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Mãos delicadas ajudam ‘tartaruguinhas’ a nascer em praia de Cabo Verde

Notícias de Coimbra com Lusa | 3 anos atrás em 09-08-2021

Carmen escava, cautelosa, a areia negra da praia mesmo onde o rasto de tartaruga termina para depois, um a um, retirar delicadamente os 87 ovos que encontrou a meio metro de profundidade e levá-los para o viveiro, para ficarem a salvo dos predadores.

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Juntamente com voluntários, guardas e moradores da aldeia da Ribeira das Pratas, município cabo-verdiano do Tarrafal, Carmen Martins, 30 anos, está naquela praia há um mês a supervisionar a desova das tartarugas martinhas, garantindo que os cães vadios não limitam a sobrevivência das futuras ‘tartaruguinhas’.

O trabalho acontece sem hora marcada para a chegada das tartarugas à praia para a desova, na escuridão da madrugada, mas os turnos são das 20:00 às 06:00, todos os dias. Parte da noite é passada a descansar em tendas e Carmen já perdeu a conta aos ovos que mudou de sítio em apenas um mês, para seu espanto.

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“Quantos ovos? Meu Deus, isso é muito”, diz, à conversa com a Lusa junto ao viveiro construído pela Organização Não-Governamental Lantuna, da ilha de Santiago, que pela primeira vez está a acompanhar a época de desova em Ribeira das Pratas.

Em 2020, dos dez ali ninhos monitorizados, 98% morreram por predação por cães vadios e caranguejos, pelo que só uma pequena parte das crias de tartaruga chegaram ao mar.

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Carmen, supervisora da Lantuna, retira todos os dias dezenas de ovos enterrados na areia e leva-os para o viveiro, a poucos metros de distância, vedado e com acompanhamento dos voluntários daquela ONG ambientalista, para tentar garantir a mais alta taxa possível de eclosão.

Ainda não são 08:00 e um a um, num único ninho que estava a monitorizar desde a noite anterior, Carmen retira os 87 ovos ali depositados. Em menos de dez minutos já repousam no ninho do viveiro.

No espaço de um mês, e quando o pico da época da desova ainda está para chegar, algures entre agosto e setembro, o viveiro, improvisado com estacas de madeira e rede, bem como termómetros para controlar as temperaturas (que define o sexo da tartaruga) em cada, já está cheio. São mais de 80 ninhos, todos marcados com a data de chegada e quantidade.

Cada um com mais de 60 ovos e três deles acima de cem. Num destes ninhos estão mesmo 112 ovos.

“É um trabalho de muita paciência. Às vezes ficamos a observar a desova da tartaruga quase uma hora e tal”, diz.

Por vezes, o trabalho da equipa, que integra dois guardas para patrulha, estudantes universitários voluntários, mas também jovens da própria aldeia da Ribeira das Pratas, além dos técnicos da Lantuna, prolonga-se pela manhã. “Há dias que às 06:00 ainda há tartarugas a desovar e temos de fazer a relocação dos ninhos”, explica.

“Estou muito impressionada. Pensei que não íamos ter este viveiro preenchido. Já estamos no limite (…) Vamos ter de o aumentar, não há mais espaço”, diz Carmen, sem esconder a surpresa com o sucesso da primeira operação do género feita naquela praia, a mais de 90 minutos de viagem de carro da cidade da Praia, a capital cabo-verdiana.

A eclosão dos ovos acontece ao fim de 45 a 60 dias, com uma taxa de sucesso, em viveiro, acima de 50%. Ali com a particularidade de envolver a comunidade, parceira do projeto que tenta garantir a continuidade de uma espécie em risco e que envolve ao todo cerca de 60 pessoas.

Nesta altura, Carmen, que é também estudante do curso superior de biologia, conta os dias para ver as primeiras tartarugas saírem em direção ao mar: “Estou ansiosa. É um trabalho que eu gosto muito. Faço isto com muito amor, com muito gosto, com muita dedicação”.

Pelo meio fica também o trabalho “delicado”, de escavar a areia à procura dos ovos, transportá-los para o viveiro, voltar a escavar a profundidade idêntica e voltar a enterrá-los, por vezes tapando os ninhos com folhas de coqueiros para baixar a temperatura da areia. Mas sobretudo, afastando predadores.

“Por mais que tentemos, não vai ser totalmente natural. Então temos de ter essa delicadeza, com os ovos, com a profundidade do ninho”, explica ainda.

A população de tartarugas marinhas “caretta careta” de Cabo Verde – praticamente a única a desovar na ilha de Santiago – é a terceira maior do mundo, apenas ultrapassada pelas populações na Florida (Estados Unidos da América) e em Omã (Golfo Pérsico).

O período de desova desta espécie começa anualmente em 01 de junho e vai pelo menos até novembro.

Denis Dias, é técnico da Lantuna e coordenador deste projeto de conservação de tartarugas, que assenta no viveiro de encubação para proteger os ninhos da predação. O primeiro ninho foi realocado em 02 de julho e o trabalho nunca mais parou.

“O resultado vai ser um sucesso, do número de crias que vamos colocar no mar (…) A partir de 20 de agosto vamos começar a ter eclosões nos ninhos, depois é um atrás do outro. Vai ser corrido, todos os dias, até terminar tudo”, garante.

Denis não esconde o entusiasmo com a operação que a Lantuna está ali a realizar, sobretudo porque este tipo de ações só se realizam nas ilhas do Maio, Sal e Boa Vista, que representam 95% do total de desovas de tartarugas em Cabo Verde.

Aquele viveiro já tem cerca de 5.000 ovos, mas as contas são mais delicadas. Denis recorda que a estimativa aponta que de mil tartarugas que se fazem ao mar após a eclosão, apenas uma vai chegar à idade adulta, para se começar a reproduzir ao fim de 25 anos de vida.

“Ou seja, pouco mais de duas tartarugas daqui a 25 anos”, estima, olhando para os ovos que estão atualmente no viveiro.

Ainda assim, atira: “Compensa. É um trabalho que fazemos com muito amor e com vontade”.

Naquela praia, os técnicos e voluntários da Lantuna fazem ainda a medição das carapaças das fêmeas que desovam, que recebem ainda um microchip, para serem monitorizadas.

Depois, há ninhos que ficam no areal e são também monitorizados diariamente, num processo que envolve a comunidade da aldeia da Ribeira das Pratas, que vive junto à praia.

“É uma comunidade muito envolvida e engajada e desde o ano passado decidiu mesmo trabalhar connosco, é uma parceria entre a Lantuna e a comunidade (…) temos voluntários à noite que são pessoas da comunidade, que decidiram que querem proteger a praia e as tartarugas da Ribeira da Prata”, explica Denis.

José Luis, 39 anos, é funcionário da Câmara Municipal do Tarrafal e é um dos moradores da Ribeira da Prata que se juntou ao projeto. Garante que a população da aldeia deixou de matar tartarugas para comer, como acontecia no passado, assumindo agora a “preocupação” com a conservação da espécie que ali desova, uma das praias de Santiago mais procurados pelas tartarugas.

Ao fim de uma noite de trabalho, que terminou já durante a manhã, a realocar os ovos de um ninho no viveiro, não esconde estar “super ansioso” com o dia em que as primeiras tartarugas comecem a sair, em direção ao mar.

“Será uma alegria”, atira.

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