Política

Anatomia de um golpe de Estado – como o chefe de governo foi derrubado a 7 de Novembro

Frederico Duarte Carvalho | 6 meses atrás em 10-11-2023

 A data deveria fazer parte dos feriados de Portugal. A 7 de Novembro de 2023 houve um golpe de Estado em Lisboa que derrubou um primeiro-ministro eleito e com maioria estável no Parlamento. O que aconteceu tem de ficar devidamente registado para as gerações futuras.

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A manobra teve o seu secretismo. Um grupo armado, constituído por cerca de 140 elementos de baixa patente, iniciou manobras durante a madrugada de 7 de Novembro com o objetivo de ocupar locais estratégicos do poder em Lisboa. Com uma ousadia inédita, a operação conseguiu a introdução de alguns dos seus elementos na residência oficial do primeiro-ministro de Portugal.

No fim da manhã, através da Comunicação Social e das redes sociais, garantindo o controle das massas, chegou o momento do chefe do governo falar ao povo, pouco depois da hora do almoço, para apresentar a demissão. A seguir, o Palácio Presidencial iniciou o processo para a escolha de um novo governo para o País e, a 9, anunciou a marcação de eleições livres e transparentes para dentro de 123 dias – o dobro que a Constituição tem previsto como sendo a data oficial em que as mesmas devem ser marcadas.  

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Este é o resumo do dia 7 de Novembro de 2023 e seus efeitos imediatos. Tivesse tudo isto sido num outro tempo, a data já era um feriado ao nível de anteriores momentos históricos que também levaram ao derrube de governos através do uso de armas de fogo, como 5 de Outubro de 1910, 28 de Maio de 1926 ou 25 de Abril de 1974. Só que, desta vez, na civilizada Europa Comunitária, os cerca de 140 elementos da Polícia de Segurança Pública (PSP)combinados com Guarda Nacional Republicana (GNR), conseguiram levar a cabo a operação de ocupação da residência oficial do primeiro-ministro e consequente demissão do chefe de governo sem a necessidade de disparar um tiro.

Explique-se ainda alguns detalhes para que fiquem devidamente registados e que possam servir de base quando, daqui a 100 anos, algum estudante de História queira fazer um trabalho de casa – isto se ainda houver a disciplina de História a ser ensinada nas eventuais escolas ou centros de ensino.

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O primeiro-ministro socialista António Costa, que é socialista desde os 14 anos – e tem agora 62 anos – estava no poder desde Novembro de 2015, apesar do seu partido não ter vencido as eleições. Conseguiu formar um governo de coligação com forças de Esquerda, ao qual a Direita apelidou de “geringonça”. De certa forma, as vontades da Esquerda, que pareciam inconciliáveis, permitiram a estabilidade do mandato de quatro anos e António Costa conseguiu depois vencer as eleições de 2019, embora sem maioria absoluta, mas com mandato para prosseguir a fórmula anterior. 

A meio do segundo governo, com uma pandemia em mãos e uma crise orçamental, o governo caiu e houve a necessidade de eleições antecipadas em Janeiro de 2022 que acabaram por dar uma maioria absoluta a António Costa. Devido a isso – e não “graças a isso”, note-se – estava previsto que seria primeiro-ministro até 2026, ano em que também estão previstas eleições presidenciais. 

Caso não tivesse havido eleições antecipadas em Janeiro de 2022, o prazo das eleições de 2019 estaria a acabar agora, em 2023. Assim, nunca se soube se António Costa, por volta deste mesmo ano de 2023, teria anunciado o desejo de não se recandidatar a um terceiro mandato, que o levaria a ser chefe de governo até 2027 e a bater o recorde de permanência no cargo que pertencia ao antigo primeiro-ministro social-democrata, Cavaco Silva – 9 anos, 11 meses e 22 dias.

O que é certo é que António Costa saiu mesmo em 2023, quatro anos depois das eleições de 2019, aquelas que estavam no calendário normal. A coincidência da saída nesta altura poderá indicar que a sua demissão até foi calculada para ocorrer por volta desta data. Sobre esta última questão, tal queda-se agora apenas no campo da especulação. Permanecem então dois factos decisivos que um dia terão de ser esclarecidos:

Facto 1: “Surpreendido” pelo comunicado 

No segundo parágrafo da comunicação ao País, depois de ter dito que “estava totalmente disposto a dedicar-me com toda a energia a cumprir o mandato até ao fim”, o primeiro-ministro António Costa afirmou: “Fui hoje surpreendido com a informação do gabinete de Imprensa da PGR (Procuradoria-Geral da República) de que já foi ou irá ser instaurado um processo contra mim”. E, por causa disso, da nota de Imprensa, é que decidiu demitir-se.

António Costa referia-se ao último parágrafo do comunicado da PGR sobre a operação de buscas e detenção de nomes próximos do primeiro-ministro, onde era dito que “no decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”.

Nem o facto de buscas à residência oficial do primeiro-ministro visando o seu chefe de Gabinete, Vítor Escária, ou a inclusão no processo do seu “melhor amigo”, Diogo Lacerda Machado, eventualmente teriam levado António Costa a apresentar a demissão. Terá sido mesmo a surpresa da nota de Imprensa que o levou a tomar a decisão de se demitir.

A História terá assim, um dia, de registar o testemunho dos assessores de Imprensa da PGR – Sandra Duarte e José António Barbosa –, já que são eles, aparentemente, os elementos úteis para o sucesso do plano que levou ao derrube do chefe de Governo a 7 de Novembro de 2023.  Sem a inclusão daquele último parágrafo, quem sabe se ainda não haveria governo de António Costa. 

Facto 2: O passeio do Presidente

Era já noite alta do dia 7 de Novembro quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, resolveu sair a pé da residência oficial de Belém. O motivo era um passeio nocturno, mas com cariz mediático, pois o presidente sabia que havia jornalistas com câmaras na mão preparados para uma transmissão em directo para o País ver. Marcelo andou às voltas com as televisões a transmitir ao vivo, dizendo que não poderia pronunciar-se sobre o que iria fazer. Mas o passeio tinha um objectivo: ir até ao monumento à morte dos Távoras, no Beco do Chão Salgado, ao lado do Palácio de Belém.

O presidente fez assim um passeio pedagógico e com um significado oculto, pois evocou a tentativa de assassinato do rei D. José, a 3 de Setembro de 1758, e o posterior julgamento e condenação da família Távora por aquilo que, na altura, se disse ser um “crime de lesa-majestade, rebelião e alta traição, contra a preciosa vida do senhor rei D. José I de saudosa memória”. 

Marcelo anunciou ao povo que aqueles que conspiram contra o rei acabam por ter o destino dos Távoras. Agora, o Presidente da República foi superiormente e antecipadamente informado pelo Supremo Tribunal da operação secreta que iria levar as buscas na residência do primeiro-ministro? Soube ainda que iria haver a inclusão de uma referência ao primeiro-ministro no último parágrafo do comunicado da PGR? 

Talvez daqui a 100 anos – ou nem tanto – se perceba o que aconteceu no golpe de Estado do passado dia 7 de Novembro. O tempo se encarregará de nos dar mais respostas, caso as perguntas não sejam esquecidas.

 Opinião Frederico Duarte de Carvalho   

    

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