Opinião

A estrangeira

OPINIÃO | Angel Machado | 3 meses atrás em 25-01-2024

A dor de Alice não foi sentida, apenas, pelo pé quebrado. Ela sobreviveu a trinta e oito dias na cama de um hospital público, atendida pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) e por dias, esquecida numa enfermaria oncológica, até descobrirem que ela estava na ortopedia errada. Vinte quatro horas nas urgências e setecentos e quarenta e quatro horas até ser operada. “Mas, Alice é jovem, não teve fratura exposta, é estrangeira”.

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Hipócrates foi um médico grego do período clássico e é considerado uma das figuras mais marcantes da história da medicina. Em 1983 foi adotado mundialmente o juramento solene de Hipócrates, para os futuros médicos no momento da admissão como Membros da Profissão Médica: “prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.”

As faculdades formam todos os anos médicos e enfermeiros, supostamente, aptos a exercerem a profissão – com humanidade -, sei que muitos cumprem o juramento. O caso é de alguém que sobreviveu a trinta e oito dias na cama de uma enfermaria, muitas vezes sem comida num hospital público. A dor física transformou-se em dor mental, e a reparação é imensurável. 

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Sabemos que ganham relativamente pouco pelas horas que trabalham e têm uma missão difícil: salvar vidas. Durante o internamento de Alice, foi declarada greve geral dos enfermeiros e da copa (no Natal e no Ano Novo). O serviço “mínimo” foi estabelecido, e o culpado é o governo? Defendo o direito à greve, mas no Natal e no Ano Novo?  A culpa parece ser de quem ficou doente e precisou de um hospital. 

“A greve da copa foi uma grande provação. Embora, a fome fosse secundária, naquele ambiente frio. Eu tive medo de não sair de lá” – confessou Alice.

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Há possíveis causas para estar doente, partir um pé ou ir parar a uma enfermaria errada: crise global, guerra, alteração climática, pagar muitos impostos, baixo salários e a humanidade dos sindicatos.  

Segundo a Constituição Portuguesa Artigo 9.º alínea d) – são tarefas fundamentais do Estado: d) “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;” A Constituição é um documento muito interessante e que devia ser jurada para o exercício de serviço público.

Como é possível conter a indignação de um cidadão comum? Somos um número, mas não admitimos que esse número invalide a nossa história de vida. Há sempre algum lugar no mundo onde nos sentimos estrangeiros. 

Ninguém sabe o que se passa dentro de um hospital, até estar lá; e ninguém sabe, também, o que sente um profissional de saúde: médico, enfermeiro e outros. Será que há critérios diferenciados? Ouve-se falar de privilégios, de bajulações, da cunha e do jeitinho. 

A dor, o sofrimento e a solidão de Alice deve-nos fazer pensar. Para evitar incómodos “maiores” não se pode ficar doente. Bertolt Brecht, sabia que “apenas quando somos instruídos pela realidade a podemos mudar”. Para se sentir estrageiro basta que ignorem quem somos e, principalmente, se faltar humanidade quando estamos em sofrimento.

Opinião | Angel Machado – Jornalista

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