Opinião

Após os “Trinta Gloriosos”…os “Quarenta Ensombrados”

José João Lucas | 9 anos atrás em 18-05-2015

APÓS OS ‘TRINTA GLORIOSOS’… OS ‘QUARENTA ENSOMBRADOS” – 70 ANOS DEPOIS DA LIBERTAÇÃO DA EUROPA DO NAZISMO

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Há 70 anos a Europa estava, literalmente, em escombros. O partido nacional-socialista, comandado por Hitler – tendo ascendido ao poder mediante eleições em1933 – projetou uma  Europa submetida a um ideal imperial com sede em Berlim. Baseado numa ideologia e numa ciência racistas, eugenistas e destruidoras das diferenças e suportada por uma imensa força industrial colocada ao serviço duma colossal máquina de guerra e de destruição, o poder nazi foi-se valendo da indiferença de muitos cidadãos e cidadãs, não só alemães, e de cumplicidades políticas várias, quer dentro da Alemanha, quer no quadro europeu e mundial.

A invasão da Etiópia pelas tropas de Mussolini (1935), o ataque à República e o desencadear da guerra civil espanhola sob o comando de Franco (1936-1939), a expansão militar japonesa no oriente (1937-1939), a anexação alemã da Aústria e da região dos Sudetas na Checoslováquia (1938) foram alguns dos atos agressivos e de ocupação que a Liga das Nações e as potências europeias consentiram e com que pactuaram. O que veio a seguir, a partir da invasão alemã da Polónia em 1 de setembro de 1939, foi resultado de ações e de omissões anteriores, de silêncios consentidos, mas também de condescendências firmadas em tratados.

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Em Portugal, o mito do escudo protetor de Salazar, apoiado numa ideia de excecionalidade histórica, quase genética, quiçá de proteção divina, que foi desenvolvido pelos ideólogos salazaristas, ajudou a criar na generalidade duma população, pouco informada e muito confiante em forças sobrenaturais, a crença de que o ‘mal’ era para os outros. Quanto ao resto, a veneração do chefe, o ‘casamento’ deste com a hierarquia católica, a concertação dos discursos públicos na igreja, nas famílias, na praça pública, nos locais de encontro e de diversão e na comunicação social, tudo isto serviu não só para alimentar esta segurança ‘cá dentro’ contra uma hipotética invasão ou declaração de guerra do exterior, como para criar e alimentar uma sustentação, mesmo que difusa, do projeto alemão, com o forte argumento de que ele era, finalmente, a guarda avançada e segura contra a invasão comunista – o espetro que rondava a Europa, nas palavras irónicas iniciais do manifesto comunista de 1848, de Marx e Engels.

Aplanado o terreno, todos os horrores – das ocupações aos cenários de batalha, dos guettos aos campos de concentração – foram sendo cometidos, perante o pavor mas também perante a complacência e até a colaboração de muita gente. As vítimas foram-no muitas vezes não só de carrascos cruéis, mas também de denunciantes sem escrúpulos, provavelmente convencidos que estariam a  salvar a sua pele, quando, muitas vezes, nem isso lhes valeu.

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A vitória das forças aliadas sobre o exército nazi só foi reconhecida e assinada em 8 de maio, oito dias depois do suicídio de Hitler e de alguns seus próximos, no seu bunker de Berlim. Esta vitória militar teve episódios extremamente sangrentos – de que se destacam a batalha de Stalinegrado (de julho de 1942 a fevereiro de 1943), com cerca de dois milhões de mortos e feridos, e o desembarque na Normandia e reocupação do território francês (6 de junho de 1944 e meses seguintes), com algumas centenas de milhares de mortos, feridos e desaparecidos. Contudo, foi também resultado de muitas ações de resistentes em todos os países ocupados, que organizaram formas de combate mais subtis, mas, nem por isso, menos arriscadas e que, em muito contribuíram para a eficácia da reocupação dos territórios europeus pelas forças aliadas.

De 1 de setembro de 1939 a 8 de maio de 1945, em quase seis anos de invasões e de ocupações, de operações militares violentíssimas e sangrentas, de bombardeamentos sobre militares e civis, envolvendo mais de 50 países, contabilizam-se cerca de 60 milhões de mortos em todo o mundo, dos quais cerca de dois terços de civis. Daquele total, estima-se que 85%, na sua maior parte cidadãos soviéticos e chineses, pertenciam aos aliados. Muitos milhões de desalojados, doentes e estropiados sobreviveram. Para esses, os governos do pós-guerra tiveram de encontrar soluções, em primeiro lugar, com base em instituições humanitárias, mas, depois, obedecendo a uma estratégia de reconhecimento de direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs, adultos e crianças, e da sua promoção concreta no que diz respeito aos cuidados de saúde, à habitação, à educação e à segurança social, entendidos como basilares para uma vida digna em sociedade e, por isso, com responsabilidade dos estados.

Daqui se traçou um programa de construção da coesão social – com base em experiências anteriores, parcelares, desenvolvidas aqui e ali, algumas ainda no século XIX – mas agora assumido como essencial para a nova sociedade que se pretendeu erigir. A criação da Organização das Nações Unidas e a aprovação pela sua assembleia geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos foram âncoras para este programa que deu solidez a ideais que se vinham delineando desde há anos, nos tempos de guerra. São de destacar o Plano Beveridge (Reino Unido, 1942) e o Programa do Conselho Nacional da Resistência (França, 1944). Fazem parte daquilo a que se convencionou chamar ‘estado social’ e que Marcelo Caetano, muito longe dele, adotou como designação para a sua política tardo-fascista.

Decorridos estes 70 anos e olhando para esta Europa, dirigida por uma quase unanimidade de governos que substituiram os direitos sociais e a coesão dos povos por uma matriz programática que os ignora e até que os considera obstáculos à prosperidade económica que propugna, é tempo de lançarmos um olhar mais crítico por este longo e complexo percurso. É também tempo de identificarmos os seus pontos negros, designadamente aqueles em que os poderes explícitos e implícitos da finança e das elites dos negócios, erigindo-se como autoridades sem rosto, sem legitimação popular e, como se tem visto, sem responsabilidade civil e criminal, passaram a dizimar cidadãos, comunidades, países, reduzindo-os ao grau mais baixo da dignidade humana.

Há mais de 70 anos, o silêncio, a cumplicidade e até o colaboracionismo mais ativo foram as armas decisivas dos que, sem escrúpulos e autoerigidos em ditadores, mesmo que através de meios eleitorais, fizeram desta Europa o monte de escombros que hoje todos lamentamos. Com a experiência destas sete décadas decorridas, não se queira agora, ‘assobiar para o ar’ e ignorar que as chagas sociais, provocadas pelas opções económicas e políticas tomadas pelos governos e pela união europeia nestes anos, fizeram, de facto,  retroceder as nossas sociedades muito para trás dos apelidados ‘Trente glorieuses’ (1945-1975), que fizeram delas uma referência muito positiva à escala mundial. Muito menos se queira apagar a memória dos também chamados ‘dias felizes’ que se seguiram à vitória dos aliados e que mobilizaram os povos europeus na construção duma sociedade mais justa, mais solidária e, por isso, mais feliz.

Se quisermos avivar a memória, eis uma sugestão de consulta:

http://www.spiegel.de/international/europe/world-war-ii-in-cologne-delusion-a-1032115.html

josé joão lucas

JOSÉ JOÃO LUCAS

Professor Reformado. Membro da Cordenadora Concelhia de Coimbra do Bloco de Esquerda

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