Portugal não abateu 250 milhões de animais pelo método muçulmano Halal em 2023, como afirmaram os deputados do Chega Pedro dos Santos Frazão e Cristina Rodrigues.
Nesse ano, o número real foi de 7,06 milhões, segundo dados da Direção Geral de Veterinária (DGAV).
+++ Alegações: “250 milhões de animais abatidos pelo método islâmico em 2023” e “12 milhões entre 2017 e 2021” +++
PUBLICIDADE
Em abril, a propósito do debate para as legislativas entre o Chega e o PAN, o vice-presidente do Chega, Pedro Frazão, reiterou uma denúncia sua e de outros deputados deste partido, segundo a qual “só no ano de 2023, segundo números oficiais, foram abatidos a sangue frio pelo método muçulmano halal 250 milhões de animais em Portugal” e desafiou o Jornal Polígrafo a desmentir estas afirmações (https://archive.ph/ResCg).
Com a publicação na rede social X, o também médico-veterinário Pedro Frazão incluiu a sua denúncia no mesmo sentido, publicada, no final de janeiro, em várias redes sociais, na qual afirmou em texto e em vídeo que “nos últimos anos, Portugal tem assistido a uma explosão do abate halal, um método que desrespeita o bem-estar animal e vai contra os valores da nossa sociedade” (https://archive.ph/3MV0p).
A 30 de janeiro, num ‘tweet’, acompanhado por um vídeo com declarações do próprio e da deputada Cristina Rodrigues, Pedro Frazão escreveu que Portugal terá passado “de 12 milhões de animais abatidos pelo método islâmico em cinco anos (2017-2021) para uns inacreditáveis 250 milhões apenas em 2023”, valor que entende ser “um ataque brutal aos nossos princípios”.
No vídeo com dezenas de milhares de visualizações, também partilhado pela deputada do Chega (https://archive.ph/BSyQf) Cristina Rodrigues, insistiu na mesma afirmação de que “entre 2017 e 2021 houve um total de 12 milhões de animais abatidos com abate religioso” e “atualmente, só no ano de 2023, houve 250 milhões de animais abatidos para consumo humano através desse método religioso”.
+++ Factos: Em 2023 foram abatidos 7,06 milhões de animais pelo método halal, menos de 3% do alegado pelos deputados +++
Apesar de as estatísticas públicas não discriminarem quantos animais são abatidos segundo os ritos religiosos halal (muçulmano) e kosher (judaico), a informação atualmente disponível na página da Direção Geral de Veterinária (DGAV) permite perceber que 255 milhões é o número total de animais abatidos ou preparados para consumo humano a nível nacional, em 2023 (https://archive.ph/EWOfT).
Para verificar a alegação dos deputados do Chega, a Lusa pediu informação discriminada a este organismo público, tendo recebido dados estatísticos pormenorizados desde 2020.
Esses dados e as respostas obtidas permitem perceber que “o abate religioso corresponde apenas a uma fração muito reduzida da produção nacional, claramente muito aquém dos 250 milhões referidos publicamente”, explica a diretora geral da DGAV.
De acordo com Susana Guedes Pombo, “em 2023, o número de animais abatidos segundo o rito religioso halal foi de 7.059.669 animais [99,84% aves], o equivalente a 2,86% do total de animais abatidos” nas categorias aves, bovinos, caprinos e ovinos, nas quais há abate halal.
Esta percentagem desce para 2,77% do total de animais abatidos em 2023 se forem consideradas todas as categorias, incluindo coelhos, suínos, caça selvagem e animais abatidos no âmbito de abate sanitário ou de emergência, situações ou espécies sem abate halal, cujo somatório global ascende a 255.219.650 animais abatidos nesse ano.
Os deputados alegam também que “entre 2017 e 2021 houve um total de 12 milhões de animais abatidos com abate religioso”, mas só entre 2020 e 2021 foi praticamente atingido esse valor com 11.928.454 animais abatidos por esta via.
No entanto, registou-se de facto um aumento de quase 130% neste tipo de abates Halal, tendo passado de 4.097.267 animais abatidos em 2020, para 9.410.000 em 2024, uma subida de 1,79% para 3,70% no peso do abate Halal nas categorias aves, bovinos, caprinos e ovinos.
Os dados oficiais da DGAV também permitem concluir que o abate segundo o rito religioso halal representa apenas 3,06% (36,6 milhões) dos mais de 1.198 milhões de animais abatidos entre 2020 e 2024, contas relativas apenas às categorias em que há abate Halal, pelo que a percentagem face ao valor global é inferior.
Já o abate segundo o rito kosher abrangeu 51.556 animais, em 2024, apenas 0,02% do total nesse primeiro ano em que esta prática judaica começou a ser efetuada em Portugal.
+++ Alegação: “Os animais são degolados a sangue frio” +++
No tweet de 30 de janeiro, Pedro Frazão afirma que “Portugal não pode continuar a permitir que estas práticas bárbaras se sobreponham às leis de bem-estar dos animais” e, no vídeo que acompanha a publicação, a deputada Cristina Rodrigues reforça a ideia de que o “aumento exponencial de imigração islâmica tem impacto também nos animais, para quem os maus-tratos também têm aumentado”.
