Há alimentos que escondem histórias. A farinheira, esse enchido alentejano de cor âmbar e sabor adocicado, é uma das mais engenhosas criações da mesa portuguesa e, ao mesmo tempo, um testemunho silencioso da astúcia de um povo perseguido. Por trás da sua aparência inocente, feita de pão, gordura e especiarias, esconde-se o medo ancestral da Inquisição e a necessidade de sobreviver disfarçando a fé.
No século XVI, quando o fogo da intolerância varria Portugal, os judeus convertidos, os chamados cristãos-novos, sabiam que bastava um olhar sobre o fumeiro para uma denúncia nascer. A carne de porco era o símbolo do bom cristão. Quem não a comia, quem não a pendurava no varal das cozinhas, arriscava a fogueira. A solução foi tão simples quanto genial: criar um enchido que parecesse de porco, mas não o fosse.
Assim nasceu a farinheira, mistura de pão, azeite, farinha, alho e colorau, cuja cor alaranjada imitava a do chouriço. À distância, quem olhasse para a lareira veria fumeiros iguais aos dos vizinhos. Era o disfarce perfeito. Por dentro, porém, não havia sangue nem carne, apenas o engenho de uma comunidade que, privada da sua fé pública, fez da cozinha um território de resistência.
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As regiões do Alentejo, Beira Interior e Trás-os-Montes foram as que mais conservaram essa tradição. Nas vilas de Castelo de Vide, Marvão, Belmonte e Trancoso, onde as judiarias deixaram marcas visíveis, a farinheira tornou-se presença habitual nas feiras e nas mesas. Era o símbolo da integração aparente e da fé escondida. Cada casa, cada fumeiro, repetia o gesto da sobrevivência.
Com o tempo, o segredo perdeu-se e o paladar ficou. O que começou como subterfúgio tornou-se tradição, passando da necessidade à identidade. Hoje, quando a farinheira repousa sobre o prato, grelhada, frita ou sobre o ovo escalfado de um bacalhau à Brás reinventado, poucos recordam a sua origem de silêncio e medo.
Mas talvez devêssemos lembrar. Porque cada fatia de farinheira é também um fragmento da história dos cristãos-novos, daqueles que disfarçaram o seu destino dentro de uma tripa de farinha. E se a cozinha é, como dizia Eça, a mais sincera forma de poesia popular, então a farinheira é o poema mais engenhoso que a perseguição inquisitorial inspirou em Portugal.
OPINIÃO | PAULO FREITAS DO AMARAL – PROFESSOR, HISTORIADOR E AUTOR
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