Coimbra

População desconhece marcas que dão o zero hidrográfico nas cidades portuárias

Notícias de Coimbra | 4 anos atrás em 25-07-2020

As marcas de nivelamento usadas para medir altitudes a nível nacional, mas que em cidades e vilas portuárias também indicam o zero hidrográfico, uma referência utilizada para a previsão de altura das marés, são em geral desconhecidas da população.

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O capitão do Porto da Figueira da Foz, João Lourenço e o presidente da Câmara da Figueira da Foz, Carlos Monteiro, junto de uma das marcas de nivelamento usadas. Autor: PAULO NOVAIS Crédito: LUSA

A Rede Nacional de Nivelamento Geométrico de Alta Precisão, um sistema oficial criado a partir de 1938 que permite aferir a altitude em qualquer ponto do país, utiliza no total mais de 4.500 localizações estáticas, quase três centenas das quais são marcas de nivelamento principal.

Nas localidades portuárias, em pelo menos 14 dos 19 portos do continente e ilhas, as marcas de nivelamento principal (NP) – uma inscrição metálica quadrada, que não chega a ter 10 centímetros de lado, chumbada na pedra em igrejas, monumentos, estações de comboio ou autarquias – indicam, cumulativamente, o zero hidrográfico.

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Este é um referencial usado para a previsão das marés e para a segurança da navegação marítima, através das profundidades indicadas nas cartas náuticas, e que em Portugal é definido “pelo nível da mais baixa das baixas-marés registadas num determinado período, normalmente 18,6 anos”, refere a Direção-Geral do Território na sua página de internet.

As marcas de nivelamento principal situam-se, na sua globalidade, em locais imutáveis ao longo do tempo. Em Óbidos, distrito de Leiria, a NP 222 está localizada no Paço de São João Batista, junto à porta da vila, confirma a arqueóloga do município, Dina Matias.

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Ali, o zero hidrográfico situa-se, de acordo com informação do Instituto Hidrográfico (IH) da Marinha, 58,4 metros abaixo daquela marca, sendo referência para o porto de Peniche, localizado a 18 quilómetros (km) em linha reta.

Arlindo Nunes, taxista há 19 anos, na praça fronteira ao edifício, onde sempre viu a marca, associa-a a “qualquer coisa relacionada com o edifício, uma data talvez”.

Ou então “talvez queria dizer ‘nacional português'”, atira o taxista, quando informado de que a inscrição NP 222 não está relacionada com os passos que se cumprem nas procissões religiosas, sendo antes uma espécie de número de série (a primeira marca de nivelamento principal colocada em Cascais, na porta principal da Cidadela, em 1938, tem o número um).

No mesmo degrau, ao lado da marca, senta-se diariamente um grupo de reformados, a ver passar os visitantes e a conversar entre si, porque com os turistas “nem conversas nem fotos, que eles não gostam”, explica o taxista.

Com jornalistas “menos ainda”, adverte um deles, escusando revelar o nome de quem, “nascido e criado em Óbidos há 75 anos”, é “desde sempre” conhecedor da marca, cujo significado atribui “ao número de passos [das procissões] pelo país fora, que aqui em Óbidos são cinco”.

Mas, como “um homem está sempre a aprender”, se afinal “tem a ver com as marés também não é de estranhar”. Em tempos, “aquela várzea lá em baixo era tudo lagoa [de Óbidos] e ali na estação há umas argolas onde se prendiam os barcos”, esclarece.

“Isso sim, são marcas que se percebem, agora esta, uns sentam-se, outros pisam, ninguém liga”, remata.

Na Figueira da Foz, litoral do distrito de Coimbra, a marca NP 96 passa despercebida a quem circula na rua Fernandes Tomás, na baixa da cidade. Está localizada na fachada traseira da Câmara Municipal, quase ao nível do passeio, no vão de uma janela, e nem um livro editado em 2001 sobre o edifício dos Paços do Concelho (cuja construção foi concluída em finais do século XIX) lhe faz qualquer alusão.

O presidente do município, Carlos Monteiro, soube pela Lusa da existência, naquele local, da marca de nivelamento principal – que situa o zero hidrográfico 5,4 metros abaixo -, a exemplo do capitão do porto João Lourenço, que embora saiba o seu significado, dadas as suas funções, desconhecia onde se situava.

“Claro que é uma descoberta. Já tinha visto a placa, mas nem sequer tive a curiosidade de perceber – o que até parece mau – o que é que a placa indicava ou representava. No mínimo, vai despertar a curiosidade das pessoas”, admite Carlos Monteiro.

João Lourenço resume a função da marca NP 96, relativamente ao zero hidrográfico: “É um plano referencial segundo o qual se fazem todas as medidas marítimas e que varia de porto a porto”.