No vídeo, Pedro Frazão descreve que “esse método religioso Halal é absolutamente diferente do método de abate mais humano que praticamos na Europa porque enquanto o nosso método de abate provoca uma dessensibilização do animal antes de ele ser morto, no método halal isso não acontece e os animais são degolados a sangue frio”, prática que também apelida de “grotesca”.
+++ Factos: Abate religioso respeita regras de bem-estar animal +++
Segundo a doutrina islâmica, “halal” é o termo aplicado aos alimentos “lícitos” ou “permitidos” por Alá e que excluem “o sangue, a carne de suíno e tudo o que for sacrificado sob invocação de outro nome que não seja o de Deus”, explica o Instituto Halal de Portugal (IHP). Os alimentos que não respeitam estes princípios são considerados “haram”, ou seja, não são permitidos exceto em situações de risco de vida (https://archive.ph/e1jgv).
Entre outras especificidades, os animais para consumo halal devem ser sangrados no momento do abate, que é sempre feito de forma manual através da degola – corte, num movimento único, da traqueia, esófago, carótidas e jugular.
Em Portugal, “o abate segundo rito religioso está sujeito a autorização especial da DGAV, uma vez que constitui uma derrogação prevista no n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento (CE) n.º 1099/2009, de 24 de setembro, relativo à proteção dos animais no momento da occisão e abate.”
Este enquadramento legal permite o abate com ou sem atordoamento, mas “os operadores devem garantir o cumprimento integral da legislação aplicável, sendo a autorização concedida apenas após avaliação completa do procedimento, das infraestruturas e dos equipamentos disponíveis”, conforme explicado no Esclarecimento Técnico n.º 10/DGAV/2024, que impõe requisitos de bem-estar animal (https://archive.ph/GX5Cw).
No entanto, de acordo com a informação fornecida pela DGAV, não é verdade que no abate halal não haja dessensibilização dos animais. Na verdade, nos últimos cinco anos, entre 100% (2020) e 99,52% (2024) dos abates halal foram realizados com algum tipo de atordoamento. Em 2023, por exemplo, 99,9% dos animais abatidos segundo este rito religioso foram atordoados previamente.
Além da legislação europeia e nacional nesta matéria, desde 2018, Portugal dispõe de uma norma do Instituto Português de Qualidade (IPQ) que permite certificar este tipo de produtos, nomeadamente através do Instituto Halal de Portugal (https://www.ipq.pt/loja/normas/norma/80622309-2ad5-ec11-a7b5-0022489db0cd/ mediante registo e pagamento).
A NP 4559:2018 prevê todos os requisitos para a produção, armazenagem e expedição de carne fresca halal, incluindo as condições para abate com e sem atordoamento prévio.
No caso do abate com atordoamento, este não deve provocar a morte do animal, pelo que se designa de atordoamento simples ou reversível. O objetivo é garantir “um estado de perda de consciência adequado, mas que não provoque a morte do animal antes da sangria”.
Os métodos previstos nesta norma são o atordoamento elétrico na cabeça (coelhos, bovinos, ovinos e caprinos) ou no corpo (aves) e o recurso a pistola de êmbolo retrátil perfurante (bovinos, ovinos e caprinos), os mesmos previstos no Regulamento (CE) n.º 1099/2009. A utilização de pistola de êmbolo retrátil não perfurante é um método não utilizado regularmente e destina-se apenas a ruminantes com menos de 10 kg.
Para o CEO do IHP, uma instituição privada sem fins lucrativos que certifica este tipo de abate, “é possível afirmar categoricamente que a legislação portuguesa e europeia, nomeadamente no que respeita ao bem-estar animal, está plenamente integrada nos padrões Halal” adotados pelo IHP, pelo que “é incorreta a alegação de que os animais submetidos ao abate Halal em Portugal recebem um tratamento distinto daquele aplicado no abate convencional.”
+++ Contraditório +++
Na quinta-feira, o Lusa Verifica questionou, por e-mail, os deputados Pedro Frazão e Cristina Rodrigues, sobre a origem dos “dados oficiais” que partilharam nas redes sociais, explicando que diferem dos números oficiais fornecidos pela DGAV, mas não obteve resposta até à publicação desta verificação de factos.
+++ Conclusão da Lusa Verifica: FALSO +++
A verificação de factos da Lusa Verifica conclui que é falso que o número de animais abatidos pelo método halal em Portugal tenha aumentado de 12 milhões, entre 2017 e 2021, para 250 milhões, só em 2023, e que seja realizado sem qualquer tipo de dessensibilização.
Não só o valor atribuído a 2023 é cerca de 35 vezes superior aos reais 7,06 milhões de animais abatidos, como mais de 99,9% desses abates halal foram realizados com atordoamento prévio, percentagem que nunca baixou dos 99,5% nos últimos cinco anos.
PUBLICIDADE
PUBLICIDADE