Imagine não sentir crises de enxaqueca, cólicas intensas ou mesmo as consequências de um joelho ralado. É isso que acontece a quem convive com uma condição raríssima chamada Insensibilidade Congénita à Dor com Anidrose (CIPA), causada por uma mutação genética que afeta cerca de uma em cada 125 milhões de pessoas.
O que pode parecer um poder digno de super-herói é, na realidade, uma condição médica grave. A dor é um mecanismo essencial do corpo humano, detetado por neurónios chamados nociceptores, que identificam estímulos potencialmente perigosos – calor, frio, pressão – e geram sinais eléctricos interpretados pelo cérebro. Graças a estas células, afastamos a mão de uma panela quente ou sentimos ardência numa ferida, indicando que a área precisa de cuidados.
O desenvolvimento correto dos nociceptores depende de uma proteína chamada fator de crescimento neural, que se liga a receptores TrkA presentes nos neurónios. O gene NTRK1 codifica estes receptores. Em pessoas com CIPA, uma mutação no NTRK1 impede esta ligação, impedindo o desenvolvimento adequado dos neurónios responsáveis pela dor. É como se alguém bloqueasse a fechadura de uma porta, impedindo que a chave entrasse: o resultado é imunidade à dor.
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Embora possa parecer vantajoso, a falta de dor representa sérios riscos. “A dor é um importante mecanismo de defesa do corpo. Serve como alerta de que algo não está bem”, explica Deborah Schechtman, do Instituto de Química da USP.
Pessoas com CIPA precisam monitorizar constantemente o corpo para identificar cortes e hematomas, comuns em áreas como língua, dedos e pés. A incapacidade de detetar calor impede a transpiração, dificultando a autorregulação da temperatura corporal. Feridas ou deformidades podem evoluir para casos graves, exigindo cirurgias severas, incluindo amputações, e a expectativa de vida destes pacientes é frequentemente reduzida.
Apesar dos riscos, a CIPA inspira avanços médicos. Investigadores brasileiros estudam formas de aliviar a dor com base no mecanismo TrkA. A equipa analisou dezenas de casos e descobriu que algumas mutações bloqueiam apenas a via de sinalização da dor, sem afetar outras funções neurais, como consta no Super Interessante.
A partir desta descoberta, criaram a molécula TAT-pQYP, capaz de reproduzir o efeito da mutação. Testes em camundongos mostraram uma redução de até 40% na resposta à dor.
Embora ainda inicial, esta investigação abre caminho para novos analgésicos, particularmente para a dor crónica, que afeta cerca de um terço da população mundial. Atualmente, os medicamentos mais eficazes são os opioides, conhecidos pelo elevado risco de dependência.
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