Mais a norte, em Viana do Castelo, a marca NP 27 está cravada na soleira do lado esquerdo da porta principal da estação de caminhos-de-ferro e passa despercebida aos passageiros apressados que chegam ou partem de comboio.

Alertados pela Lusa, confessam nunca ter dado pela sua existência, desconhecendo o seu significado (ali, o zero hidrográfico fica 17,8 metros abaixo), tal como o chefe da estação ou um maquinista.

Já a funcionária da bilheteira, situada mesmo à entrada da porta principal, ficou a saber da localização da placa “porque, de vez em quando, uns senhores vêm fazer medições”, sem que conheça a sua finalidade.

Em Lisboa, segundo o IH, o zero hidrográfico “situa-se 7,6 metros abaixo da marca situada na pilastra do lado direito na face sul do pedestal da estátua de D. José”, no Terreiro do Paço.

Alheios a este marco, é naquela obra do escultor Joaquim Machado de Castro, de 1775, no centro da Praça do Comércio, que os turistas se sentam para descansar e tirar fotografias, sem ter conhecimento da sua existência.

Mas também especialistas desconhecem o seu significado: contactado pela agência Lusa, o Gabinete de Estudos Olisiponenses, que se dedica ao estudo da cidade de Lisboa, revela não ter nenhum investigador que saiba explicar o sentido da marca de nivelamento principal e a sua história.

D. José I ‘guarda’ outra marca de nivelamento principal, desta vez em Vila Real de Santo António, distrito de Faro, localizada no meio da cêntrica Praça Marquês de Pombal, no degrau mais elevado do obelisco que homenageia o monarca.

Na praça, onde é habitual as crianças brincarem sob supervisão dos pais e pela qual passam diariamente muitos residentes nos afazeres do dia-a-dia, a Lusa testemunha como uma família olha as brincadeiras dos filhos sem perceber que, no lado norte do monumento, de frente para a Igreja católica de Nossa Senhora da Encarnação, está no pavimento a marca em metal no degrau mais elevado do pelourinho.

“Há anos que venho passar férias a Vila Real de Santo António e nunca me tinha apercebido que isto estava aqui no chão. E também não sabia que havia marcas deste tipo dispersas pelo país”, reconhece Francisco Frazão.

Apesar da importância da placa metálica NP 155 para a definição do zero hidrográfico, que se estabelece 6,8 metros abaixo desse registo em Vila Real de Santo António, a sua existência também é desconhecida de locais, como Guilherme Ramos, que admite ter vivido “uma vida inteira na cidade sem nunca ter reparado nela”.

“É curioso ter uma marca destas na principal praça da cidade, também ter brincado aqui em criança e vivido cá mais de 40 anos sem nunca ter visto que ela estava aqui no chão, nem sequer ouvido falar neste tipo de marcas”, afirma.

Há ainda marcas de nivelamento principal que dão o zero hidrográfico em pelo menos quatro igrejas, como em Faro e Lagos, ambas no Algarve, mas também em Sines, no litoral alentejano.

Aqui, o referencial das marés está situado 35,9 metros abaixo da marca NP 210 existente na ombreira da porta principal da igreja Matriz, em pleno centro histórico, paredes meias com o castelo da cidade e junto à estátua do navegador Vasco da Gama, de olhos postos no mar.

Se a marca passa despercebida aos que visitam e percorrem aquela zona, nem mesmo quem entra e sai diariamente da igreja Matriz tinha dado conta da sua existência, como é o caso do diácono Joaquim Simão.

“Frequento a igreja desde 1995 e há oito anos que sou diácono e nunca tinha reparado nesta marca ou tinha ouvido falar no ‘zero hidrográfico’. Sei que os homens ‘roubam’ espaço ao mar para construir e basta olhar para o porto de Sines e o que já cresceu para perceber como ganhamos terreno ao mar”, afirma Joaquim Simão.

À entrada da igreja, o diácono, de 80 anos, diz que a partir de agora vai “dar a conhecer esta curiosidade” aos fiéis.

Também a igreja de S. José, no Campo de São Francisco, no centro histórico da cidade de Ponta Delgada (Açores), guarda uma “curiosidade” que “a maior parte da população desconhece”, segundo o pároco local.

Na soleira da porta principal, a marca de nivelamento principal dá o zero hidrográfico 10,5 metros abaixo e “a maior parte da população desconhece este pormenor de referência, que no fundo diz dos cuidados e atenção a ter com o mar”, comenta Duarte Melo.

Segundo o pároco, “há um desconhecimento da maior parte da população” sobre esta curiosidade, o que não implica que a população não seja cuidadosa, até porque a história dos Açores tem sido marcada por várias calamidades naturais.

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