Há tradições populares que, por muito que a racionalidade moderna as queira reduzir a meras superstições, guardam no seu âmago um código cultural mais profundo. Uma dessas crenças, ainda viva em várias regiões de Portugal, afirma que no dia 24 de agosto, dia de São Bartolomeu, o diabo anda à solta.
A ideia transporta-nos diretamente para a alma barroca do povo português, entre a fé e o medo, entre o sagrado e o profano, entre a procissão e a gargalhada. Cidades como Amarante e Esposende tornaram-se palco privilegiado desta convivência inquieta com o Mal. Nesse dia, a tradição diz que é preciso mergulhar nas águas para expulsar os maus espíritos e retemperar o corpo. O banho santo de Esposende, onde multidões se lançam ao mar na madrugada de 24 de agosto, ou as festas barulhentas de Amarante, com caretos e excessos, conservam essa memória. O povo enfrenta o diabo com festa, música e mergulhos, como quem diz que o Mal só se vence de peito aberto.
A figura de São Bartolomeu permanece central nesta tradição. Apóstolo mártir, diz-se que foi esquartejado vivo e a sua imagem quase sempre aparece de faca na mão, símbolo da vitória sobre o tentador. O imaginário português deu-lhe uma missão adicional. Nesse dia, o santo mantém o Mal acorrentado durante o ano inteiro, mas ao chegar 24 de agosto, o diabo consegue soltar-se por um instante e o mundo precisa de rituais para não ser devorado pelo caos.
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Muitos lugares acreditavam que neste dia não se devia casar, começar negócios ou fazer grandes mudanças, porque a instabilidade do mundo era maior. O diabo andava livre e podia enredar os incautos, desviando-os da sorte ou lançando-os em desgraça. Provérbios populares aconselhavam prudência, como se todo o Portugal estivesse suspenso, à espera que o dia passasse.
Algumas famílias levavam as crianças ao banho ritual não apenas para as proteger do diabo mas também para afastar doenças, numa mistura de superstição e medicina popular. A água de São Bartolomeu era tida como possuidora de virtudes especiais. Purificava o corpo e a alma e deixava os pequenos mais fortes para enfrentar o inverno que se aproximava, explica o professor e historiador Paulo Freitas do Amaral.
A História de Portugal nunca viveu alheia a esta convivência com o Mal. O pavor da peste, a ameaça da Inquisição e o espectro das guerras civis foram enfrentados com rituais, festas e crenças que davam ao povo um modo de lidar com o medo. A festa de São Bartolomeu é herdeira dessa pedagogia popular. O diabo não é negado, mas o riso, a festa e a fé mostram-se capazes de o desarmar.
Portugal enfrenta hoje outros diabos, menos visíveis, mais sofisticados, mas igualmente perigosos. A indiferença cívica, a corrupção instalada, a resignação de um povo habituado ao mal menor como se fosse destino. Antepassados de Amarante e Esposende deixaram-nos a lição. Quando o diabo anda à solta, não basta rezar em silêncio, é preciso coragem coletiva, mergulho purificador e ousadia para expulsar os medos e devolver ao país a força de viver sem receio do Mal.
A tradição de 24 de agosto recorda que o diabo existe, mas também ensina que o povo português, com fé rude e alegria desarmante, nunca lhe concedeu a última palavra.
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