Opinião

A morte dos pássaros

OPINIÃO | Angel Machado | 21 minutos atrás em 26-08-2025

Das poucas certezas que nos pertencem, escolho a mais implacável — a morte. 

Assusta-me? Talvez. Mas é um assombro que aceito como quem aceita a maré: inevitável, silenciosa. Quando pensamos na vida, desviamos o olhar dela. E, no entanto, até a mais triste das figuras — aquela que encontra um oásis em pleno deserto — procura sempre a água, o fôlego, o milagre da respiração.

Houve um verão em que fugi para um lugar bonito e remoto. Bonito como se fosse o primeiro dia do mundo; remoto porque não havia eletricidade. Havia o lago, o frio da água a cortar-me a pele, e um céu tão vasto que parecia querer engolir-me enquanto eu adormecia.

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De dia, caminhava por trilhos que só os pássaros conheciam, fotografava a respiração da paisagem, lia palavras que pareciam ganhar corpo naquele silêncio, escrevia como quem deixa migalhas para regressar. À noite, ficava à porta do casebre, a escutar o que a natureza sonhava. 

Antes de partir, procurei histórias de outros que já tinham vivido ali. Levei comigo apenas o necessário: comida imperecível, água, máquina fotográfica, caderno, kit de primeiros socorros, pouca roupa e um apetite feroz pelo meu pensamento primitivo.

Era uma aventura — e acabou por ser mais do que isso. Ao décimo dia, percebi que tinha regressado de um naufrágio invisível. Reciclei tudo o que restara, e as fotografias e o diário tornaram-se a minha prova de existência. Depois, conheci o homem que inventara aquele retiro chamado Desconecte. Tinha 87 anos. O corpo era um mapa de queimaduras profundas, marcas de um incêndio do qual foi o único a escapar.

O fogo levou-lhe tudo: a família, a casa, os animais, as árvores. Durante anos, carregou o peso da lembrança como quem carrega uma pedra ao peito. Até que decidiu transformá-la em convite: que outros viessem, como eu, provar o sabor agreste da solidão e assistir a natureza refeita pela mão de um homem.

Escrever é o meu instinto, só se cumpre quando se vive sob o domínio do silêncio. Plácida: assim é a lembrança desse lugar onde a vida não pedia nada além de contemplação — e onde até os pássaros, no fim, aprenderam a morrer devagar.

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