Estou convencida de que poucas coisas na vida precisam de vírgulas. Mas, para que esta crónica seja lida com entusiasmo, provo o antídoto: absolvo-me das aulas de gramática a que faltei. O oráculo nunca me impediu de usar vírgulas; no entanto, o deslize acontece no texto — escrito com pausas para respirar.
Sou aluna de muitos casos, de factos que se revelam quando olho o mundo. Sim, o mundo — mas ao contrário. Imagino sem perceber o contacto. Resolvo problemas sem saber que os tenho. Ignoro os desastres — não por indiferença, mas para que a minha escrita seja leve, quase tangente.
PUBLICIDADE
O mundo ao contrário. Nele, ainda não nasci, não aqui. Faço parte de uma ilusão humana que se espalha nos dias de chuva de meteoros. Quão longínqua é esta solidão construída por solitários que desejam filhos. Mas eu? Ainda não existo. Ou talvez sim — nas coisas que não são humanas. Como eu gostava de estar onde já estou: desprotegida das ameaças, mas destemida, precisamente por não saber o que é uma ameaça.
Se vou nascer, preciso de casco e de uma esfera áurea. Se.
Digo “se” quando não sei o que escrever.
Mas — se — estiver escrito por um deus que não conheço e, mesmo assim, idolatro (sem saber porquê), então que eu viva. Que eu viva. Num tempo encolhido pelas oportunidades analógicas. Num grande ecrã preto e branco, num cinema em Itália, onde as notícias ainda chegam no jornal do dia seguinte.
Facilitaram a vida com lâmpadas recém-lançadas, para que as pupilas não se dilatassem tanto com a escuridão de observar os autoritários, loucos e perdidos — esses homens que quiseram mandar nos outros. E os outros? Também eu. A melindrosa das redondezas. Aquela que ouvia o machista de voz encantadora — o Sinatra — e não deseja perdão por pensar assim.
Era eu. A que via Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, a soluçar. E logo depois, o trauma: perceber como todos parecem condescendentes com a miséria dos outros.
Repara: eu nunca perdi, nem perderei, tempo a tentar ser perfeita — ou a mulher dos sonhos de um homem. Nasci e cultivei o meu brio feminino, como evocava Betty Friedan, no seu livro “A Mística Feminina”, de 1963. Se ainda não conhecem, leiam.
Imaginei a minha estreia neste mundo como alguém a chegar, que chora, esperneia, desfaz a tradição do rebento feliz que nada sabe — e que, com a sucessão dos dias, se encantará com a vida, mas de outra forma.
Dizem que há uma força sobrenatural para se ser parida — e uma dor incomparável. Desejo essa força para reconfigurar a minha vida com prazer e justiça. E a dor? Que ela me arranque poderes — esses que não sei explicar, mas que aparecem quando escrevo.
Ainda não nasci, receio desistir, os ecos do mundo não são melodiosos.
OPINIÃO | ANGEL MACHADO -JORNALISTA
PUBLICIDADE