Os dias comuns, talvez, sejam os mais extraordinários. Pouco importa se é segunda ou quinta, manhã ou tarde, se faz sol ou chove — é num dia comum que existimos, com ou sem memória. A rotina, para mim, é por vezes um tédio suportável, mas, quando chego ao fim do dia e tenho uma história para contar, a vida faz mais sentido.
Eu própria sou a construção de muitas histórias. Algumas dizem como fui concebida, ao porquê do meu nome e, ainda, a outras possibilidades que desconheço. Mas baseio-me naquilo que gostaria que soubessem.
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Nessa manhã, fui passear o meu cão, o Elvis, e depois correr.
Comecei nos Olivais, passei por Celas, cruzei-me com a Maternidade Bissaya Barreto, na Rua Augusta, segui pela Antero de Quental e desci a Sá Bandeira até à Rua da Sofia. Não escolhi esse percurso por ser bonito ou conhecido, escolhi-o porque queria ver a cidade a acordar. A corrida serviu para perceber o movimento da manhã: algumas portas ainda fechadas e pessoas a caminharem sem pressa.
Fui à Baixa, admirar o que já conheço — mas enxergar por outro ângulo. Sempre fui assim, inquieta com a realidade e uma registadora de detalhes que poucos percebem. Essa é a minha forma de abastecer a escrita. Passo grande parte do meu tempo a trabalhar. Mas, mesmo assim, não me afasto da cidade.
Trabalho também quando a observo, ou me sento num café do centro histórico e troco palavras com estranhos. São nesses momentos que volto a sentir a vida a passar por mim com delicadeza. É esse olhar que cultivo, que capto a beleza que levo para escrita.
Quis voltar para casa de autocarro. Na paragem, as linhas 4, 103 e 7 levam-me ao destino. Apanhei o 4. “Bom dia” ao motorista — que, por acaso, me respondeu com um sorriso. Um gesto simples. As pessoas não imaginam o poder de um sorriso, sabemos que não resolve nada, mas oferece qualquer coisa — uma trégua silenciosa.
Havia um lugar livre e sentei-me ao lado de uma jovem senhora que levava nos braços um embrulho. Sou discreta, mas, reparo em tudo. O autocarro seguiu o seu caminho, e ela desceu na Rua António José de Almeida. Um senhor aproximou-se e ajudou-a a colocar o carrinho no passeio. Logo percebi que aquele embrulho era, de facto, um bebé. Continuei a observá-la já fora do autocarro, quando o senhor lhe perguntou:
— Quanto tempo tem?
Ela respondeu:
— Cinco dias.
Cinco dias de existência, num mundo já tão gasto. Cinco dias a respirar e a fazer-se presente noutros mundos — mãe, pai, família. Quem leva aquele “embrulho” ao colo? Quem será aquele ser pequenino, envolto numa manta, que esteve por instantes no mesmo espaço e tempo que eu — sem que eu soubesse que o mundo inteiro estava ali, e a poesia, ao meu lado, disfarçada de vida a começar? Cinco dias de mundo, de respiração, de silêncio, no peito que amamenta e ama.
OPINIÃO | ANGEL MACHADO – JORNALISTA
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