Associação Académica quer uma Universidade de Coimbra mais livre

Notícias de Coimbra | 7 anos atrás em 20-09-2017

A Abertura Solene das Aulas na Universidade de Coimbra, cerimónia de grande simbolismo académico que assinala o arranque oficial do ano letivo 2017/2018, teve lugar nesta manhã de 20 setembro, na Sala dos Capelos.

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Na sua intervenção, Alexandre Amado, Presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra, lembrou que “Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo” 

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A cerimónia iniciou-se com o discurso do Reitor, João Gabriel Silva, seguindo-se a intervenção do Presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (AAC), Alexandre Amado, e a Oração de Sapiência, proferida por João Sousa Andrade, Professor Catedrático da Faculdade de Economia (FEUC).

 

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alexandre amado

Leia a intervenção de Alexandre Amado:

“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”
Na aceção destas palavras de Rubem Alves, retrato daquilo que sempre deveria ser, embora apenas por vezes seja, o papel de qualquer instituição de ensino e investigação, a Universidade de Coimbra pertence, indubitavelmente, ao grupo daquelas escolas que não são gaiolas, daquelas escolas que são asas.
Só assim foi possível, ao longo de mais de setecentos anos, ter a nossa Universidade, mesmo nos períodos mais sombrios, iluminado a todo o tempo o país e o mundo em seu redor. Em sete séculos sempre fomos, pois, uma escola que se reflete no mundo e não uma escola reflexo dele. Nunca uma escola de ideias feitas por outros, mas uma escola feita de ideias próprias. É este mesmo, afinal, o significado de vanguarda.

 

Na hora de começar de novo, a noção de que o nosso lugar se encontra à frente do nosso tempo reforça a responsabilidade de toda a comunidade universitária de encontrar os melhores caminhos para o que vem a seguir. E hoje começamos de novo. A solenidade do momento, de que esta sala nos recorda a cada segundo, exige por isso da Academia uma enorme medida de humildade perante o peso do legado que todos carregamos nos ombros.
Todos: estudantes, professores, funcionários. Todos somos parte da Universidade de Coimbra e sobre todos impende o dever de zelar pelo seu futuro. Nesta contínua construção coletiva da nossa identidade todos têm, portanto, um papel importantíssimo a desempenhar. Sabemos que as perspetivas que temos sobre a Universidade e o Ensino Superior são por vezes um pouco diferentes, mas no fundo também sabemos que o que desejamos para eles é quase sempre igual.
Aos estudantes admira-se frequentemente a coragem, a crítica e a criatividade. No entanto, não raro, desconfia-se da pertinência ou até da seriedade das suas posições. O passado de que todos nos orgulhamos comprova a importância que o movimento estudantil de Coimbra teve e tem na vida universitária e na vida política nacional. São incontáveis os episódios protagonizados pelos estudantes que alteraram o rumo da nossa história e assim se tornaram seu património.

 

Contudo, antes de qualquer um desses episódios acontecer, todos eram considerados irrefletidos atos de rebeldia, fruto da imaturidade dos seus autores. As ideias que com eles vingaram tornaram-se valores indisputáveis da Academia, embora antes não passassem, para muitos, de devaneios próprios da inocência de quem ainda não compreende como as coisas funcionam.

 

O que reivindicamos agora não se esgota, por isso, num conjunto de exigências irrealistas. Pelo contrário, justifica-se à luz de um ideal palpável de Ensino Superior, alicerçado numa crença fundamental. A mesma crença que nos move a todos: estudantes, professores, funcionários. Aquela que nos trouxe até esta sala no dia de hoje: a crença inabalável no poder da educação.
Acreditamos, todos, na educação enquanto principal veículo do nosso progresso civilizacional. Acreditamos nela como meio de difusão cultural, mecanismo de equilíbrio social, fator de desenvolvimento humano.

 

Na Universidade de Coimbra sabemos, por experiência própria, que reside na educação a melhor defesa contra o autoritarismo, a mais eficaz cura para a indiferença, a mais poderosa arma contra a desigualdade. Sabemos que só oportunidades iguais podem compensar berços diferentes, que cidadãos mais esclarecidos respeitam mais a diferença, que só mentes libertas questionam a ordem instalada.
O Ensino Superior tem um papel decisivo no processo educativo e todos nós acreditamos particularmente no seu potencial para transformar a sociedade. E todos nós queremos um Ensino Superior forte, moderno, aberto e democrático. Todos nós, afinal, acreditamos no mesmo.
Para que o Ensino Superior cumpra integralmente a sua missão é necessário que se reunam as condições mínimas de acessibilidade, subsistência e funcionamento do sistema.
Um sistema que exclui de si jovens com mérito mas sem dinheiro não cumpre a sua missão. O Ensino Superior é um direito de todos e ninguém pode ser expulso do sistema ou impedido de nele ingressar por carência económica. O esforço financeiro exigido às famílias é incompatível com a ideia de ensino para todos e frustra as legítimas expectativas de milhares de jovens todos os anos.

