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As senhoras do século XXI em Coimbra

Angel Machado | 2 horas atrás em 04-08-2025

Quem são, afinal, as senhoras do século XXI? O que fazem e o que esperam? Sei que são fiéis a um ritual que rejeita a pressa. As mulheres que são hoje, foram crianças de colo, meninas que estiveram no ventre de outra mulher, que foi mãe pela primeira ou última vez. Vejo nelas, o mesmo brilho incandescente da descoberta e a possibilidade de terem envelhecido sem razões para sentir saudades.

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No Café Capri, às nove da manhã e às duas da tarde, floresce uma pequena revolução. Não se ouvem palavras de ordem, mas há resistência – nove mulheres, entre os 69 e os 87 anos, sentam-se todos os dias à mesa há quase 30 anos. Com elas, o café, as memórias e um pacto silencioso – viver com tempo e dentro do tempo. “Tenho a minha máquina de café em casa, mas não é a mesma coisa.”

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As senhoras têm nomes que se poderiam encontrar num romance de Agustina: Milu Pôncio, Maria Violante, Lucília Ribeiro, Teresa Cabral, Maria do Carmo, Lúcia Castro, Rosa Reginaldo, Rosário Luxo ou Rosarinho – como gosta de ser chamada -, e Manuela Carvalho. Juntas, compõem uma tertúlia quotidiana, fiel ao mesmo cenário e aos mesmos rituais, como um gesto que se repete diariamente, há três anos, para que o mundo não se desfaça.

“Há dias em que sou a primeira a chegar, outros em que é ela. Mas, invariavelmente, encontramos aqui um ponto comum: uma chávena, conversa e o tempo a passar devagarinho,” segundo Lucília Ribeiro.

Chamam-lhe tertúlia — palavra herdada do castelhano, mas já de corpo inteiro na língua portuguesa. No café do bairro, nos Olivais, acontece um convívio, quase um lugar mental, onde o tempo se dobra sobre si próprio, e as conversas desenham mapas invisíveis de um território que só elas conhecem. Falam de histórias do liceu, amores que o tempo não apagou, notícias do bairro, netos em festa, receitas de bolo e de coragem. Tudo cabe na conversa, tudo importa.

Algumas chegam com agulhas e linhas: a Milu Pôncio e a Teresa Cabral. O croché acontece quase sem se notar, como a respiração ou o silêncio cúmplice. As mãos trabalham devagar, como se o tempo, ali, também fosse tecido, e talvez seja. Nesse encontro do feminino, o tempo tem outra gramática — da escuta, da presença e da palavra sem urgência.

“Às vezes me perguntam: além dos encontros, o que fazes? E eu respondo, meio a sério, meio a brincar: de resto, não faço e não é que seja falta de vontade. O tempo se gasta noutras coisas, às vezes em tentar não perder o ritmo — de ler um livro, de ensinar uma coisa aqui ou ali, de manter a cabeça ocupada,” afirma Maria do Carmo.

O passado é convocado, mas sem espaço para a nostalgia. O que realmente idolatram é o presente. Estas mulheres recusam o sofá, rejeitam a passividade do ecrã. Foram professoras primárias, donas de casa, enfermeiras, assistente social, técnicas de raio-X, esteticistas. São, sobretudo, resistentes: cumprem com disciplina a prescrição médica que melhor conhecem — movimento, laços, partilha -, sabem que a alma também precisa de exercício.

Nos aniversários há bolo. “Na véspera, avisei logo: Diz-me que bolo queres que eu compre, eu trago e pago. Trouxe até as velas. E lá estava a mesa, e cada uma pediu o que queria. É assim o nosso grupo — cada uma faz à sua maneira. E o bonito é que não levamos a mal, cada uma com o seu jeito, e está tudo certo”, conta Lúcia Castro.

São esses momentos de sentar e esperar, porque sabe que alguém há-de vir, e virão com histórias, sorrisos, talvez até um bolo. Mas há dias menos bons também, quando em casa, por causa de um degrau esquecido no escuro… “A senhora — coitada — não viu o degrau. Nada de grave, mas bastou para lembrar que o cuidado é coisa que envelhece connosco, mas nunca nos deve faltar.”

“No meio disso tudo, fico a pensar nos meus filhos que chegaram às oito da noite, só para jantar comigo. À meia-noite, já estavam de volta”. Esses gestos — pequenos, silenciosos — dizem muito mais do que as grandes palavras.

Na hora em que o grupo se dispersa, cada uma segue o seu caminho, sem dramas ou promessas. Sabem que o essencial não precisa de ser dito. Amanhã estarão ali outra vez — à mesma hora, no mesmo canto. É uma fidelidade tranquila – quase litúrgica – e, como toda a liturgia, oferece sentido ao que poderia ser apenas rotina.

As senhoras do século XXI, erguem todos os dias, um escudo invisível contra a solidão, a pressa, a ideia de que a velhice é sinónimo de inércia. Reivindicam respeito. Ensinam e aprendem, como uma tradição, embora, o riso maduro, as rugas, e a dignidade estejam sempre ameaçadas pelo idadismo.

É bom lembrar para quem ainda pensa em envelhecer, que o valor da vida é percebido pelas histórias que guardamos ou contamos à mesa para amigos. Percebido isso é possível que entendamos de onde vem o preconceito. Aliás, a juventude só deve ser homenageada quando chegamos aos 100 anos.

Não há virtude mais latente que a curiosidade, e nisso, as Mariazinhas, as Teresas, as Lucílias, as Milus, as Lúcias, as Rosas, as Rosários e as Manuelas, sabem — e ensinam-nos sem o dizer — que a vida só tem sentido quando vivida e partilhada para gastar a alegria do tempo.

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