Região
Tema dos abusos divide devotos a caminho de Fátima para última peregrinação do ano
A pouco mais de 24 horas do início da última grande peregrinação do ano ao Santuário de Fátima, poucos percorriam a pé as estradas que conduzem à Cova da Iria, o que era visível, também, nos postos de assistência.
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Em Colmeias, Leiria, ao fim da manhã de segunda-feira, não havia “clientes” no centro de apoio do Movimento da Mensagem de Fátima (MMF) e apenas alguns voluntários se preparavam para a missa que iria ser celebrada pelo padre Sérgio Fernandes.
Faustino Ferreira, há 34 anos no MMF, assume a responsabilidade pelos postos do movimento e aponta uma explicação para o escasso número de fiéis nas estradas: “o peregrino agora vem todos os dias [a Fátima]. O peregrino [de agora] não é como o das antigas peregrinações, que vinha nos meses de maio, agosto e outubro. Hoje, praticamente, é todos os fins de semana”.
“Neste posto, aqui nas Colmeias, temos grupos todos os fins de semana: 10, 15, 20 ou 30 peregrinos, para ficarem”, assegura, adiantando, que, por informações do assistente nacional do movimento, para esta peregrinação aniversária de outubro “se está a verificar, desde o norte a sul, muito menos peregrinos nestas horas perto de [dias] 12 ou 13”.
Segundo Faustino Ferreira, “a epidemia também ainda não favorece muito estas caminhadas. As pessoas não gostam de vir com muita gente junta, ainda estão com medo que se pegue a covid e as constipações que no dia a dia acontecem”.
O que, para si, não se coloca, é que o afluxo de peregrinos seja prejudicado pelas notícias sobre casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica e a suspeita de encobrimento que recaia sobre alguns bispos.
“Como cristão que sou e como vejo as notícias e as perguntas que fazem sobre [o assunto], para mim não têm sentido. Houve sempre e haverá [abusos], mesmo até nas próprias famílias e, depois, vai tudo ter para cima da Igreja”, lamenta Faustino Ferreira, acrescentando: “o peregrino, se vem a Fátima, vem com amor. Para quê? Para agradecer a Nossa Senhora”.
Já Maria da Conceição, de 71 anos, de Ílhavo, que há três dias comanda um grupo de dezena e meia de peregrinos em direção a Fátima, tem opinião diferente.
“Eu acho que as pessoas que têm a verdadeira fé não se afastam. Acho que cada um é responsável por aquilo que faz. Os padres são homens como outros quaisquer e eles é que têm de sentir no coração deles o mal que estão a fazer… porque são crianças [as vítimas]”, diz esta católica que, questionando-se a si própria sobre se os clérigos terão de ser castigados pelos abusos cometidos, é perentória: “terão, eu estou de acordo que assim seja”.
Quanto ao afastamento de pessoas da Igreja por causa destes casos, também não tem dúvidas: “Há um afastamento, sim. Isso há. Há pessoas que começam a afastar-se. E é como digo, porque se calhar não têm aquela fé forte no coração, em Deus e na Nossa Senhora… Se o meu vizinho é ladrão, eu não tenho culpa, não é?”
“Portanto, eles [membros do clero] fizeram as asneiras, mas eu tenho fé, tenho de continuar a viver a minha fé, mas que [a situação] desvia pessoas da Igreja, isso desvia, sim senhor, isso é de certeza absoluta. Não é o meu caso”, afirma esta mulher que há 33 anos percorre a pé o caminho entre Ílhavo e a Cova da Iria, sempre em outubro, “pela fé”.
No mesmo grupo, Gonçalo Teixeira, de 23 anos, a fazer a primeira peregrinação, mostra alguma incomodidade com a abordagem ao tema dos abusos.
“Esse é um tema que não acho que me diga tanto respeito, pelo que, normalmente, não dou muito a minha opinião sobre isso”, diz, adiantando, quando questionado se o assunto não lhe dizia respeito enquanto católico, que “cada um vê a religião da sua forma e, nesse aspeto, esses abusos não são todos os casos, são muitas vezes casos específicos de algumas pessoas, por isso também não se pode generalizar”.
De Valongo, o empresário António Pinto, de 61 anos, estava a terminar a sua 50.ª peregrinação a pé a Fátima.
Depois de ter pedido à Virgem “o impossível dos impossíveis”, por três vezes – primeiro a cura da sua mulher de uma doença considerada incurável, depois o sonho de ter dois filhos, o que estava fora de questão, devido aos problemas de saúde da mulher – e por três vezes ter visto satisfeitos os pedidos, agora pede pelos outros.
“Eu, todos os anos, depois daqueles pedidos, não venho pedir nada para mim. Venho pedir para os outros, para os pobres, para aqueles que não têm o pão de cada dia. Cada ano tenho uma missão. Mas este ano, venho com muito amor pedir que a nossa mãe de Deus ilumine os governantes russos e pedir pelo povo russo, que também está a passar maus momentos, para que a nossa mãe ilumine Vladimir Putin e que lhe dê bons pensamentos para acabar com esta guerra muito rapidamente, porque todos nós estamos a sofrer com esta guerra”, afirma.
Já sobre a questão dos abusos, diz que tem “muito para dizer sobre o assunto”, mas “não agora”. “Isto é muito grave, é gravíssimo. A luz da Igreja está a apagar-se”.
Depois, retoma o caminho, com uma imagem de Nossa Senhora e outra de João Paulo II nos braços.
Metros à frente, visivelmente emocionado ao abordar a promessa que fez para cumprir os quilómetros que separam Leça da Palmeira de Fátima, Zeferino Gonçalves, de 60 anos – acompanhado do cunhado, de 69 -, assegura: “Sou um verdadeiro devoto de Nossa Senhora de Fátima e pronto”.
Não fugindo ao assunto do momento, Zeferino considera que “é inconcebível que haja atos dessa natureza, adultos a molestar crianças perfeitamente inocentes. É um crime horrendo. Devia haver mão pesada para esses crimes. Mão mesmo muito pesada”.
“Sejam os prevaricadores da Igreja, seja um civil comum, eu acho que para esses crimes devia ser realmente uma mão muito pesada”, acrescenta.
Para este nortenho, “as cúpulas da Igreja têm neste momento uma grande responsabilidade. As pessoas que lideram devem estar mais atentas e, ao mais pequenino sinal de fumo, deve-se averiguar intransigentemente até conseguirem debelar o problema”.
Milhares de fiéis são esperados no Santuário de Fátima para a peregrinação aniversária de outubro, nos dias 12 e 13, presidida pelo bispo da diocese de Leiria-Fátima, José Ornelas, também presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que nos últimos dias tem estado em foco devido à divulgação, pelo jornal Público, de que está a ser investigado pelo Ministério Público por eventual “comparticipação em encobrimento” de casos de abusos sexuais sobre crianças numa cidade da província moçambicana da Zambézia e de outra por um caso alegadamente ocorrido na arquidiocese de Braga.
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