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José Ralha é o curador deste “museu” centenário em Coimbra

Angel Machado | 4 horas atrás em 20-08-2025

Conhecer a Baixa de Coimbra exige tempo e um espírito curioso, capaz de descobrir lugares e pessoas que são, em si mesmas, a própria história. Poderá um comércio ser eterno? Para muitos clientes da Tasquinha Zé Ralha, sim.

Na porta número 20 da Rua Direita encontra-se o “museu” do senhor José. O espaço é pequeno, mas grandioso pela forma como guarda memórias e tradições que resistem à modernidade. À frente da tasquinha está José Ralha, que há 18 anos mantém viva uma das casas mais antigas da cidade naquela rua, conhecida pelos cafés servidos e, sobretudo, pela sua ligação à identidade cultural de Coimbra.

Ralha é um verdadeiro colecionador de memórias. Cumpriu serviço militar, lutou pelo país, constituiu família e, em 2025, aos 76 anos, vive com uma reforma de 387 euros. Um valor reduzido que, paradoxalmente, o ensinou a resistir e a manter o café. “A dignidade não se compra. Olha-se ao espelho e segue-se em frente. A maior pobreza de um ser humano é não ter alma”, afirma.

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Nas paredes da tasca estão expostas cerca de 150 fotografias antigas de Coimbra, muitas oferecidas por amigos, outras resgatadas de jornais e revistas. A maioria data dos anos 40, quando os elétricos ainda circulavam. Imagens que mostram a construção da Ponte de Santa Clara, as cheias do Mondego, rebanhos de ovelhas a cruzar a cidade, os tróleis e os elétricos.

“Era uma cidade diferente, mais bonita, apesar das dificuldades”, recorda. Para ele, os transportes antigos simbolizavam uma Coimbra com mais charme: “Se ainda existissem elétricos, Coimbra seria uma maravilha. Mas acabaram com tudo em vez de conservar.”

O espaço é, ao mesmo tempo, tasca e museu — uma resistência em plena era do progresso. Com a chegada do Metrobus e a mudança de proprietário do prédio, José Ralha acredita que deveria haver consenso para preservar a casa. “É um cenário de memórias que marca a vida de quem passa aqui. Todos os dias dezenas de pessoas param para fotografar. O turismo garante outra perspetiva ao café, mas a Câmara de Coimbra não olha para isto. Deviam preservar, porque esta casa é um dos símbolos da cidade.”

A história da tasca remonta a mais de 100 anos e, apesar das remodelações, mantém o ambiente típico das tabernas antigas. Atrai visitantes de várias regiões do país e até do estrangeiro. “Todos os anos tenho grupos do Porto que marcam para vir cá. Gostam do ambiente, da tradição e da conversa”, conta José, orgulhoso por ter recuperado o espaço quando o recebeu praticamente vazio.

Apesar da ligação afetiva de muitos clientes, o futuro é incerto. O comerciante teme que interesses económicos coloquem fim ao negócio. “Tenho a impressão de que querem acabar com isto. Eu não posso fazer nada. Se tiver de sair, saio. Mas é triste, porque esta casa é parte da história de Coimbra.”

Entre memórias pessoais e tradições boémias da cidade estudantil, Ralha recorda uma curiosidade ligada ao loureiro, símbolo das tabernas de antigamente. “À porta, havia sempre um garrafão e um ramo de louro. Os homens, quando iam embora, punham uma folha na boca para disfarçar o cheiro do vinho. Assim, as esposas não percebiam.”

Com humor, nostalgia e crítica, o testemunho de José Ralha reflete a vulnerabilidade de mais um comerciante da Baixa, desprotegido, mas ainda esperançoso de que as autoridades possam decidir pela preservação do espaço, talvez, classificando-o de interesse municipal. Emocionado, sublinha a tensão da incerteza. A vontade de guardar o passado, sem esquecer as virtudes do presente – depende agora da decisão política.

Independentemente dos interesses urbanos e institucionais, a tasca centenária continua de portas abertas — para contemplar uma cidade que já não existe, mas que sobrevive nas fotografias espalhadas pelas paredes. Um espaço onde se bebe o café tirado por Zé Ralha e, sobretudo, se preserva a memória de uma Coimbra que as novas gerações não conheceram.

Cem anos bastam para resistir? A memória é o que fica quando as emoções atravessam a espessura da arquitetura e se colam à vida.

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