kherson tem hoje menos habitantes do que durante os quase dez meses de ocupação russa, é uma cidade imobilizada que receia regressar a março do ano passado e incapaz de cicatrizar feridas que a artilharia reabre diariamente.

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Há praticamente um ano que o amanhecer em Kherson é o mesmo: o som de artilharia proveniente do outro lado do rio Dnieper e as crateras que originam do lado de cá da margem.

O primeiro bombardeamento de domingo foi às 03:00 locais (01:00 em Lisboa). Sucederam-se mais dois até ao início da manhã. “Para Kherson até está a ser um dia simpático”, disse à Lusa Mikael.

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Mikael é segurança de uma fábrica de plásticos e artigos para casa de banho nos arredores de Kherson. A fábrica agora não produz, pouco necessidade tem de um segurança, já que apenas está a escoar o pouco ‘stock’ que ainda tem e que não foi pilhado pelos militares russos durante os mais de nove meses de ocupação.

Mas Mikael voltou ao trabalho porque lhe falta um propósito. Rodeado por cerca de 15 cães, que entram e saem das instalações, está o dia todo naquele portão e o cenário que tem diante de si são os resquícios de uma das principais batalhas entre os Forças Armadas da Ucrânia e da Federação Russa pelo controlo da cidade.

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As trincheiras escavadas pelos militares russos ainda lá estão, assim como os sacos de serapilheira, veículos de combate calcinados e vestígios de destruição por todo o lado. O muro que delimita a fábrica foi em grande parte derrubado, pelo que Mikael pouco ou nada consegue realmente proteger de ladrões que apareçam. Mas não arreda pé do seu posto.

Kherson tinha mais de 300.000 habitantes até fevereiro de 2022. Com a ocupação russa em março o número caiu a pique para os 100.000. A Forças Armadas ucranianas conseguiram reaver a cidade em novembro e algumas pessoas que estão na Praça Svobody, onde hoje está a bandeira da União Europeia juntamente com a da Ucrânia, ainda têm esse momento presente na memória: “Foi um dia sangrento.”

Kherson tentou recuperar a vida que outrora perdeu, mas a artilharia russa está do outro lado do rio Dnieper e não dá tréguas. A população, desesperada, começou a deixar a cidade.

“Hoje são menos de 15% os que aqui ficaram, muitas pessoas saíram depois da ocupação”, calcula a proprietária de um dos únicos restaurantes que está aberto, na Praça Svobody. Falou com a Lusa, mas não quis dar o nome, com receio do que possa acontecer se os militares russos voltarem a controlar a cidade. Abrir o restaurante só mesmo para ocupar o tempo, uma vez que os únicos clientes são um ou outro habitante e os jornalistas.

Ouve-se ao longe uma explosão. Cinco minutos depois uma segunda.

Ao início da tarde, um grupo de homens, mais velhos, está a conversar ao lado de uma paragem de autocarro. Há pouco movimento na rua, a entrega de comida, parte de um programa de ajuda humanitária na cidade, acabou há instantes. Não há comida para todos. Quem não conseguiu, volta a tentar no dia seguinte.

Ouve-se uma terceira explosão e a quarta instantes depois. A cadência dos bombardeamentos está a aumentar, mas nunca são dirigidos ao mesmo local. Algumas pessoas estremecem, outras continuam a caminhar, como se nada tivesse acontecido.

“Foi para aí a um quilómetro este”, disse um dos homens a conversar na paragem, que depois deste reparo continua a conversar com outro, encostado à bicicleta.

O Dnieper está a separar as duas fações, a servir de intermediário que não resolve diferenças, mas apazigua momentaneamente.

Contudo, há uma pequena península no meio do rio completamente fustigada. Se o cenário é o de uma cidade inerte no resto de Kherson, aqui a vida parou por completo. As ruas são dominadas por matilhas de cães, abandonados quando a população fugiu, e as poucas pessoas que ainda cá vivem apressam-se para chegar a casa.

Estar na rua é um convite para ser o alvo aleatório de artilharia que “é disparada desenfreadamente, sem objetivo, só para destruir”, disse um dos cidadãos. Todos os edifícios estão danificados pelos estilhaços e há enormes buracos que atravessam andares de prédios esventrados.

Mas em Kherson não é tudo abandono, também há regresso.

Alyona chegou à estação de Kherson no primeiro comboio do dia, agasalhada e em lágrimas. Lá fora estava Oleksandr, fardado, barba por fazer, com um ramo de rosas.

O abraço e o beijo do reencontro prolongaram-se por vários minutos, “já passou quase um ano”, explica à Lusa Alyona. Quando os militares russos entraram na cidade, Alyona fugiu com as filhas, Oleksandr ficou para trás com o filho para recuperar a cidade.

Alyona foi para o centro do país, viver com a mãe, e agora voltou. E Oleksandr aproveitou aquilo que durante uma guerra é equiparável a uma folga para estar com a mulher.

Ninguém sabe quando vai ser a próxima ofensiva russa e se Kherson vai aguentar ou sucumbir novamente, mas todos sabem que vai acontecer, por isso, “é preciso aproveitar agora”.

Com os brincos adornados com o tridente que representa as Forças Armadas do país e o mesmo símbolo, em azul e amarelo – as cores nacionais -, na carteira que trazia, Alyona não escondeu a felicidade de estar com o marido, que esteva na frente durante a batalha de Snihurivka perto de Mykolaiv.

“Queríamos ter saído os dois, mas tive de ficar pela cidade e pelo meu filho”, conta Oleksandr, ainda a limpar as lágrimas depois do reencontro. O casal não se demorou na conversa, queriam aproveitar o dia, já que Alyona vai voltar para casa da mãe, “que já tem alguma idade e problemas de saúde, mas, principalmente, porque aqui ainda não é seguro”.

Kherson tentou sem sucesso até hoje cicatrizar as feridas que a invasão de 24 de fevereiro do ano passado começou. As crateras acumulam-se, os edifícios e as ruas estão praticamente desertos. Pouco resta para bombardear, mas a artilharia continua a ouvir-se ao longe. Durante a tarde, a cidade foi bombardeada pelo menos 12 vezes e o intervalo diminuiu com o cair da noite.

Hoje, o ciclo repete-se.

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