 

Não é concebível pedir mais de mil euros a quem quer que seja para poder usufruir de um serviço público no exercício de um direito constitucional. Mais grave se torna quando os custos associados à frequência do Ensino Superior em alojamento, transportes, alimentação e material escolar, para os estudantes que mais precisam, não são devidamente cobertos pelos apoios diretos de ação social. Por outro lado, ao rejeitar quem não pode pagar, o Estado inibe-se de realizar a igualdade de oportunidades que lhe compete promover através da educação e prejudica o progresso social do país.
Um sistema que sufoca as Instituições não cumpre a sua missão. O encerramento de serviços, a degradação de instalações e a decadência de condições pedagógicas, resultado do subfinanciamento público dos últimos anos do Ensino Superior, têm dificultado o avanço científico e tecnológico do país. Por outro lado, fazer as Universidades escolher entre os problemas do costume dos institutos públicos e a distorção das fundações com regime de direito privado é condená-las a optar entre desempenhar a sua função em dificuldade permanente ou abdicar das condições para a desempenhar de todo.
Um sistema que despreza a opinião de quem nele intervém diariamente não cumpre a sua missão. Instituições de Ensino Superior em que a comunidade universitária mal elege quem as dirige não são exemplo de espírito democrático. Órgãos em que um corpo académico se sobrepõe ao restantes, relegados para um canto ou mesmo para a absoluta inexistência, jamais poderão considerar- se instrumentos abertos e plurais de gestão e governação.
Um sistema destes precisa, urgentemente, de mudança. Para que o Ensino Superior cumpra integralmente a sua missão é necesário, mais do que nunca, quem lute por ele. É necessária a Associação Académica de Coimbra, é necessária a Universidade de Coimbra. É necessária, na verdade, toda esta Academia.
“Assegurar progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino”, incumbência do Estado nos termos da Constituição da República, é para abrir o caminho do Ensino Superior a todos. Um sistema sem propinas e com taxas e emolumentos limitados cria condições de acesso dignas de um país desenvolvido. Por consequência, uma ação social direta que responda às dificuldades concretas de quem precisa, ao invés de se limitar a cobrir o valor das taxas de frequência, alarga automaticamente a sua base social.
Reforçar o financiamento das Instituições é decisivo para que elas possam prestar um serviço público de qualidade a cada estudante e assim a toda a sociedade. E é também importante conferir- lhes a autonomia que interessa, mantendo o carácter público da sua natureza e do seu funcionamento.
Criar mecanismos de participação democrática no seio das Universidades é determinante para construir caminhos de futuro para elas, assentes na real vontade de quem as compõe e legitimados por decisores eleitos pela Academia.

 

O poder da educação, esse valor no qual todos acreditamos, só se torna efetivo, na verdade, com a concretização progressiva de um Ensino Superior público, democrático, de qualidade e gratuito. Para isso, é urgente mudar o financiamento das Universidades e rever o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior.
“Ensino para todos”.
Nos últimos 25 anos a propina máxima aumentou de 6 para 1063 euros. Somos assim um dos países da Europa onde é mais cara a formação superior e simultaneamente um dos que menos investe no setor, realidade confirmada pelos dados mais recentes da OCDE. Há já 14 países europeus com propina zero enquanto por aqui se vai tentando reduzir essa ideia a romantismo.
Poder-se-ia dizer que quem quer estudar e obter os privilégios teoricamente inerentes ao diploma deve pagar. No entanto, os estudantes e as suas famílias já contribuem para o sistema pelos impostos que pagam e pelos custos associados à frequência do Ensino Superior que suportam. Além disso, todos ganhamos com a formação superior de qualquer jovem e, em boa verdade, o benefício económico que o diploma pode trazer a mais ao seu titular também se traduz numa contribuição maior para a sustentabilidade do sistema pela via fiscal.
A propina veio desvirtuar a posição dos estudantes no contexto do Ensino Superior, transformando-os de agentes em clientes e forçando muitos a trabalhar para estudar ou mesmo a abandonar os estudos. Ainda assim, a pior consequência reside nos milhares de jovens, por esse país fora, que nem sequer consideram a hipótese de uma formação superior por saberem, à partida, que o seu custo nunca a permitiria. Só na Universidade de Coimbra, por exemplo, são mais de 40% os estudantes que provêem de famílias com pais diplomados, sinal de exclusão que tem de ser corrigida. 
“Universidade livre”.
A Lei n.º 62/2007, ou RJIES, que completa agora uma década de vigência, resultou da necessidade de concentrar a organização e funcionamento de todo o sistema num único documento, aliada a um discurso político favorável à abertura das Instituições à sociedade e à sua autonomização face ao Estado. Sob o pretexto de concretizar estes objetivos, o RJIES introduziu uma série de alterações profundas na governação e gestão das Instituições que logo geraram discórdia na comunidade académica.

