Se fosse possível viajar no tempo e assistir a qualquer momento da História, o Simpósio de 416 a.C., em Atenas, seria certamente um dos mais fascinantes. Numa sala repleta de vinho e debate intelectual, reuniam-se algumas das figuras mais brilhantes da Idade de Ouro: Aristófanes, mestre da comédia; Agatão, o grande tragediógrafo; Alcibíades, o político rebelde; Platão, anotando tudo; e, claro, Sócrates. O tema daquela noite era o amor — e estava prestes a ser redefinido.
Um a um, os convidados levantaram-se para explicar o que era, afinal, o amor. Para uns, era um deus; para outros, uma cura, uma força cósmica, ou até a procura pela “outra metade”. Mas, quando chegou a vez de Sócrates, deu-se a surpresa: em vez do discurso racional que todos aguardavam, o filósofo mais influente da história admitiu ignorância. E citou o que aprendera com outra pessoa — uma mulher.
Era Diotima de Mantineia, apresentada como sacerdotisa e mestre de Sócrates. Através da narrativa socrática, esta mulher desmontou todos os discursos anteriores e propôs uma visão revolucionária: o amor não é um sentimento, mas uma estratégia humana de alcançar a imortalidade.
PUBLICIDADE
Diotima classificava o amor como algo que nunca é completo. Amamos o que nos falta, não o que já temos. Assim, Eros não seria um deus perfeito, mas um espírito, um intermediário entre o mundo humano e o divino.
Para explicar esta ideia, Diotima contou o mito do nascimento do Amor: filho de Penia (Pobreza) e Poros (Recurso). Da mãe herdou a carência, a incompletude; do pai, a astúcia e a capacidade de procurar o que lhe falta.
O amor, dizia ela, não é passivo — é uma manobra da nossa necessidade, a força que nos impele a conquistar o que desejamos.
E o que realmente desejamos? Deixar algo para além da nossa finitude.
Segundo Diotima, todos os seres humanos estão “grávidos” no corpo e na alma: ansiamos gerar algo belo que nos sobreviva — filhos, obras, ideias, arte.
Diotima descreveu então o percurso que conduz ao amor mais elevado, uma espécie de escada espiritual que poucos conseguem escalar até ao fim:
- Primeiro degrau: amar um corpo bonito — a paixão inicial, a obsessão pela pessoa concreta.
- Segundo degrau: perceber que a beleza de um corpo existe também noutros — apreciar a beleza física em geral.
- Terceiro degrau: valorizar mais a beleza da alma do que a aparência.
- Quarto degrau: amar as instituições, leis e estruturas que moldam as almas e as sociedades.
- Quinto degrau: amar o conhecimento, que molda as instituições.
- O ápice: contemplar a Beleza em si, absoluta, eterna — a fonte de toda a beleza no mundo.
Do encontro entre Sócrates e a sua enigmática mestra nasceria o conceito que hoje conhecemos como “amor platónico”, ainda que, no uso moderno, o termo esteja profundamente deturpado. Para Diotima, tratava-se de um amor que ultrapassa o corpo e procura unir-se ao próprio universo — uma visão que viria a influenciar pensadores como Freud milhares de anos depois.
Apesar de a sua importância ser incontornável, continua a ser incerto se Diotima existiu realmente.
O seu nome significa “a que honra Zeus”, e a cidade de onde provém liga-se à palavra grega mantis, profeta — detalhes que fizeram muitos estudiosos suspeitarem que fosse apenas uma figura literária criada para servir o argumento filosófico.
Mas há razões para duvidar desse ceticismo. Todos os outros presentes no Simpósio — Aristófanes, Agatão, Alcibíades — são figuras históricas reais. Só ela seria inventada? Sócrates afirma até que Diotima teria atrasado a Peste de Atenas em dez anos, um detalhe improvável de surgir num personagem fictício, pode ler-se na ZME Science.
Acrescentam-se ainda vestígios arqueológicos: no Museu Arqueológico Nacional de Atenas existe um relevo do século V a.C. que representa uma sacerdotisa de Mantineia envolvida em práticas de adivinhação — prova de que mulheres de grande prestígio religioso existiam na época e naquele local.
Outra hipótese é que Diotima fosse um nome codificado para alguém real e controverso, como Aspásia de Mileto, companheira de Péricles e figura de enorme influência intelectual — demasiado polémica, talvez, para ser mencionada diretamente num diálogo filosófico.
Quer tenha sido real ou não, a influência de Diotima é inegável. Foi ela quem ensinou que amamos porque tememos desaparecer, porque procuramos criar algo que permaneça quando nós já não estivermos. O amor, para Diotima, não era a conquista de outra pessoa — mas a busca da Beleza em estado puro.
Numa sala cheia de homens a proclamarem certezas, foi a voz de uma mulher — talvez histórica, talvez mítica — que deixou a marca mais profunda na filosofia ocidental. A voz de Diotima, a sacerdotisa que ensinou a Sócrates o que realmente significa amar.
PUBLICIDADE
PUBLICIDADE