 

O movimento estudantil, em particular, expressou imediatamente duras críticas ao diploma, sendo que a principal razão para a contestação se prendia essencialmente com a perda de representatividade dos estudantes nos órgãos. Com o propósito de mitigar esta oposição ao RJIES, previu-se a avaliação da aplicação da lei 5 anos após a sua entrada em vigor. A avaliação prometida e legalmente prevista não ocorreu em 2012 com o quadro parlamentar da altura, nem desde 2015 com o atual. Além de desrespeitar o compromisso político assumido à época e a norma contida no art. 185.º, a ausência de uma avaliação da aplicação da Lei nos termos aí estabelecidos traduziu-se numa oportunidade perdida para corrigir mais cedo, inclusivamente, alguns fenómenos que se verificaram na prática ao abrigo do RJIES e que se desviam do espírito da lei. Escusado será dizer que, fechado o espaço de debate necessário à avaliação em causa, ficou também bloqueado o caminho de algumas reivindicações que ambicionávamos ver consagradas.

 

Ao longo da última década, várias foram as justificações avançadas para evitar a abertura de um processo de avaliação da aplicação do RJIES, de entre as quais se destaca a ideia de se tratar de um diploma recente e que precisa por isso de maturação. Ora, precisamente o contrário do que se pretendia com o art. 185.º, cujo objetivo passava pela promoção de uma reflexão sobre a aplicação da lei enquanto a mesma se cimentava e não após a sua consolidação. Em setembro de 2017, depois de uma década de RJIES, não é mais aceitável esperar por um melhor momento – é urgente avaliá-lo, discuti-lo e revê-lo.
O novo modelo de governação e gestão que a Lei n.º 62/2007 trouxe às Instituições de Ensino Superior portuguesas resultou numa degradação evidente da participação democrática no seu seio. Desde logo, reduziu-se o número de órgãos substituindo a antiga configuração, em que os poderes estavam distribuídos essencialmente por uma Assembleia, um Senado e um Reitor ou Presidente de uma forma equilibrada, por uma nova em que se verifica uma concentração de poderes no Reitor ou Presidente e no Conselho Geral.

 

Este último órgão, em comparação com o seu homólogo anterior, viu reduzido o número de membros e drasticamente diminuída a proporção de estudantes na sua composição. O princípio da paridade entre professores e alunos nos órgãos, que tantos anos custou a conquistar, foi substituído por percentagens mínimas de 15% de estudantes e de 50% de docentes na sua composição. Também o antigo Conselho Administrativo, em que era obrigatória a participação plena de um representante dos estudantes, foi substituído pelo Conselho de Gestão, onde representantes dos estudantes apenas participam a convite e sem direito a voto.
Por outro lado, depositaram-se as principais reformas da autonomia no regime fundacional. Um modelo que oferece alguma medida de autonomia patrimonial, mas retira outra de autonomia política, pedagógica e científica. É crucial possibilitar às Universidades o exercício de autonomia em contexto de serviço público, desde que democraticamente fundada na vontade da comunidade académica, legitima e adequadamente representada nos órgãos de governo. Nunca em contexto de distorção da sua natureza, ainda para mais quando motivos não há para que se não possa aproveitar, numa alteração legislativa para breve, aquilo que de significativo e pertinente a fundação pudesse trazer em termos de autonomia.

 

“Ensino para todos” e “Universidade livre” diziam as faixas mais exibidas em abril de 69. Nada mais nosso e nada mais atual. Dizia ainda uma outra, erguida numa das maiores Assembleias Magnas da história da Associação Académica de Coimbra: “a nossa dignidade obriga-nos a proclamar bem alto uma alternativa de solidariedade”.
Perdemo-nos de nós próprios quando comprometemos os ideiais que defendemos. Por isso, neste novo começo, proclamemos bem alto uma alternativa de solidariedade. E façamo-lo todos – professores, funcionários, estudantes – a uma só voz.
Neste novo começo, ofereçamos aos novos estudantes a liberdade no lugar da inevitabilidade. Demonstremos que o nosso património, mais do que nas pedras, está nas ideias e no que fazemos para as defender. Assim, só assim e de nenhuma outra maneira, nos preparamos para o que vem a seguir. Assim, também, se distinguem as escolas que são gaiolas daquelas que são asas.
Neste novo começo, em uníssono, entreguemos ao país aquilo que sempre soubemos ser nos momentos certos, aquilo de que ele precisa agora: da Universidade de Coimbra, escola que ama pássaros em voo, uma Universidade livre.

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